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A Construção de uma experiência de ES em bairro periférico de Salvador

13 de Agosto de 2019, 9:44 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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A CONSTRUÇÃO DE UMA EXPERIÊNCIA DE ECONOMIA SOLIDÁRIA EM BAIRRO PERIFÉRICO DE SALVADOR[i]

 

Débora Nunes*

 

RESUMO

 

O artigo  se propõe a uma discussão preliminar sobre o conceito de Economia Solidária, assim como do seu contexto de surgimento, como pano de fundo para a descrição e análise de um projeto-piloto aplicado no bairro de Vila Verde, em Salvador. O contexto do bairro e as condições de vida dos seus moradores também são apresentados, para um melhor entendimento do desenrolar da experiência. A implementação de uma Horta e de um Restaurante comunitários foram as bases do projeto, que se desenvolveu com a implantação de um Bazar e da venda de “quentinhas” e lanches para o público externo ao bairro. A dinâmica interna da experiência de Economia Solidária será detidamente  descrita e analisada, com o objetivo de contribuir para o melhor conhecimento dessas práticas que se espalham pelo Brasil e pelo mundo e que se pretendem um exemplo de que “um novo mundo é possível”.

 

 

 

PALAVRAS-CHAVE: economia solidária; pobreza urbana; desenvolvimento local; participação popular.

 

 

Economia Solidária: aproximações do conceito

 

O conceito de Economia Solidária surgiu na França nos anos 90, dentro de uma discussão maior acerca das transformações econômicas do final do século XX, em que, ao crescimento econômico vertiginoso não correspondeu um aumento generalizado do bem-estar dos homens e mulheres, mas, ao contrário, um aumento do desemprego e da exclusão social. Outros conceitos, mais conhecidos que Economia Solidária, se desenvolveram dentro de uma lógica de questionamento da economia liberal (século XIX) e neoliberal (século XX), mas também de interação com ambas, a exemplo de Terceiro Setor, Economia Social e Economia Popular. Como esses quatro conceitos são muito próximos e podem ser confundidos na prática, utilizaremos as definições de França (2001) para avançarmos em seguida na conceituação de Economia Solidária[ii].

 

Segundo França, o Terceiro Setor seria o “universo do privado, porém público”, que aparece  num contexto anglo-saxão, onde predomina a idéia da filantropia para fazer face aos problemas sociais e onde, particularmente nos EUA, a ação redistributiva das organizações sem fins lucrativos é paralela à ação estatal nesse campo. A Economia Social é formulada em um contexto europeu, no qual o Estado-Providência é a base do enfrentamento dos problemas sociais e onde se desenvolve uma economia com fins sociais baseada em grandes fundações, associações e cooperativas, que atuam hoje, segundo França, como ‘‘apêndice do Estado”. Já a Economia Popular seria oriunda do contexto latino-americano, tendo tênue fronteira com a economia informal e se constituindo em “formas de sobrevivência da população mais pobre”, em que o registro da solidariedade está na base das atividades econômicas, praticamente como um prolongamento da solidariedade familiar ou comunitária.

 

A Economia Solidária tem afinidades com os conceitos anteriores, mas também particularidades que a afirmam como conceito e prática particulares. Consistiria, ainda segundo o mesmo autor, em “iniciativas apoiando-se sobre atividades econômicas para a realização de objetivos sociais que concorrem a ideais de cidadania”. Ela tem herança histórica comum com a Economia Social, ou seja, européia, e dá ênfase especial ao aspecto democrático da organização do trabalho, em que predominam o estatuto associativista e, em alguns casos, o cooperativista. As iniciativas de Economia Solidária articulam a dimensão econômica, social e política em uma só ação coletiva e são experiências que se abrem para o espaço público, no sentido da busca de transformações sociais amplas.

 

Nessa busca de transformações sociais gerais baseadas em iniciativas particulares, o movimento sindical brasileiro produziu uma visão particular e esclarecedora sobre a Economia Solidária ao  afirmar: “Não se trata somente de gerar oportunidades de trabalho e renda. Trata-se de construir novas relações sociais baseadas nos valores da solidariedade e da cooperação, que fortalecem a participação do cidadão na sociedade” (Revista Debate Internacional – CUT, 2000).  Nesta idéia de construção de “novas relações sociais” está embutida a reorganização de um projeto de transformação social através da mobilização da sociedade civil, que se traduz tanto do ponto de vista da mudança do modelo político, visando à superação da democracia representativa em busca da democracia direta/participativa, quanto da mudança do modelo econômico visando reverter prioridades do Estado e incorporar critérios sociais à  idéia de eficácia econômica.

 

Com o intuito de contribuir para uma compreensão mais precisa do que diferenciaria a Economia Solidária de outras iniciativas no mesmo campo econômico e social, foram  levantados (consultando-se materiais de divulgação de inúmeras experiências que reivindicam o conceito) alguns princípios que podem ser observados como norteadores dessas iniciativas e que ajudam a caracterizá-las, mesmo que não estejam presentes em todas elas:

  • motivações de justiça e solidariedade em todas as atividades implementadas e vividas coletivamente, tanto nas de produzir e consumir  bens e serviços, como nas de distribuí-los  e comercializá-los;
  • referências de êxito distintas daquelas do capitalismo, já que a reciprocidade e a fraternidade nas relações interpessoais são almejadas;
  • processos de autogestão e autonomia, implicando lógicas de participação e estímulo ao engajamento;
  • criatividade e soluções alternativas  face aos problemas e negócios implementados, visando à inovação tecnológica, gerencial e de relações humanas;
  • preocupação com o meio ambiente e com um progresso sustentável para a geração seguinte, preservando os meios naturais hoje existentes.

 

Economia Solidária: apreendendo seu contexto

 

A partir desses referenciais gerais e antes de abordar a experiência concreta que tentaremos descrever e analisar, passaremos a discutir o contexto em que surgiu este conceito. Por que a expressão “Economia Solidária” surgiu no final do século XX, fazendo renascer antigas utopias? Há aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais a serem observados, que, mesmo sendo imbricados, podem ser desdobrados com o intuito de propor um melhor entendimento do fenômeno. Do ponto de vista econômico, observa-se uma vinculação com o aumento do desemprego; do ponto de vista político, com o enfraquecimento da idéia de um Estado do Bem-Estar Social; do ponto de vista social, com a intranqüilidade que representa a junção dos dois problemas citados, e do ponto de vista cultural, com pretendidas modificações identitárias que estariam em gestação no momento.

 

Grande parte dos países do mundo — como é o caso brasileiro — passaram a apresentar altas taxas de desemprego ao longo da década de 90[iii].  Tais índices são contemporâneos de uma economia globalizada, gerida numa ótica de livre comércio  radical. A globalização liberal, mesmo não sendo uma novidade, foi atualizada na última década pelas operações on-line, que multiplicaram o alcance dos contatos internacionais, favorecendo o mundo das finanças e a deslocalização das empresas, fatores que, por sua vez, realimentam as origens do desemprego. Há uma certa convicção, entre muitos autores que se debruçam sobre o tema, de que os empregos eliminados ao longo do processo de reestruturação produtiva e de crise econômica das últimas décadas do século XX dificilmente retornarão, a menos que ocorra um expressivo crescimento da atividade industrial e dos serviços. Por isso, tem surgido com alguma expressão a idéia de que se deve buscar ocupação e não necessariamente emprego, trazendo à tona a discussão sobre alternativas de organização dos trabalhadores por uma via autônoma e solidária como as iniciativas de Economia Solidária, capazes de melhorar as condições de vida da população envolvida.

 

           Concomitante a isso, tem-se a crise do Estado de Bem-Estar que veio aprofundar o difícil quadro social da nossa época. Esta crise é advinda da situação falimentar de muitos estados nacionais, mas também da intensa campanha ideológica feitas nas duas últimas décadas pelos arautos do neoliberalismo. O esvaziamento do modelo de políticas sociais intensivas de caráter público desmonta uma das soluções antes vistas como possíveis para as crises periódicas do capitalismo. Certamente o esvaziamento desta alternativa, a falta de perspectiva de retomada de políticas de pleno emprego ou de redução do desemprego no curto prazo teriam permitido o fortalecimento de uma certa tendência, em particular de solidariedade. Junta-se a isso a importância cada vez maior que a organização da sociedade civil, de forma autônoma — nem via Estado, nem via mercado —,  vem tendo, e vê-se o surgimento de práticas de solidariedade civil, que, mesmo não sendo novas na história, tomam outro significado e dimensão neste momento.

         

A essas questões econômicas, políticas e sociais junta-se uma dimensão cultural que poderia ser entendida como pano de fundo de todos os fatores citados anteriormente. Desse ponto de vista, a Economia  Solidária seria um renascer de utopias e de práticas que vêm dos  primórdios da humanidade e atravessam toda a história humana: o que Marx e Engels chamaram de “comunismo primitivo”; as corporações profissionais da idade média; as organizações  pré-sindicais do tipo guildas; as experiências ditas de “socialismo utópico”, de Saint Simon, Owen e Fourier; os diversos tipos de cooperativas de produtores, chegando às comunidades hippies de “paz e amor” e às comunidades esotéricas da atualidade. Em todas essas experiências, que embora tão diferentes procuram estabelecer uma produção coletiva com base na solidariedade, podem-se identificar elementos do que estamos chamando hoje de Economia Solidária.

 

Dentro dessas experiências que podem ser consideradas “antepassadas” da idéia atual de Economia Solidária,  os ideais socialistas — de propriedade coletiva e emancipação humana dos valores de competição e exploração ­— são, sem dúvida, uma contribuição das mais importantes. A diferença principal entre a prática real do socialismo vivido no século XX e as demais experiências citadas é que no campo socialista se tentou estipular uma tática e uma estratégia para generalizar a proposta numa escala nacional (e mesmo internacional), enquanto as outras experiências foram implementadas de forma pontual. Esse processo de generalização se baseou na tomada do poder político liderada por um partido e na manutenção desse poder via um Estado socialista. Na tentativa de generalização de uma prática, feita de forma impositiva, o socialismo real deixou subjacente a idéia de que os fins justificam os meios. O fracasso das experiências do socialismo real significou uma fragilização dos meios utilizados e, também, dos fins, levando aqueles que lutaram por essa idéia de volta a uma encruzilhada, a partir da qual é necessário reconstruir o caminho.

 

O ressurgimento, na atualidade, dessa idéia antiga de uma Economia Solidária parece estar vinculado também ao processo de hiperdesenvolvimento dos valores capitalistas: a propriedade, o individualismo e a competitividade. Ao chegar ao paroxismo do consumo e ao reino da propaganda, da mercantilização de todos os aspectos da vida humana, da competição exacerbada, da corrida contra o relógio, a sociedade demonstra a vacuidade desses valores como fundadores das personalidades através das doenças ditas “modernas”: stress, depressão, síndrome do pânico, anorexias, etc. Para muitos, este sentimento de  inadequação se manifesta também sob a forma de um vazio existencial angustiante.

 

A reação social a esse estado de coisas vem se dando pelo ressurgimento do ideal de solidariedade, retomando-se bandeiras históricas. Resgatam-se valores da Revolução  Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, e o ideário socialista do homem como capital mais precioso, mas com uma compreensão nova. A idéia de uma nova espiritualidade, que implica a busca de uma harmonização pessoal com o universo e com os outros,  é a novidade. Todos os rebeldes de antes precisaram romper com a espiritualidade porque ela era manipulada pela religião como instrumento de poder. Num momento em que na maior parte dos países do mundo  já se completou a desvinculação Igreja-poder, via Estado laico, a espiritualidade toma um aspecto de escolha pessoal, que não precisa mais ser contestada quando se questiona o status quo. Dessa forma, ela pode revelar todo seu potencial revolucionário de busca de uma existência plena, já que é impossível haver harmonização pessoal junto com miséria, violência, desigualdade e injustiça.

 

Certamente a idéia de um “homem novo” não é privilégio dos tempos atuais. Os ideais republicanos e socialistas falavam de um  homem novo, solidário, que seria forjado, socialmente, pela razão. O “homem novo” de hoje seria forjado, ao mesmo tempo, por arranjos sociais novos, mas também por uma espiritualidade revalorizada, definidora da “Era de Aquários”. Certamente, no mundo hipermercantilizado em que vivemos, esta “espiritualidade revalorizada” é vendida na lojinha da esquina, mas é também acalentada com sinceridade e vigor por muitos dos novos rebeldes, adeptos da busca de um mundo novo, gerido participativamente e baseado numa Economia Solidária (BOFF, 2001).

 

Tudo isso soa romântico diante da força do capital, dos interesses financeiros, da política manipulada, da corrupção, da ignorância e da miséria que se perpetua para grande parte dos humanos. Talvez, diante da magnitude da tarefa de transformação social, apareça a consciência de que, para os que se opõem a este estado de coisas, resta a velha e boa guerra de guerrilhas: pequenas ações — locais e globais — que vão minando o grande exército. A diferença é que esta imagem “guerreira” vem também incorporando, pouco a pouco, a busca da vivência da amorosidade, da vinculação dos ideais globais de solidariedade à prática cotidiana de compartilhar, e de novas lógicas que vão além da racionalidade instrumental analítica. Nesta luta, ou neste desafio, melhor dizendo, ao mesmo tempo em que cada desafiante se contrapõe a um estado de coisas de forma firme, racional, inteligente, se propõe também a mudar a sociedade de forma doce, relacional e espiritual.

 

É neste contexto que entram a idéia e as práticas da Economia Solidária, que têm se mostrado uma das  contestações mais interessantes ao modelo econômico atualmente vigente, pois questionam, na sua própria existência cotidiana, as bases do modelo excludente que deu origem à pobreza e exclusão. Sua principal força talvez seja o exemplo "subversivo" de atuar na economia sem submeter-se aos princípios capitalistas de competitividade exacerbada e lucro privado, dentro de uma lógica de cooperação.  Busca-se a origem grega da palavra “economia”, que não está na idéia de negócios, como hoje, mas de resolução de problemas domésticos (oikonomia de oikos, casa), o que remete a um entendimento da economia mais voltado para a sobrevivência  e para o bem-estar da humanidade (ARRUDA, 2000). Por outro lado, a literatura aponta também que até hoje essas práticas têm pequeno alcance e são carregados de voluntarismo. Algumas polêmicas são encontradas na literatura acerca da origem e destino das práticas de Economia Solidária. Para alguns elas são vistas como uma alternativa objetiva (SINGER, 1999) de estruturação socioeconômica para a humanidade. Outros questionam se elas seriam uma tentativa de  "controle político dos miseráveis"  ou, ao contrário, uma "utopia experimental" (VAINER, 2000).

 

É pensando que essas experiências podem gerar sobretudo outras formas de relações econômicas e humanas, marcadas pela solidariedade, e que elas possam significar “sementes (que) começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante”  como diz Milton Santos (2000) em um texto-testamento —, que propomos estudá-las em profundidade — tanto as de cunho micro com as macro — para compreender melhor sua dinâmica interna e seu alcance socioeconômico. Após esse vôo conceitual e contextual, pretende-se, neste texto, partir das evidências empíricas encontradas num caso concreto  para contribuir com o entendimento dessas experiências, já que elas são novas e ainda recentes as análises sobre as mesmas.

 

 

O Projeto Cooperativa de Alimentação Popular do bairro Vila Verde

 

O projeto-piloto em estudo foi iniciado em março de 2001, com dois tipos de objetivo: intervenção e pesquisa[iv]. De um lado, buscou-se incentivar a organização, em cooperativa, de um grupo de habitantes do bairro Vila Verde (cerca de dez famílias), para produzir alimentos in natura numa Horta Comunitária, distribuí-los em forma de refeição preparada em um Restaurante Comunitário e vender o excedente. O princípio básico da experiência seria o espírito fundador da Economia Solidária: iniciativas econômicas auto-sustentáveis que não visem prioritariamente ao lucro, mas sim à sobrevivência dos seus membros, dentro de uma lógica de solidariedade.

 

Do ponto de vista prático, propunha-se que a Horta pudesse funcionar nas imediações do próprio bairro, em terra devoluta e cultivável. A água viria de um charco próximo, e em épocas de seca muito intensa buscar-se-ia viabilizar água encanada para irrigação. Previa-se ser necessário proteger a plantação com uma cerca de arame feita com troncos da própria mata existente nas imediações. Os equipamentos e instrumentos de trabalho seriam emprestados (enxadas, carro de mão, sementes, adubo, etc.) e, pouco a pouco, à medida do sucesso da iniciativa, estes seriam comprados com recursos próprios.

 

Para o Restaurante, pensava-se no aluguel de um local no próprio bairro e na busca de doações de equipamentos e instrumentos de trabalho (fogão, geladeira, freezer, mesas e cadeiras, panelas, pratos, copos, talheres e demais acessórios de cozinha). Para a manutenção cotidiana seriam buscadas doações e feitas compras de alimentos, assim como de material de limpeza. Alguns membros da Cooperativa seriam destacados para a atividade do Restaurante, devendo haver alguma rotatividade com o trabalho da Horta. Uma das premissas de funcionamento do Restaurante seria a cobrança de R$ 1,00 por refeição para os habitantes do bairro e de R$ 0,50 para os filhos e cônjuges dos membros da Cooperativa, que seriam alimentados gratuitamente. 

 

Para começar uma experiência-piloto, sem nenhum provimento financeiro inicial, esperava-se que as diversas inserções sociais da comunidade e do pesquisador, desenvolvidas nos últimos cinco anos de atuação comunitária, pudessem ajudar a mobilizar pessoas e instituições. Contava-se com a experiência de muitos habitantes, advinda da mobilização ao trabalho coletivo feita anteriormente em uma pesquisa-ação vinculada à produção de uma tese de doutorado, que será comentada posteriormente[v]. Previa-se ainda que pudessem ser feitos acordos de empréstimo de materiais com instituições atuantes no bairro — uma creche e uma escola comunitárias — que seriam posteriormente ressarcidos, quando a iniciativa estivesse se auto-sustentando.

 

Além da construção de uma iniciativa de caráter econômico, no sentido de busca da sobrevivência e bem-estar dos membros e prestação de serviço à comunidade, o desenvolvimento do potencial pedagógico da iniciativa foi muito realçado no projeto. Pensava-se, por exemplo, em construir o regulamento interno da Horta e do Restaurante paulatinamente, junto com as famílias e pessoas envolvidas, em estreita colaboração com os pesquisadores. Ao observar e estudar os fundamentos das decisões coletivas, os pesquisadores envolvidos produziriam conhecimentos que alimentariam a existência da linha de pesquisa citada.

 

O funcionamento acadêmico seguiria assim a metodologia de pesquisa-ação, que exige que os pesquisadores sejam partícipes da experiência prática — estimulando seu desenvolvimento — e, ao mesmo tempo, que observem suas implicações antropológicas e as relações sociais e econômicas ali estabelecidas. Dessa forma, compreende-se melhor a dinâmica interna das iniciativas e produzem-se indicações que otimizam a prática concreta e análises que ajudam a um melhor entendimento dos fenômenos em questão. As bases metodológicas desse trabalho de campo seriam aquelas da Antropologia Urbana e da Pesquisa-ação, notadamente as de fundamentação latino-americana, na linha de Orlando Falls Borda, Paulo Freire e Carlos Rodrigues Brandão (FALS BORDA, 1986 e 1987; FREIRE, 1982; BRANDÃO, 1986). 

 

 

O contexto do bairro

 

       
 

 

 
 

 

 


O Vila Verde localiza-se na região chamada “Miolo” de Salvador, situada entre a  Av. Paralela  (uma das principais vias da cidade) e a BR 324, principal acesso urbano. Trata-se de uma área de ampliação das fronteiras de urbanização da cidade, que mantém ainda algumas características rurais, como a presença de extensas áreas verdes. Essa região concentra parte significativa dos grandes conjuntos habitacionais da cidade, entre eles o Conjunto Habitacional Mussurunga, que deu nome à microrregião onde se encontra o Vila Verde. A pobreza da população local é uma característica evidente na presença de grande número de favelas e invasões. Pesquisa feita durante a tese de Nunes (2001) mostra que 80% das famílias do Vila Verde sobrevivem com até um salário mínimo e que há 40% de desempregados.

 

O Conjunto Vila Verde foi construído pela Prefeitura de Salvador para abrigar famílias vítimas dos graves acidentes de desabamento de terra ocorridos durante as chuvas de maio e junho de  1995. As 500 famílias que vieram habitar esse bairro eram originárias de vários outros bairros populares de Salvador. O Conjunto está situado numa colina e se organiza em torno das ruas “A” e “B”, a partir de duas dezenas de caminhos de pedestres que, partindo dessas vias, descem a encosta em direção aos vales alagados que cercam a colina (ver foto aérea). O núcleo urbano conta com cerca de 500 lotes de 84 m2, com casas de 20m2, chamadas “casas embriões”, colocadas umas ao lado das outras ao longo dos caminhos, em lotes de 6 metros de largura por 14 metros de comprimento. O sítio urbano, de onde se pode perceber o mar,  é muito agradável, cercado de verde, e conta com um clima muito arejado. A superfície total é de mais ou menos 15 hectares.

 

Nesse bairro, desde 1996 vêm-se realizando diversas experiências, iniciadas em torno do trabalho de campo de Nunes (2001) sobre metodologias participativas de intervenção urbanística. Nesse primeiro período, foram fundadas uma Associação de Mães, uma Escola de Alfabetização de Adultos e uma Creche Comunitária, com apoio de diversas pessoas e grupos, de ONGs, de empresas, todos atuando em estreita vinculação com os moradores sob a liderança de um animador externo e dos líderes locais. Num segundo momento, a partir de 1999, foi fundada uma ONG, a Rede de Profissionais Solidários pela Cidadania (REDE), que vem acompanhando essas iniciativas e incrementando outras — como um Centro de Alfabetização de Crianças — juntamente com a comunidade.

 

 

O desenrolar da experiência

 

A idéia de uma experiência-piloto de Economia Solidária no Vila Verde, foi muito bem recebida pelos líderes locais contactados primeiramente, Ada Borges e Domingos Leite, aos quais foi solicitado que entrassem em contato com os demais interessados. Esses dois líderes já tinham experiência de trabalho coletivo pois são oriundos da experiência anterior, já comentada, e esse fato permitiu que a iniciativa se desenvolvesse rapidamente, assim como a relação estreita do pesquisador com a comunidade, que dava legitimidade à proposta. Logo em seguida, Ada e Domingos buscaram mobilizar um grupo de habitantes do bairro, que já no dia seguinte foram visitar áreas contíguas ao bairro para escolher o local da futura Horta. Essas pessoas fazem parte do grupo de habitantes que por diversas vias estão ligados aos projetos comunitários existentes no bairro (principalmente a creche e escola comunitária).

       
 

 

 
   

 

 
 


A rapidez com que os líderes passaram à ação de mobilização e a facilidade de obter adeptos estão intimamente ligados ao sucesso das iniciativas de trabalho comunitário anteriores. Ao longo de todo o processo, essa vantagem foi significativa para superar os problemas do cotidiano. Um exemplo disso foi a discussão, já no primeiro dia, acerca do melhor local para a Horta. Foi feita uma votação para saber a opinião da maioria e verificou-se uma facilidade incomum para proceder-se a esse recurso democrático, o que se deve à experiência da maioria das pessoas com processos coletivos anteriores em que a preocupação com um aprendizado dos rituais da democracia direta estava presente. A capacidade de iniciativa testada anteriormente facilitou também uma passagem imediata à ação, já que, logo no primeiro dia, se construiu uma precária ponte para acessar o terreno escolhido, pois esse fica do outro lado do córrego que limita o bairro.

 

O terreno e a Horta

 

Essa experiência-piloto só foi possível porque o bairro é contíguo a uma área da empresa pública Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), por onde passam linhas de alta tensão e sob as quais não podem ser construídos imóveis. No princípio os fiscais da CHESF interpretaram aquela movimentação de pessoas no terreno — denunciada por um morador do bairro — como uma tentativa de invasão e quiseram desalojar os mutirantes. Esse primeiro revés desmotivou a todos, mas Ada procurou explicar as intenções do grupo aos fiscais, mostrando-lhes todas as atividades comunitárias do bairro, o que acabou por convencê-los da seriedade de propósitos do projeto da Cooperativa. Ao verificar que a Horta não ofereceria nenhum perigo às linhas da CHESF, além de ser um empecilho a invasões do terreno, os fiscais encaminharam os habitantes aos escalões superiores da CHESF.

 

Esse primeiro contato para obter permissão oficial de ocupar o terreno foi feito exclusivamente pelos habitantes, mostrando a capacidade dos líderes de relacionar-se externamente e fazer valer os projetos do grupo. A liberação da área veio a seguir, com a solicitação de que nada fosse construído, que não se plantassem árvores grandes nem se trabalhasse em dias de chuva por causa do risco elétrico. Até hoje este compromisso é fiscalizado pelos funcionários da CHESF, que intervêm, por exemplo, se os Cooperativados vão à horta em dias chuvosos.

 

Durante um bom tempo, cerca de um mês, o principal trabalho era a limpeza do terreno escolhido, ganhando espaço da mata, e consertos contínuos da ponte de acesso sobre o charco. Essa ponte tornava-se ponto de estrangulamento da iniciativa a cada dia, pois o material utilizado se degradava continuamente no contato com a água. Durante esse trabalho, contava-se semanalmente com a presença do pesquisador, que promovia discussões acerca do significado da iniciativa, principalmente das palavras Economia e Solidariedade, e contribuía para dar unidade e motivar o grupo.

 

O trabalho se dava sempre pela manhã, com ferramentas que haviam sido conseguidas segundo as possibilidades de cada um e com o empréstimo daquelas da creche e de vizinhos. A limitação do número dessas ferramentas e, em alguns casos, a má conservação de algumas delas começou a se tornar um problema. Porém, o fato de os membros da “pré-Cooperativa” saberem que não havia nenhuma disponibilidade de recursos fazia com que se fosse “dando um jeito” até surgir alguma solução. Esse acordo demonstra que, desde o início, compreendia-se que a iniciativa era autônoma e que não era possível encontrar ajuda externa facilmente.

 

As regras de funcionamento foram sendo elaboradas gradativamente. O tempo de trabalho diário e a divisão de tarefas de acordo com a vocação de cada um são exemplos das primeiras decisões coletivas. As tarefas do empreendimento são árduas, principalmente para pessoas sem tradição de agricultura, como é o caso dos moradores de Vila Verde. Na Horta, é necessário um trabalho contínuo de plantar, molhar, capinar, cercar, feito geralmente sob o sol; por isso, o turno de trabalho definido foi o matutino, sendo que algumas pessoas foram destacadas para voltar à tarde para molhar as sementes e brotos.

 

O problema da irrigação se colocou logo, quando foi verificado o estado da água do charco, completamente poluída pelos próprios esgotos do bairro, que aí são despejados diretamente. Esse foi o primeiro evento que demonstrou a distância entre projeto e possibilidade de realização concreta, exigindo criatividade. Depois de várias tentativas de “filtrar-se” a água do charco foi tomada a decisão de construir-se um poço, tendo-se encontrado água abundante e de boa qualidade, o que significou a salvação das primeiras leiras da horta. É com essa solução que se tem contado até o momento. Decorrente disso, o primeiro investimento importante realizado, com a ajuda de doações particulares de pessoas ligadas à REDE e ao pesquisador, foi a compra de material elétrico para a instalação de uma bomba  — comprada de segunda mão na própria comunidade — que leva água do poço à Horta.

 

Num primeiro momento, diversas dificuldades tiveram que ser enfrentadas pelos cooperativados: a destruição das primeiras leiras por bichos silvestres e por vacas de uma pequena fazenda vizinha, a praga das formigas que comeram os primeiros brotos, as constantes quebras da bomba, a falta de chuva. A presença de Seu Vadu, um ex-agricultor de 77 anos, foi importantíssima para que a experiência vingasse, pois sua experiência, perseverança e dedicação à Horta contagiou os demais nos primeiros tempos. Um estímulo externo à iniciativa foram as diversas visitas de interessados no tema da Economia Solidária. Esses visitantes, de modo geral, mostraram tal entusiasmo com a Horta — atividade pouco comum no meio urbano — que, de uma forma ou de outra, acabaram contribuindo materialmente para o seu desenvolvimento. O problema da ponte, por exemplo, foi finalmente resolvido com uma construção relativamente sólida, feita com a ajuda de um grupo de estudantes de pós-graduação que visitaram a iniciativa.

       
 

 

 
 

 

 


A implantação e o funcionamento do Restaurante

 

O Restaurante comunitário começou a funcionar já no segundo dia da iniciativa, apesar de ter-se previsto que isso só ocorreria quando a Horta já estivesse produzindo.  Ele se impôs como sustentáculo do próprio trabalho da Horta, já que os envolvidos trabalhavam durante toda a manhã e precisavam se alimentar em algum lugar. A idéia de cobrar R$ 0,50 pela refeição dos familiares dos cooperativados foi impossível de ser concretizada por absoluta impossibilidade financeira dos mesmos, tendo-se acertado que os filhos menores e parentes idosos ou doentes também poderiam comer de graça. É importante voltar a realçar que a dinâmica da realidade nunca pode ser completamente prevista num projeto, mas que a possibilidade de fazer-se ajustes contínuos é o que demonstra a flexibilidade do projeto e a autonomia dos atores, sem o que iniciativas desse tipo são destinadas ao fracasso.

 

Por outro lado, como estava previsto no projeto, o apoio da Creche e da Escola comunitária foi fundamental para o início do  funcionamento do Restaurante Comunitário. O empréstimo de gêneros alimentícios e utensílios permitiu a improvisação, na casa de Ada, de um espaço onde se confeccionava o almoço de todos, logo após o trabalho na Horta. Essa solução inicial não poderia perdurar para não comprometer o funcionamento das duas instituições comunitárias, passando a ser prioritária a questão de angariar fundos para a manutenção do Restaurante. Passou-se a buscar doações de gêneros alimentícios entre os comerciantes locais, assim como à venda de pratos, a R$ 1,50, a pessoas que pudessem pagar (comerciantes) para subsidiar, a cada dia, as compras do dia seguinte.

A partir da iniciativa dos líderes, conseguiu-se emprestado um salão próximo, que estava à venda, para funcionamento do Restaurante. A partir de então o projeto passa a ter uma sede provisória, visível para a comunidade, o que serviu para aumentar a clientela do Restaurante. Foi sugerido também um Bazar permanente no local, como forma de conseguir mais recursos para sua manutenção. Essa idéia veio das experiências anteriores, em que muitos Bazares foram feitos em finais de semana visando arrecadar recursos para o financiamento de atividades comunitárias. A existência de um local fixo permitiu o funcionamento contínuo do Bazar, apoiado por doações de simpatizantes externos à iniciativa.

Como já foi assinalado, o Restaurante e a Horta passaram a ser a motivação para visitas diversas e essas visitas, por sua vez, eram uma motivação importante para os mutirantes. O caráter de pesquisa-ação da experiência motivou o interesse de universitários e muitos estudantes passaram a contribuir de alguma forma com a iniciativa, seja doando dinheiro e peças para o Bazar ou, simplesmente, pagando um pouco mais caro pela comida do Restaurante. Algumas tentativas de contribuição organizada de alunos da Universidade Salvador foram feitas e funcionaram por um tempo, mas acabaram se diluindo até desaparecer completamente.

       
 

 

 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Como no caso da Horta, a manutenção do Restaurante também significa um volume de trabalho considerável, pois é preciso limpar, preparar a comida, servir, lavar pratos, fazer compras para o dia seguinte e recomeçar tudo a cada dia. Além disso, é preciso contabilizar a entrada e saída de gêneros e de dinheiro, o que se revelou logo uma atividade complicada, que será discutida mais tarde. O volume de trabalho, tanto na Horta quanto no Restaurante, motivou algumas saídas de cooperativados nos primeiros tempos, pois a idéia de um retorno financeiro a longo prazo não se impõe facilmente. Discutiremos a seguir o desenrolar das relações entre os membros da Cooperativa ao longo do tempo, no enfrentamento desses e de outros problemas.

 

O comportamento dos participantes da experiência

 

Observe-se que as pessoas que se vinculam inicialmente a uma proposta como esta têm alguma afinidade pessoal com os líderes do bairro que as convidaram a participar, sendo esta a primeira condição de aproximação. A busca de uma alternativa de sobrevivência  e o desejo de participar de uma dinâmica coletiva parecem ser as motivações mais comuns para que as pessoas se vinculem ao projeto, sendo que o prazer do trabalho agrícola também foi citado por alguns como motivação para o “pertencimento” ao projeto. Pode-se deduzir também que, com o desenvolvimento da iniciativa, um certo prestígio é conferido ao participante, em decorrência do ir e vir de visitantes no bairro e dos empreendimentos (a Horta, o Restaurante, o Bazar) que se consolidam no cotidiano e que despertam, no mínimo, curiosidade. Tal fato parece seduzir alguns, pelo menos por algum tempo, e esses se aproximam e se afastam em seguida, se outras motivações mais sólidas não aparecem.

 

As pessoas que fazem parte da Cooperativa são majoritariamente adultos do sexo feminino, e podem ser divididos em três grupos segundo sua permanência no processo. Há os que são constantes desde o começo e podem ser chamados de “linha de frente”: contam cinco pessoas, incluindo o animador externo. Os majoritários são aqueles que mantêm um vínculo instável, ora participam, ora não: podem ser chamados de “intermitentes”, porque sempre voltam. Outros têm participação eventual, em momentos de maior atividade, quando são solicitados a estar presentes, mas depois se afastam: são os “ocasionais”. Há ainda aqueles que se vinculam à experiência por um tempo, geralmente de modo assíduo, como os de “linha de frente”, e que acabam por se afastar numa dinâmica de conflito com os líderes, que será discutida posteriormente.

 

Podemos observar que os membros que formam a “linha de frente” da iniciativa têm em comum o fato de terem sua sobrevivência já garantida por outra atividade. Essa condição de dedicação contínua ao projeto é aquela dos líderes, mas também de pessoas sem essa característica, o que pode indicar que a motivação para o trabalho coletivo se baseia mais numa vocação para este que na posição de destaque dentro do mesmo. Os “intermitentes” têm  uma vocação clara, mas não estão tão imbuídos do compromisso ou não podem exercê-lo por questões materiais, ou seja, por necessitarem de realizar outras ocupações ou “biscates” para sobreviver. Já os “ocasionais” se aproximam do projeto quase por acaso e se vão também muito rapidamente.

 

Durante o período aqui analisado, de um ano, cerca de 40 pessoas foram diretamente vinculadas à experiência, o que é um número expressivo. Tal número, porém, nunca foi conseguido de maneira concomitante, e esta é uma das dificuldades do projeto, já que, por uma definição legal, é preciso um mínimo de 20 pessoas para formar oficialmente uma Cooperativa. Esta dificuldade leva à questão do porquê da ausência de motivação para participar de um projeto que tem uma vantagem inicial bastante interessante à primeira vista, que é a alimentação gratuita para o participante e seus filhos. Teoricamente, qualquer pessoa passando por um momento de grande dificuldade financeira poderia querer participar do projeto para conseguir comida, mesmo que apenas de forma emergencial, e isso não acontece.

 

As motivações para o abandono também precisam ser estudadas. De modo geral o afastamento daqueles que tiveram um vínculo mais forte se dá por motivos variados, que vão do cansaço  com o trabalho exaustivo, passando por conflitos pessoais e por disputas de liderança, até o fato de não vislumbrarem futuro para a iniciativa. Em alguns momentos particularmente duros da experiência sobrevem o desânimo. Para muitos membros, devido a questões que discutiremos posteriormente, a vantagem comparativa de estarem trabalhando numa iniciativa própria, em que tudo é de todos e em que eles estão construindo um pequeno patrimônio coletivo, não é percebida. Na mesma ordem de motivações para o abandono está a baixa remuneração, seja aquela obtida pelos dividendos produzidos pela própria iniciativa, que é quase simbólica, assim como o montante total da “bolsa” de apoio aos membros assíduos, conseguida com simpatizantes da iniciativa e que será comentada mais tarde.

 

Uma outra interrogação, ainda sem resposta, diz respeito ao fato de a nova condição da Cooperativa, quando esta começou a se consolidar e passou a distribuir dividendos semanais, mesmo que pequenos, não ter mudado a filiação ao projeto. Observa-se que o perfil numérico dos “linha de frente”, “intermitentes” e “ocasionais” se mantém, não sendo o dinheiro uma motivação maior de vinculação ao projeto. Mais intrigante ainda é que a saída de alguns membros, pelos mais diversos motivos (mas sem conflitos pessoais explícitos e sendo mantida uma relação cordial com a Cooperativa), não foi revertida nem em momentos de absoluta falta de recursos para a sobrevivência das famílias envolvidas. Pessoas que sabem que a Cooperativa mantêm suas portas abertas e que há trabalho para todos, não voltam a participar nem quando os filhos estão passando fome.

 

O entendimento dessas questões deve ser buscado em uma visão geral da vivência da pobreza e suas conseqüências, que foi discutida na tese citada acima, desenvolvida exatamente nessa comunidade, trabalhando a questão identificada como a “interiorização do estigma da pobreza”. Várias das características da experiência ora descrita vêm corroborar o que se verificou no estudo referido, particularmente no que concerne às decorrências da contínua restrição financeira, da baixa escolaridade, da moradia em locais degradados e/ou distantes e da  pouca privacidade pessoal, familiar e grupal, entre outros. Essas vivências têm conseqüências variadas — que vão desde uma grande capacidade de solidariedade a um contínuo sentimento de impotência — e tornam-se ainda mais marcantes no convívio social dos pobres com a sociedade incluída.

 

Para falar de maneira simplificada desta relação pobres/sociedade, poderíamos dizer que esta última os estigmatiza a partir das suas características físicas e comportamento social, atribuindo-lhe uma imagem negativa, que, em última instância, é uma identidade de “perdedor”. Essa imagem estigmatizada, vivida continuamente, acaba introjetada e resulta numa ampla gama de comportamentos que denotam baixa auto-estima (FREIRE, 1999). Uma conseqüência dessa auto-imagem negativa pessoal é que ela acaba por atingir o grupo, na medida em que causa desconfiança na capacidade deste de realizar seus projetos, favorecendo as desistências do projeto coletivo.

 

Por outro lado, características do cotidiano dos pobres, vinculadas às contínuas preocupações com a sobrevivência e conseqüente horizonte de vida restrito ao tempo presente e ao futuro imediato, e, ainda, à pequena mobilidade no espaço da cidade, que implica um grande isolamento no próprio grupo social (NUNES, 2001), dificultam a iniciativa em pauta. Essas características não estimulam a perseverança, a visão de  longo prazo, a autoconfiança  pessoal e grupal ou os contatos externos, necessários às iniciativas coletivas. A inexperiência com esse tipo de vivência de projetos coletivos, que exigem o conhecimento dos rituais da democracia direta, é também um entrave para os recém-chegados, os quais, de certa forma, fazem “atrasar” o desenrolar das atividades, até que aprendam esses rituais ou se afastem do projeto.

 

Os conflitos internos e a relação com líderes

 

É importante salientar a existência de um certo número de  conflitos internos, de natureza interpessoal, que foram causa de muitas desistências ao longo do percurso. As dificuldades de relacionamento são uma constante e, de modo geral, vinculam-se ao comportamento das pessoas no grupo. As bases das disputas internas são as idiossincrasias pessoais, que motivam conflitos em qualquer grupo humano, mas que no caso de uma experiência num contexto popular parecem ser ainda mais agudas. As diferenças de dedicação de cada um são uma das causas mais constantes de brigas: ouvem-se muitos comentários do tipo “fulano fala demais e trabalha de menos” ou reclamações acerca de atraso na hora de chegar ao trabalho, entre outras.

 

Em relação aos líderes, as relações são da ordem da legitimação ou da ordem da competição. Na legitimação reconhece-se o papel do líder como mobilizador e dirigente e convive-se em harmonia com esse papel, numa relação que pressupõe muita confiança. A característica “mobilizadora”  dos líderes da experiência — em contraste com o autoritarismo dos líderes ‘fortes’ (NUNES, 2001) — é um dos pilares de sustentação da Cooperativa. Nunes trata da existência de uma tendência humana de “busca de reconhecimento” (TODOROV, 1995), que seria ainda mais aguda na vivência de situações de restrição do reconhecimento, como é o caso da vivência da pobreza. Neste contexto, podemos observar que certas pessoas têm continuamente uma atitude de tentar sobressair no grupo, competindo com os líderes reconhecidos e forçando uma liderança que não têm, o que acaba por cansar os demais, gerar disputas e, finalmente, uma “depuração” daquele membro “incômodo”.

 

Por outro lado, alguns episódios são ilustrativos de outro tipo de conflito comum nessas experiências, quando não há um reconhecimento do papel do líder, principalmente por parte dos recém-chegados. A incompreensão e a desconfiança foram causa, por exemplo, de um conflito em um grupo de adolescentes de uma banda no bairro, que se aproximaram da iniciativa, mas ficaram por pouco tempo, por desconfiarem da condução financeira do processo. Esses conflitos, mesmo que raros, trazem enorme desgaste aos líderes: eles se sentem injustiçados, uma vez que se sacrificam muito, fazendo um enorme esforço pessoal para manter a iniciativa em funcionamento. Além de darem o exemplo pessoal de dedicação e trabalho extremos, eles se expõem a críticas, por exemplo, quando tentam fazer valer as regras de funcionamento do grupo decididas conjuntamente, o que é um dos papéis do líder.

 

A relação do grupo com a comunidade externa contém elementos de conflito e de cooperação. O primeiro conflito da Cooperativa deu-se quando um morador denunciou à CHESF a ocupação do terreno. Essa denúncia de uma suposta “invasão” relacionou-se com disputas antigas de liderança que existem no bairro. Porém, de modo geral, a iniciativa tem tido apoio da maioria da comunidade, o qual se explicita, por exemplo, na receptividade que o grupo encontra quando se dirige aos comerciantes buscando ajuda na forma de doação de gêneros alimentícios para o Restaurante ou quando pede emprestadas ferramentas para o desenvolvimento das atividades. A evidência maior do respeito da  comunidade para com a iniciativa é o fato de a área da Horta ser respeitada. Mesmo sendo contígua ao bairro e sem contar com proteção à entrada, o único ato de vandalismo e roubo da colheita que aconteceu durante o processo foi feito por pessoas alheias à comunidade.

 

 

A contabilidade das ações e os negócios da Cooperativa

           

Um problema constante do processo de gestão da Cooperativa foi a dificuldade dos membros de prestar contas corretamente dos gastos, principalmente daquelas relativas à cozinha e ao Bazar, que implicam uma contabilidade cotidiana. Essa contabilidade é dificultada pela baixa escolaridade dos membros e pelo fato de ser uma novidade no cotidiano das pessoas, já que, dificilmente, eles gerem a economia doméstica num espírito de receitas e despesas. Esse comportamento decorre da inexistência, para a maioria, de uma fonte de renda fixa, como um salário, já que a maioria dos cooperativados encontra-se desempregada ou faz biscates.

 

Outro aspecto da questão que merece uma investigação mais profunda é a dificuldade de separar o pessoal do coletivo. Observa-se que na relação com os fundos que entram e saem cotidianamente na Cooperativa é freqüente uma certa imprecisão nas contas. Tal imprecisão não pode ser encarada como desvio de dinheiro, já que ela se apresenta tanto no sentido do dinheiro da Cooperativa suprir uma necessidade pessoal, como no de ser necessário que a Cooperativa seja suprida por recursos pessoais. Esse fato é conhecido dos estudiosos da Economia Popular e reflete uma tendência a uma administração de negócios visando à manutenção da vida e não simplesmente ao lucro (KRAYCHETE, 2000). 

 

Um exemplo dessa forma de gerir a sobrevivência cotidiana é a contabilidade do Restaurante, que indica que ele está condenado — nas atuais condições — a ser deficitário. Se pensarmos, entretanto, que, apesar da ampliação dos negócios da Cooperativa, a viabilidade e a expansão do empreendimento comunitário só existiram por causa do Restaurante, percebe-se que a lógica contábil deve ser outra. O Restaurante é deficitário, mas ele alimenta os cooperativados e suas famílias, o que significa um grande serviço prestado ao grupo e contribui para a continuidade do projeto coletivo. Da mesma forma, o retorno financeiro da Horta é precaríssimo, mas ela é um dos maiores atrativos do projeto para o público externo.

 

Graças ao espírito empreendedor dos participantes da Cooperativa, principalmente de seus líderes, as fontes de renda coletiva foram se ampliando gradativamente. Além das doações externas, do Restaurante e do Bazar, foram feitos contratos precários de fornecimento de “quentinhas” para duas empresas construtoras. Uma conquista particularmente importante foi o contrato com a Prefeitura de Salvador para fornecimento de lanches aos 50 jovens do programa federal  “Agente Jovem”, que educa adolescentes do bairro. A Cooperativa recebe o pagamento em tickets- restaurante, com os quais compra os alimentos tanto para o Restaurante Comunitário  como para o próprio lanche dos jovens. Por um período, quando da inauguração de uma estação de transbordo de ônibus nas proximidades do bairro, foram vendidos lanches diariamente, o que se configurou como mais uma atividade da Cooperativa, porém sem continuidade.

 

Atualmente busca-se apoio da recém-criada Secretaria de Combate à Pobreza (Governo do Estado), para conseguir apoio financeiro e dar estabilidade à iniciativa. Enquanto alguma ajuda oficial não chega, um socorro improvisado em forma de “bolsas de trabalho” está sendo viabilizado pelos animadores externos para os membros mais assíduos e vitais para o funcionamento da Cooperativa. Estas “bolsas”, no valor de meio salário mínimo, foram conseguidas mediante  recursos obtidos com dez “sócios cooperativos”, que são simpatizantes da experiência e estão se dispondo a ajudá-la a se consolidar. O acordo prevê um empréstimo que durará um ano, com expectativa de retorno do investimento após esse prazo.

 

Entre as dificuldades encontradas para o exercício da atividade “empresarial” do grupo estão a inexperiência gerencial e a precariedade legal da Cooperativa (que ainda não está oficializada). Esses dois aspectos fazem com que o grupo se exponha  a ser ludibriado, como de fato foi, por empresários inescrupulosos que se aproveitaram da situação para  não pagar o que deviam. Dessa forma, um membro da Cooperativa teve que entrar na justiça em nome dos demais membros para receber dívidas, mesmo com tão pouco tempo de existência da iniciativa. Essas dificuldades, como a necessidade de fazer uma cobrança contínua aos maus pagadores, são pedagógicas, mas extremamente cansativas, pessoalmente, para quem cobra, e desmotivantes para o grupo.

 

 

A distribuição de dividendos

 

O início da distribuição de dividendos da  Cooperativa deu-se cerca de três meses depois de iniciados os trabalhos e significou um momento especial, no qual se demonstrou o amadurecimento do grupo. A idéia de quais deveriam ser os critérios dessa divisão foi sendo discutida aos poucos e duas coisas foram decididas sem maiores conflitos: a) operar-se-ia com o critério da freqüência, ou seja, todos receberiam conforme o tempo trabalhado; b) aqueles que se ausentassem por um motivo justo (como doenças, problemas com a família, necessidades de resolver questões pessoais importantes, etc.) também entrariam no cálculo da divisão. Outros critérios, como o desenvolvimento de  atividades que envolvessem maior dispêndio de energia física  e a dedicação cotidiana, que significa fidelidade ao projeto, sempre são reconhecidos na hora de repartir os dividendos.

 

Outra decisão tomada acerca da divisão de dividendos, que demonstra a existência de uma racionalidade baseada na ética, foi a de que seria distribuída apenas a receita gerada  pelos próprios cooperativados.  As doações seriam sempre investidas na melhoria das condições de trabalho, principalmente do Restaurante, da Horta e do Bazar, já que se entende que os apoiadores externos contribuem visando ao desenvolvimento do projeto da Cooperativa e não à distribuição de dividendos para seus membros.  Logicamente, em alguns momentos existe a exceção à regra, caso de quando se prevê o recebimento de recursos próprios numa perspectiva imediata. Mas o princípio de que o que se recebe foi o efetivamente trabalhado é a base das decisões coletivas.

 

O advento da “bolsa de trabalho” é muito recente e não quebra a regra citada acima, já que esse apoio externo é entendido como um empréstimo e não como doação. Entretanto, toda a gerência desses recursos, obtidos com ajuda externa, é coletiva. Em reunião da Cooperativa estabelece-se quem recebe e quanto recebe, com base nos mesmos critérios anteriormente colocados, da freqüência e do tipo de atividade.

 

É muito importante observar que a ética da divisão de dividendos e da distribuição da bolsa não precisa ser aprendida, ela é moralmente entranhada nas pessoas e, mesmo quando há discordâncias sobre a proposta, os conflitos resolvem-se facilmente pela conversa. Poder-se-ia especular que numa comunidade onde o dinheiro é tão escasso essas divisões de dividendos seriam problemáticas,  o que não é absolutamente o caso. É um momento de festa e nunca se verificaram discordâncias profundas. Em alguns momentos, como incentivo,  premia-se um recém-chegado com mais dinheiro do que o que ele efetivamente mereceu pelo seu trabalho, e isso nunca é motivo de disputa.

 

Os animadores externos e as parcerias como pilares de apoio

 

Considerando as dificuldades descritas, relativas à condição de pobreza, que podem inviabilizar a iniciativa popular, a presença de um “animador externo” (NUNES, 2001) é um apoio crucial. Ele cumpre o papel de incentivador do projeto, ajuda a organizar as atividades, media os conflitos entre os participantes e intermedia a relação com pessoas de fora da comunidade para conseguir recursos para a iniciativa. No caso específico desta experiência-piloto, a legitimidade do animador, advinda da sua presença no bairro há mais de cinco anos, facilitou desde a rapidez dos habitantes em incorporar a proposta até a resolução de muitos problemas no desenrolar dos trabalhos.

 

O desafio do animador externo é estabelecer uma relação horizontal com os habitantes, reconhecendo sua particularidade no interior da experiência — como pesquisador-participante oriundo de outra classe social — mas sem estabelecer hierarquias. Esse problema, assim como o de evitar a tutela dos membros da iniciativa e a dependência desta em relação à pessoa do animador externo foram evitadas com certa facilidade. Esse fato é decorrente da relação estabelecida com os líderes da  Cooperativa em experiências coletivas anteriores, já citadas. Entretanto, para os membros novos da iniciativa, essa atividade de vigilância contra a tutela e a dependência é uma constante.

           

Outra forma de motivação e “conscientização” (FREIRE, 1982) foi a organização de palestras com convidados externos, que se mostraram amplamente interessados em intervir. A idéia é que a experiência-piloto de Economia Solidária pudesse servir como um aprendizado amplo de cidadania para os interessados,  que contribuísse para ampliar a visão das pessoas sobre temas correlatos à experiência. Para concretizá-la, foram convidados um professor de história, um vereador ligado a questões ambientais e uma pesquisadora que trabalha com questões vinculadas à vivência da pobreza, assim como foi passado um vídeo sobre a estruturação social brasileira. As reuniões aconteciam na sede da creche comunitária e contaram com a presença de cerca de 20 cooperativados, e seus familiares, a cada vez.

 

Os apoios externos, fundamentais para  o início, a consolidação e expansão da experiência da Cooperativa, consistiram nas ações de amigos, colegas, familiares e alunos do pesquisador/animador, assim como dos líderes locais, mostrando que as relações pessoais contam grandemente no sucesso de uma iniciativa como a que se relata aqui. Além dos apoios pessoais, os parceiros institucionais mais contínuos da Cooperativa são a REDE de Profissionais Solidários pela Cidadania e a Universidade Salvador (UNIFACS), por intermédio da linha de pesquisa citada e de alunos de diversas disciplinas de graduação e pós-graduação que tiveram a experiência do Vila Verde como trabalho de campo. Observe-se que esse apoio dos estudantes é um vínculo muito frágil e intermitente.

 

Os  apoios  se efetivavam como assistência técnica, trabalho manual, doações (em gêneros alimentícios, instrumentos de trabalho, peças para o Bazar, tickets), além de sob a forma de contribuições em dinheiro. As parcerias caracterizam-se principalmente por se basearem na solidariedade (pessoal/institucional), na confiança mútua entre  parceiros, na informalidade da relação de parceria e, na maioria das vezes, inconstância do compromisso de ajuda à Cooperativa. Essa inconstância é ao mesmo tempo conseqüência e causa da falta de profissionalização da Cooperativa e espera-se que seja superada com a consolidação do projeto.

 

As primeiras doações foram conseguidas por Ada, com antigos parceiros da creche, para o funcionamento do Restaurante: panelas, pratos, etc. O animador externo conseguiu doações de sementes e ferramentas, graças à simpatia de amigos pelo projeto. Para ajudar a consolidar o Restaurante foram organizados vários almoços, principalmente o  almoço mensal dos membros da REDE, pagando-se, por esses, sempre mais do que o valor previsto.  A visita de parceiros, além de ajudar financeiramente, sempre ajudou a animar os cooperativados quando estes se encontravam desmotivados, o que podia acontecer, por exemplo, pela saída de algum membro. O ânimo novo dos visitantes ajuda a recuperar a confiança na Cooperativa.

 

No último período, a presença de alunos da Escola de Administração, da disciplina Atividade Curricular em Comunidade (programa da Universidade Federal da Bahia que incentiva a relação Universidade/Comunidade), tem sido muito importante. Esses alunos estão trabalhando junto com a Cooperativa Popular de Alimentação do Vila Verde, assim como com outras Cooperativas similares, num processo de ação e aprendizagem. Essa ação em comunidade é decorrência de um projeto de finanças solidárias, concretizado através de uma Associação de Finanças Solidárias - BanSol , com objetivo de fornecer crédito e apoio técnico a empreendimentos coletivos solidários.

 

Os limites do trabalho voluntário

 

No período em que a iniciativa da Cooperativa foi acompanhada, percebeu-se que a trajetória poderia ser representada por uma curva ascendente, composta de diversos pequenos “soluços”. Esses pequenos intervalos descendentes seriam os retrocessos causados por problemas de percurso que foram superados na tendência crescente do trabalho. Pelo que se observa até agora, a curva ascendente começa a inverter sua tendência devido à exaustão dos cooperativados face à não- remuneração do seu trabalho. Essa possibilidade é conhecida e esperada e o mesmo processo verificou-se anteriormente no próprio bairro, quando o funcionamento da creche e da escola comunitária começou a declinar após cerca de um ano de trabalho voluntário. O processo foi revertido quando as iniciativas encontraram os parceiros que até hoje bancam financeiramente seu funcionamento e dão estabilidade à atividade.

 

Outros motivos foram coadjuvantes de um retrocesso no andamento do trabalho: uma onda de violência que se abateu sobre o bairro pela ação de uma gang de jovens e o período de desmotivação sazonal que coincide com o verão. A violência  atingiu alguns cooperativados e a própria horta foi vítima de uma ato de vandalismo, quando desconhecidos destruíram parte do trabalho, o que chocou profundamente as pessoas mais ligadas a essa atividade. Concomitante a isso, as férias, do período do verão, da creche e da escola significaram dificuldades objetivas e subjetivas para a atividade da cooperativa. Como foi salientado anteriormente, esse processo de declínio está sendo superado pela ajuda externa que visa reverter a desmotivação conseqüente da exaustão dos cooperativados.

           

Considerações finais

 

O fato de se ter conseguido levar adiante a experiência — imediatamente abraçada pelas pessoas, mesmo sem qualquer tipo de apoio financeiro — comprova as possibilidades deste tipo de iniciativa apesar das condições precárias de sua estruturação. Se sem nenhum apoio público e sem capital próprio inicial chegou-se a alimentar dez famílias, subsidiar alimentação para mais pessoas da comunidade e ainda gerar alguma renda para os cooperativados, imagine-se o que a iniciativa popular poderia fazer com um pouco de crédito?

 

Além disto, os resultados  preliminares do projeto não podem ser vistos apenas do ponto de vista material, lembrando as características pretendidas pelas experiências de Economia Solidária, citadas no início deste texto, entre as quais figura a idéia de que suas  “referências de êxito são distintas daquelas do capitalismo, já que a reciprocidade e a fraternidade nas relações interpessoais são almejadas”. Ainda referenciando-se nessas características, pode-se observar também que a Cooperativa do Vila Verde apresenta  “motivações de justiça e solidariedade em todas as atividades implementadas e vividas coletivamente, sejam elas a de produzir e consumir  bens e serviços, como a de distribuí-los e comercializá-los”. Foram observados, também, o desenvolvimento de “processos de autogestão e autonomia, implicando lógicas de participação e estímulo ao engajamento”, assim como a “criatividade e soluções alternativas face aos problemas e negócios implementados, visando à inovação tecnológica, gerencial e de relações humanas” .

 

Todos esses elementos precisam ser mais estudados, e o serão, com a continuidade do projeto, mas é importante reconhecer que pelo menos uma das premissas para que o exercício da Economia Solidária possa vir a ser uma nova utopia da sociedade não foi considerada. Trata-se da “preocupação com o meio ambiente e com um progresso sustentável para a geração seguinte, preservando os meios naturais hoje existentes”. Diante das enormes dificuldades que um projeto desse tipo enfrenta no seio de uma comunidade pobre, essas preocupações não foram devidamente enfrentadas, mas espera-se que o sejam, em algum momento, no futuro.

 

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* Débora Nunes é doutora pelo Institut d´Urbanisme de Paris, Universidade Paris XII, coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo  da UNIFACS, e professora e pesquisadora da UNIFACS e da UNEB.  E-mail: [email protected]

 

[i] Este texto é uma revisão de um artigo de mesmo título publicado na Revista de Desenvolvimento Econômico (RDE), Ano III, n. 5. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Regional da Universidade Salvador,  dez. 2001.

[ii] Para maior aprofundamento desses conceitos ver texto de FRANÇA, Genauto: “Esclarecendo terminologias: as noções de terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular em perspectiva”, na publicação acima indicada.

[iii] Nas categorias desemprego e subemprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou, em seu relatório de 1999, uma cifra de aproximadamente um bilhão de pessoas no mundo, um número que vem crescendo a uma média anual de cem milhões de pessoas.

[iv]  Esse projeto está inserido na Linha de Pesquisa “Desenvolvimento Urbano, Participação Popular e Economia Solidária” da área de Desenvolvimento Urbano do Mestrado em Análise Regional  da Universidade Salvador – UNIFACS.

[v] Trata-se da tese L´apprentissage de la citoyenneté à partir du travail communautaire – Methodologie participative d´intervention dans les quartier populaires – Recherche-action à Vila Verde, Salvador, Brésil, que defendi em abril de 1998, na Université Paris XII. Publicada, parcialmente, pela UNESCO, com o título “La citoyenneté à travers la participation” (ver referências bibliográficas), de agora em diante será referida como: NUNES, 2001.

 

* Débora Nunes é doutora pelo Institut d´Urbanisme de Paris, Universidade Paris XII, coordenadora do Curso de Arquitetura e Urbanismo  da UNIFACS, e professora e pesquisadora da UNIFACS e da UNEB.  E-mail: [email protected]

 

[1] Este texto é uma revisão de um artigo de mesmo título publicado na Revista de Desenvolvimento Econômico (RDE), Ano III, n. 5. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Regional da Universidade Salvador,  dez. 2001.

[1] Para maior aprofundamento desses conceitos ver texto de FRANÇA, Genauto: “Esclarecendo terminologias: as noções de terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular em perspectiva”, na publicação acima indicada.

[1] Nas categorias desemprego e subemprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou, em seu relatório de 1999, uma cifra de aproximadamente um bilhão de pessoas no mundo, um número que vem crescendo a uma média anual de cem milhões de pessoas.

[1]  Esse projeto está inserido na Linha de Pesquisa “Desenvolvimento Urbano, Participação Popular e Economia Solidária” da área de Desenvolvimento Urbano do Mestrado em Análise Regional  da Universidade Salvador – UNIFACS.

[1] Trata-se da tese L´apprentissage de la citoyenneté à partir du travail communautaire – Methodologie participative d´intervention dans les quartier populaires – Recherche-action à Vila Verde, Salvador, Brésil, que defendi em abril de 1998, na Université Paris XII. Publicada, parcialmente, pela UNESCO, com o título “La citoyenneté à travers la participation” (ver referências bibliográficas), de agora em diante será referida como: NUNES, 2001.


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