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27 de Janeiro de 2010, 22:00 , por Alan Freihof Tygel - | Ninguém está seguindo este artigo ainda.

Blog do Alan, contém pensamentos saídos diretamente da minha cabeça.


Construindo Verdades

30 de Janeiro de 2010, 22:00, por Alan Freihof Tygel - 33 comentários

Todo mundo sabe que a globo é referência quando o assunto é a construção de verdades. Mas quando eu cheguei do estágio de vivência no MST me deparei com uma verdadeira aula de manipulação nas matérias sobre as prisões que ocorreram em Iaras, SP, sobretudo neste vídeo, do Jornal da Globo.

Analisando o vídeo com meio segundo de calma, é muito fácil perceber como absurdos passam batidos, e como mentiras são repetidas até virarem verdades.

1) Logo no início, o glorioso William Waack diz que "a polícia civil obteve vídeos gravados pelo MST ..."

Ora, se foram gravados pelo MST, a polícia apreendeu sem mandato, pois o vídeo foi o motivo para as prisões. Se não foi gravado, então havia gente infiltrada lá. E nesse caso, qualquer ação de suposta depredação fica sob suspeita, se foi realizada por integrantes do MST ou por infiltrados.

2) Na mesma frase, WW completa: "... mostrando como o grupo planejava depredações antes mesmo de ocorrer a invasão.", com bastante ênfase no antes mesmo.

Todas as ações do MST são muito bem planejadas, e devido ao alto grau de organização do movimento, na maioria das vezes são bem sucedidas. E é obvio que o planejamento se faz antes da ação. Sobre termo invasão, é sabido que os jornalistas-fantoches da globo são obrigados a utilizar este termo para noticiar as ocupações do MST. Sobre a escolha de termos silenciosamente tendenciosos na imprensa, um ótimo post aqui.

3) Logo em seguida, mostra-se a fala de uma coordenadora do MST (de que? da onde?), dizendo que o MST derrubou os pés de laranja pra plantar feijão porque ninguém vive só de laranja. Depois vem em off, sobre as imagens do trator destruindo os pobres laranjais, uma voz dizendo que esta foi a justificativa do MST para a ocupação.

Essa é a parte mais triste da "reportagem". O MST divulgou amplamente uma nota onde explicava minuciosamente os motivos desta ocupação. Leia a nota aqui. Pegar um trecho de uma fala de uma militante e colocar como O motivo da ocupação é muita covardia. E ninguém ainda disse como um helicóptero chegou tão rápido ao local, a ponto de pegar os primeiros pézinhos caindo.

4) "... mas na verdade o motivo foi outro." E corta para uma assembléia onde se vê um militante falando que era preciso pelo menos dar prejuízo à fazenda.

Vamos fazer um exercício. Imaginem só um vídeo de um comandante de polícia falando aos policiais antes de, por exemplo, entrarem numa favela no Rio. Imaginem um vídeo com políticos cochichando nos gabinetes, ou repórteres conversando no intervalo do jornal. Ia faltar papel no mundo pra tanto inquérito.

Além disso, um pouco de prejuízo a Cutrale não faria mal nenhum. As falcatruas dessa empresa, como grilagem de terras, exploração de trabalhadores e produtores vizinhos já foram denunciadas até pela Veja, vejam só:   Unknown. As imagens a seguir, de tratores e casas destruídas, também são altamente duvidosas. Nada garante que os tratores foram quebrados durante a ocupação, e muito menos pelos Sem-Terra.

Na legenda, ainda há a menção a "um dos chefes do MST". A estrutura do MST não tem chefes, e sim coordenadores em vários níveis. A palavra chefe implicitamente trata o MST como uma quadrilha.

 

Temos que lutar contra a criminalização dos movimentos sociais pela burguesia midiática que governa o Brasil. É preciso mostrar à sociedade a importância da luta social na caminhada para um país mais justo, menos desigual e menos violento.

Sorriavocestsendomanipulado

 

Do rio que tudo arrasta se diz violento,
porém ninguém diz violentas
as margens que o comprimem.

Bertold Brecht



EIVI - MST, BA

28 de Janeiro de 2010, 22:00, por Alan Freihof Tygel - 1313 comentários

Relatório

IV Estágio Interdisciplinar de Vivência e Intervenção em Áreas de Reforma Agrária - Assentamento Nova Suíça, Santo Amaro, Recôncavo Bahiano.

9 a 24 de Janeiro de 2010

Depois de assistir ao filme "O mundo segundo a Monsanto", de Marie-Monique Robin, que mostra claramente como o capital tomou conta do campo, utilizando a terra como meio de se reproduzir, cheguei à conclusão de que a concentração fundiária no Brasil e agronegócio estavam na raiz de muitos dos problemas sociais que vivemos. Ao me aprofundar no tema, percebi que a luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra - o MST - era uma luta não apenas para dar um pedaço de terra a quem dela precisasse, mas uma luta que buscava a justiça social, que ia de encontro aos interesses das multinacionais, buscando a utilização da terra para produção de alimentos saudáveis, para fixação das famílias no campo e buscando sobretudo a construção de um país onde a voz dos trabalhadores, tanto rurais quanto urbanos, fosse de uma vez por todas a voz principal.

A busca por informações sobre o MST é um exercício curioso. Por um lado a grande imprensa - baderneiros, aproveitadores, oportunistas, vândalos, ladrões de terras - e por outro lado a imprensa alternativa - revolucionários, comunistas, salvadores da pátria. No meio deste embate, apesar de acreditar mais na imprensa alternativa, percebi que só teria argumentos definitivos quando conhecesse de fato o movimento, e pudesse ver com meus próprios olhos e tirar as conclusões. Neste momento, recebo a divulgação do estágio de vivência no MST, e me inscrevi instantaneamente. A vontade de ir era tanta que cancelei uma viagem já programada, pelo norte do Brasil.

Depois de muita ansiedade, chegou o dia. Estava às sete da manhã no Campo Grande, em Salvador, uma praça enorme. Aos poucos, foram chegando. Não conhecia ninguém, mas o clima entre as pessoas me fez sentir em casa desde a primeira pessoa com quem conversei. Entramos no ônibus, rumo a Santo Amaro, onde aconteceria a primeira etapa do estágio.

O estágio foi dividido em 3 momentos: uma capacitação de 4 dias, em uma escola no município de Santo Amaro; 9 dias de vivência nos assentamentos, no meu caso o 5 de Maio, mais conhecido como Nova Suíça, também em Santo Amaro; e a avaliação ao final, com 2 dias. A organização é do NEPPA - Núcleo de Estudo e Práticas em Políticas Agrárias, formado por estudantes da UFBA de diversas áreas. Este grupo realiza atividades permanentes em áreas de reforma agrária, e o EIVI se insere como apoio a estas atividades e como forma de convocar novos militantes na luta pela Reforma Agrária.

Capacitação

O momento da capacitação foi muito, digamos, curioso pra mim. Eu sempre vivi em um meio onde o pensamento de direita era hegemônico; desde a escola, a faculdade, o mestrado. E nestes ambientes, o MST era sempre escurraçado, sempre visto pela torta maneira global de ser ver as coisas. E não mais que de repente, estava diante de cerca de 100 pessoas socialistas, comunistas, anarquistas e simpatizantes, e parecia que eu estava diante de amigos de longa data, apesar de conhecer alguns há no máximo 2 horas.

A primeira atividade que foi feita foi a divisão dos participantes em 3 brigadas, uma forma inspirada na própria organização do MST e que possibilitou a divisão das tarefas de alimentação, limpeza, cumprimentos do cronogramas, preparação de místicas, etc, entre os participantes. A capacitação foi dividida em quatro temas: 1) questão agrária, 2) como funciona a sociedade, 3) organização do MST e 4) educação popular.

O primeiro tema tinha como objetivo nivelar os participantes em relação a situação fundiária do Brasil, e como chegamos a elas. Desde a colonização, o modelo do latifúndio sempre foi o dominante, e até hoje sofremos as consequências disso. As lutas indígenas, os quilombos, Canudos, Constestado, os cangaceiros, as Ligas Camponesas, entre diversos outros, nos mostram que a luta pela terra no Brasil começou cedo, e o processo que culminou no nível de organização da luta que temos hoje vem desde que os portugueses começaram a dividir nossas terras.

O segundo tema, "Como funciona a sociedade", pretendia abordar as contradições postas pelo capitalismo e refletir sobre o tipo de sociedade que queremos. Em seguida, no tema "Como funciona o MST", tivemos acesso ao complexo sistema de organização dos Sem-Terra, com coordenações formadas sempre por uma mulher e um homem, que vão desde o nível de assentamento, passando por brigadas, regionais, estaduais e finalmente as coordenações nacionais. Dentro das brigadas, que são grupos de cerca de 500 famílias geograficamente próximas, o movimento se organiza em setores temáticos, que incluem saúde, educação, comunicação, cultura, formação, gênero, cultura, produção e frente de massas, esta última responsável pela captação de novos integrantes e organização das ocupações. Esta complexidade de organização se faz necessário dentro de um movimento de enormes proporções, e que precisa resistir ao aparato de repressão do Estado e de setores da sociedade.

Por fim, a temática da educação popular. As diretrizes do MST são bem claras na priorização da educação como instrumento de mudança da realidade. E para isso, a inspiração e aplicação do método de Paulo Freire, ele próprio admirador do movimento.

Os quatro dias de capacitação foram muito intensos, com atividades ocorrendo durante o dia inteiro. Discussões, preparações de místicas, dinâmicas, ... Na última noite, a cultural, com direito a cervejinha, batucada e muita música. Todos ansiosos para ir a campo de uma vez por todas. Desfizemos as brigadas, e formamos os sete grupos de cerca de 12 pessoas que iriam para cada assentamento ou acampamento. Os monitores de cada grupo deram um panorama sobre o local do estágio, ressaltando os problemas principais, a história de lutas do local e o projeto permanente que o NEPPA realiza no local.

Vivência

Saímos de Santo Amaro por volta do meio-dia. No caminho, passamos por extensos bambuzais, que são usados por uma enorme e mal-cheirosa fábrica de papel. No caminho para o Nova Suíça, passamos por dois outros assentamentos, Pitinga (Eldorado) e Bela Vista. O primeiro sofre com o fedor da fábrica e a poluição do rio causada por ela.

A chegada ao Nova Suíça já foi bem impactante. Cerca de um quilometro depois de sair da estrada, adentramos o assentamento, com suas casinha de tijolos aparentes. A van nos deixou em frente à escola. Seria uma comunidade rural qualquer, se não fosse um "detalhe": a escola era a Escola Municipal Ernesto Che Guevera, com uma enorme bandeira do MST desenhada na porta, ao lado de um desenho do comandante. Com isso já percebemos onde estávamos pisando.

Escola Estadual Ernesto Che Guevara - Assentamento 5 de Maio - Santo Amaro



Deixamos a bagagem na escola e fomos ao assentamento do Pitinga encontrar os outros companheiros e conversar com alguma lideranças locais do MST. Gílson nos deu uma perspectiva do movimento visto de dentro, a organização, os objetivos, os problemas. Seu Furinga, um verdadeiro mestre, nos contou as histórias dos "agrônomos de 4 paredes", que por diversas vezes sugeriram plantios de determinadas culturas que acabaram dando errado e deixando os produtores assentados endividados. Realmente emocionante ver na prática a arrogância acadêmica vencendo a saberia popular no discurso, e perdendo na prática.

Nossas Novas Famílias

Voltamos ao Nova Suíça no lombo de um caminhão de cana. À noite, conseguimos uma assembléia com os moradores para que as famílias fossem adotar os estudantes. Cerca de trinta famílias se dispuseram a adotar um filho, e éramos apenas 12, o que mostra o quanto a comunidade está aberta, e disposta ao diálogo, desde que feito de forma participativa. O trabalho dos monitores começou bem cedo, visitando as famílias, explicando o projeto e levantando as demandas e problemas sobre os quais poderíamos trabalhar.

O momento da escolha foi um tanto constrangedor, os pais tiveram que escolher os filhos. Muitos devolveram a escolha, dona Almerinda disse: "Aquele que me aceitar será bem recebido." Outros escolheram com base nos nomes ("mesmo nome de minha sobrinha!"), outros com base no gênero (um pai, muito ciumento da filha, escolheu uma menina), enfim, no final deu tudo certo e cada um de nós saiu de lá com sua família.

A minha família

Fui adotado por Gilma e Tiquinho, e ganhei de brinde Francisquinho, um irmão de 10 anos que imitava Michael Jackson super bem. No caminho até a casa, tentei iniciar um diálogo, mas Tiquinho não era muito de papo, e eu também não sou muito bom nisso, de modo que a conversa ficou meio travada. Chegando em casa, a realidade começava a se mostrar. A família é bem pobre, o único eletrodoméstico é uma TV, que ainda está sendo paga, não há geladeira nem fogão, e tudo é feito na lenha, o que deixa a casa com constante cheiro de fumaça. Ao entrar no meu quarto (nem imaginei que teria uma quarto só pra mim), uma bela cama com mosquiteiro. Os quartos não tinham piso, era chão de terra mesmo. Por isso, fui instruído a deixar a mochila em cima de uma mesa, e coberta por causa da poeira.

A casa da minha família



Tiquinho está há dois anos no assentamento, e Gilma veio de uma cidade próxima (Acupe). O filho é bem agitado, tem muita expressão corporal e a cada música que toca na TV começa a dançar. Aliás, a TV... Como falei, falta geladeira e fogão, mas a onipresente não podia faltar. Globo, Record, Band, todas invadem a casa mostrando tudo do ruim e do pior, massacrando com propagandas de produtos que jamais entrarão naquela casa, impondo estilos de vida que jamais passarão perto daquele lugar. Curiosamente, a Globo era a menos assistida. Os programas favoritos eram aqueles em que um apresentador raivoso mostra todos os crimes ocorridos no país, batendo na mesa, gritando. O reporter vai até a delegacia, entrevista o acusado ("Porque você fez isso? Você se arrepende? Tem coragem de pedir perdão à vítima? Tá alí fora, vamos lá! Então você admite que matou/roubou/estuprou?"), mostra bate-bocas, repetido à exaustão supostos vídeos de supostos crimes, com cortes e closes altamente duvisosos. E nos intervalos, ligam pras casas e dão R$100 pra quem atender : "Fala Bocão!".

A família não tem produção rural. Neste momento, já começamos a ver porque a Reforma Agrária no Brasil é feita pra dar errado. O lote a que a família tem direito, uma área de cerca de 12 Ha., ou 25 tarefas, como eles chamam, fica a 2:30h à pé da agrovila, onde ficam as casas, a escola e o posto de saúde. (O posto vivia às moscas, mas agora receberá um médico da prefeitura, militante do MST e ex-estagiário do EIVI!). Além disso, a área não é demarcada e nem sequer os próprios limites do assentamento são conhecidos. Ou seja: se reforma agrária é jogar os sem-terra numa fazenda, dar a posse de um lugar longe da casa, e eles que se virem, então não é reforma, é apenas um paliativo pra tentar acalmar o movimento social.

Atividades

Os nove dias do estágio se dividiram entre os momentos de vivência com a família, comendo, vendo televisão, indo pra roça, e os momentos de intervenção, onde participamos de mutirões e promovemos algumas oficinas. No Nova Suíça, fizemos dois tipos de mutirão. O primeiro foi a busca pelo "rumo" do assentamento. Até hoje, 15 anos da ocupação, o assentamento não tem todos os lotes divididos e nem sua fronteiras demarcadas. O segundo foi a reforma da escola, a Escola Ernesto Che Guevera, que estava carente de cuidados.

As oficinas foram pensadas em conjunto com a comunidade, de acordo com as demandas verificadas. Tivemos uma oficina para mulheres jovens, sobre gênero, sexualidade, DSTs, já que uma reclamação constante foi a iniciação sexual e gravidez precoces. Além disso, tivemos a oficina para mulheres sobre artesanato como forma de geração de renda, já que havia diversas artesãs habilidosas na comunidade. Falei sobre economia solidária, e sugeri a criação de uma cooperativa para comercialização dos produtos. A idéia foi bem aceita por algumas, mas há um ranço grande quando se fala de cooperativas, devido a experiências anteriores desastradas.

A oficina principal foi a da rádio comunitária. Existe um projeto para implantação de uma rádio comunitária, a Rádio Bambu Itinerante. A comunicação dentro dos assentamentos, e também entre eles é muito precária; não há telefones fixos e os celulares pegam mal. Uma rádio comunitária itinerante entre Pitinga, Bela Vista e Nova Suiça seria um meio de comunicação dentro e entre comunidades, convocando assembléias, mutirões, e permitindo que a comunidade se expresse e não fique à mercê daquilo que invade as casas pela televisão. Houve ainda uma oficina com as crianças, com brincadeiras e gincanas.

Um dos pontos mais interessantes pra mim foi participar do mutirão do rumo do assentamento. O INCRA viria em alguns dias para demarcar os limites do assentamento, com a ajuda de aparelhos GPS. No entanto, as trilhas já deveriam estar abertas, já que os limites encontram-se no meio da mata fechada. Assim, subimos 9 estagiários e uns 15 assentados no lombo de um trator pequeno, que nos levou cerca de 40 min assentamento adentro para de lá partir para a marcação do rumo. Resolveu-se montar o acampamento perto de um riacho, e menos de meia hora as lonas pretas já estavam lá, montando um lindo barracão sem-terra.

A comida ficou a cargo de Maria Casca de Bala e Anaíldes: arroz, farofa, feijão com carne, farinha, arroz doce. O trabalho no meio da mata fechada, facão em punho, ataques de marimbondos, sensacional. Nas noites, muita cantoria, fogueira, alegria. Apesar de toda pobreza, apesar da dureza do trabalho no campo, gente livre é alegre. Até pescaria de camarão e caça de tatu teve. Dormimos lá por duas noites, um fino colchão sobre a terra e sob a lona. Acredite...

A turma do mutirão em frente à lona preta. De pé: Pépe, Tonho, Anaíldes, Eu, Carla, Fábio, Jacó, Jorge, Obede e Maria Casca de Bala. Sentados: Nana, Diego, Sávio, Tiquinho, Leila e Barbicha



Avaliação

Na última noite, fizemos uma assembléia na comunidade, com os pais adotivos e quem mais aparecesse. Cada um deveria falar o que achou da vivência. Fora todas as rasgações de seda, sempre muito emocionantes, sobressaiu-se a fala de dona Mira. Dona Mira, uma das remanescentes da ocupação, estava desde 5:30 com enxada em punho, capinando o jardim da escola. Sem pedir nada em troca, sem fazer propaganda. Ela não adotou ninguém, mas adotou todos nós. Levantou-se após todos os pais e filhos falarem, e disse que a nossa estadia na comunidade trazia de volta o espírito cooperativo, o trabalho coletivo, tão presente na época da ocupação, e que já ia se perdendo. E de fato, percebemos que o mais importante não era o trabalho em si do mutirão, mas sim o fato de existir um mutirão. O espírito do MST é o do trabalho coletivo, as ocupações, marchas e acampamentos só funcionam por causa dele. E se estamos na busca pelo poder popular, então o povo deve se unir.

Na manhã seguinte, recebemos um belo café da manhã de outra família que não conseguiu nenhum estudante. Suco de manga, caju com limão, cuscuz com côco, aipim cozido, bolos, pães, café, delícia. Passamos de casa em casa para nos despedir. Ganhei presentes incríveis, uma toalha bordada com meu nome, boné do MST, uma graviola gigante de três quilos, Jornais e Revistas Sem-Terra, banana, cana de açúcar... Saímos todos lotados de coisas, sabendo que um pedacinho do coração ficava lá. Voltamos cantando na van.

Chegamos de volta à escola, para a construção dos relatórios finais. Este momento foi extremamente confuso pra mim. As experiências pelas quais tinha passado ainda estavam ocupando meu cérebro, longe de se assentarem de vez. Nesse momento, começaram a pipocar as histórias vividas nos outros assentamentos, o que me deixou completamente transtornado, de pensar que tudo que aconteceu comigo aconteceu também com as quase 100 pessoas do EIVI.

À noite, exaustos, sentamos pra debater os pontos que entrariam no relatório do Nova Suíça. Não houve muito debate, ou porque depois de um convívio tão intenso já havíamos entrado em sintonia, ou porque ninguém mais tinhas forças mesmo.

No dia seguinte, dividimos os grupos de trabalho para discussão sobre os projetos permanentes nos assentamentos. Os monitores do NEPPA frisaram a todo momento que as intervenções realizadas no EIVI de nada valem se não forem acompanhadas por trabalhos permanentes. O grupos foram de agroecologia, o que inclusive é uma diretriz de produção do MST, educação popular, formação política da juventude, esta acompanhada por uma disciplina de extensão da UFBA, prevenção de doenças e promoção de saúde e a rádio comunitária.

E assim acabou o EIVI. Emoção, tristeza, alegria, tudo junto ao mesmo tempo agora. Esse relatório foi uma tentativa minha de começar a entender o que aconteceu nesses 15 dias. Mas acho que ainda não entendi não. E terei muito prazer em discutir, ouvir e contar histórias pra quem quiser. Finalizo com algumas idéias que ficaram na minha cabeça.

Nova Suíça, todo mundo é massa, todo dia é mutirão, e depois vamo pra roça! :-p

Sávio, Freitas, Samir, Obede, Irmã Bete e Diego; Paula, Nana, Aline, Lú e Leila; Alan e Carla.

 

Pensamentos

(ainda a elaborar melhor)

O trabalho no campo

Trabalhar no campo é duro. Muitos dos assentados reclamam de dores nas costas, na coluna. A vida sem água encanada é difícil, sem piso no chão, cozinhando na brasa e respirando fumaça. Mas a pobreza na cidade é muito pior do que a pobreza no campo. Em últmo caso, come-se o que se planta, há frutas por todo lado. E a violência, tanto do crime organizado quanto da polícia, é muito mais cruel na cidade. Por isso deve-se lutar por uma reforma agrária que dê ao trabalhador rural a opção de continuar no campo e produzir alimentos. E dar opção significa dar infraestrutura, água-luz-esgoto-saúde-escola-dignidade. Isso não é esmola, não é financiar o MST. É dever do Estado com a população. E isentar montadoras automobilísticas de impostos não é.

A reforma agrária no Brasil

Alguém viu? Não, não existe. O sistema de leis é armado para que tudo dê errado. Ouvimos histórias de sabotagens, quando prefeituras prometeram comprar uma safra, e na hora colheita sumiu. O agricultor sofre na mão dos atravessadores, vende a matéria-prima sem beneficiamento, o elo mais importante da cadeia é o mais frágil. O governo não entra nos assentamentos, não cumpre seu dever de prover serviços básicos de água, esgoto, energia, saúde, educação. Simplesmente joga a terra na mão do Sem-Terra e, que se vire se a terra é ruim, se é distante da casa.

Agronegócio

Fica muito claro porque hoje o agronégocio é o principal alvo do MST. Definindo agronegócio como a invasão do capital no campo, grandes bancos que investem seus lucros estratosféricos em terras para plantar commodities. Monoculturas extensivas não de alimentos, mas de eucalipto, soja, cana, trigo, tudo pra exportação in natura, cumprindo nosso histórico papel de fornecedor de matéria-prima. Se especulação com capital já é algo condenável, com comida devia dar pena de morte.

Estas monoculturas acabam com a biodiversidade, facilitando a proliferação de pragas, demandando cada vez mais defensivos químicos. Exaurem os nutrientes do solo, o que leva ao uso de mais e mais insumos químicos, estes também importados, que enchem nossa comida de veneno. A utilização de mão-de-obra é baixíssima, sazonal, o que termina de expulsar o trabalhador do campo, levando-os para as já lotadas metrópoles.

Enfim, a utilização da Terra como bem de capital, sugando-a ao máximo, em nome da “eficiência”, servindo apenas como meio de reprodução de dinheiro, só podia dar nisso mesmo.

Esses dias ví a capa da revista "Dinheiro Rural" (blargh!) na banca que tentava defender o agronegócio, dizendo que é possível existir fazendas com emissão zero de carbono. De chorar. Pro inferno com o carbono! Quero saber quantos brasileiros não têm Terra pra que esse sujeito lucre tanto no seu latifúndio a ponto de querer bancar uma de ecologicamente correto.

Felicidade

E por fim, pra terminar num clima bom. Dentre as várias pequenas coisas que me chamaram a atenção, destaco o momento em que subimos no trator pra ir ao mutirão no meio do mato. Eram 15 assentados e 2 assentadas, e nós estagiários éramos uns nove.

Estávamos indo fazer um trabalho coletivo, que não renderia dinheiro pra ninguém. Era só demarcação dos limites do assentamento. Mas o clima felicidade, alegria, era algo indescritível. Piadas a todo momento, todo mundo brincando um com o outro, saímos com grande atraso da hora marcada. Aí veio na minha cabeça uma hipotética cena de trabalhadores contratados pra ir, digamos, cortar cana. Será que estariam naquela alegria? Será que ousariam chegar atrasado ou fazer uma piadinha?

Podem ser pobres, pode faltar espírito coletivo, a vida pode ser dura. Mas são livres.

Pintura na parede do Pitinga

 

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