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Indicadores de bem viver

27 de Janeiro de 2015, 0:32 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Perguntas sobre o sentido da vida e de como tirar melhor proveito da existência acompanham a trajetória humana desde sempre. As respostas, naturalmente, variaram muito no tempo e no espaço e ao longo da história as religiões foram as maiores fornecedoras de indicações de resposta, convidando as pessoas a adotarem suas doutrinas, a viverem “corretamente” e assim alcançarem o céu, o nirvana, o olimpo.... Para além das religiões e dos anseios íntimos de homens e mulheres, apenas a filosofia e, muito mais tarde, no século XIX, a psicologia, que se debruça sobre o indivíduo como nunca antes, se interessaram a dar respostas ao tema.

As discussões de cunho filosófico e psicológico colocam a questão do sentido da busca por uma existência que valha a pena sem fornecer padrões de resposta, propondo apenas caminhos de reflexão e apoio na construção de respostas pessoais. As demais ciências mantiveram-se até bem pouco tempo distantes do tema do sentido da existência e do que seria viver bem.  Ao longo do século XX, concomitantemente com a construção de um Estado de Bem Estar Social, o mundo intelectual começou a construir indicadores para uma avaliação da situação objetiva de grupos humanos, relacionando implicitamente bem estar e renda, por exemplo.

O primeiro indicador de riqueza, surgido após a segunda guerra mundial, foi o Produto Interno Bruto - PIB, representando a soma de todos os bens e serviços produzidos numa determinada região ou país. Este indicador começou por revelar, de maneira inédita - pelos menos por algumas décadas e em relação à maioria dos países – que o produto interno bruto das nações estava efetivamente vinculado a situações objetivas de vida dos cidadãos. Ou seja, fora as exceções de praxe (como países com grande concentração de renda), a renda per capita, os níveis de escolaridade e educação e a longevidade dos cidadãos, por exemplo, tinham relação com a medida do PIB dos países.

Foram criados neste ínterim vários indicadores complementares à mensuração do PIB, como o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que buscaram identificar a situação de vida das pessoas com dados diretos de nível de renda, educação, saúde e padrão de vida, por exemplo. Ao mesmo tempo, a discussão sobre a necessidade de “corrigir” aquilo que a medida do PIB poderia iludir sobre a vida dos cidadãos, incorporando um indicador que identificasse a desigualdade (mascarada pelo PIB) foi fazendo seu caminho, consolidado hoje na apuração do Índice de Gini, que retrata as diferenças sociais entre grupos humanos que vivem juntos.

Segundo este mesmo caminho de aprofundamento do entendimento sobre a noção de bem estar, observa-se um fenômeno recente de interesse pela dimensão da felicidade, abordados por vários campos intelectuais, até mesmo por áreas ditas “áridas”, ou reativas a discussões subjetivas, como a economia e a administração. Se antes estas áreas relacionavam o bem estar dos trabalhadores e a produtividade, por exemplo, tratando de salários que viabilizassem confortavelmente a “reprodução da força de trabalho”, ou da correta organização do espaço de trabalho, hoje, cada vez mais, elas vêem relacionando também o que se poderia chamar de “bem estar emocional”, ao sucesso das empresas e instituições em geral.

Se até a economia e a administração começam a pensar em indicadores mais amplos de bem estar, o que não dizer das revistas de grande circulação que se propõem, com grande alarde e em dezenas de línguas diferentes, a mostrar o “caminho” para a felicidade, de modo geral de forma quase caricata e sem ir a fundo dessa grande questão humana.

Outro campo no qual esta discussão sobre a felicidade vem chegando paulatinamente é a medicina ocidental, que nasceu com a idéia do “corpo são em mente sã”, mas que desenvolveu de tal forma a farmacologia e a intervenção cirúrgica que esqueceu, nos séculos recentes, suas bases gregas.  Mesmo esta medicina hegemônica e muito comercial vem descobrindo, cada vez com maior sofisticação científica, aquilo que as medicinas tradicionais - como a chinesa e a ayurvédica - já sabem há milênios: a relação entre espírito e matéria, entre saúde física e espiritual, entre felicidade e saúde.

Entre as várias iniciativas de discussão sobre a felicidade, uma chama a atenção, por se dar em uma esfera absolutamente infensa a discussões subjetivas: a administração pública. Embora tomando forma em um minúsculo país monárquico do Himalaia, o Butão, ela atingiu o mundo pela inovação: as políticas públicas do país baseiam-se na medição da Felicidade Interna Bruta – FIB, índice criado em 1972. O FIB trata nove domínios de onde são extraídos indicadores para que a felicidade da nação seja avaliada: bem-estar psicológico; meio ambiente; saúde; educação; cultura; padrão de vida; uso do tempo; vitalidade comunitária e boa governança. A experiência do Butão vem sendo seguida por entidades insuspeitas, como a Comunidade Européia...

Parece assim que a discussão sobre o que de fato conta na vida de cada um e na de todos, sobre o sentido da vida e a felicidade, estão ganhando aos poucos status de tema de interesse público e científico. Não é paradoxal que só agora o mundo se preocupe  com o que pode ser considerado o fim último da vida de cada indivíduo, viver bem?. Talvez isto possa ser entendido pelo fato de que a felicidade sempre foi vista como um tema subjetivo e apenas o bem estar material seria um problema público. A relação entre matéria e espírito, tão evidente na saúde, por exemplo, só agora começa a ter status científico e assim torna-se matéria de atenções intelectuais e políticas.

Em face destes avanços, uma nova dimensão desta discussão tem vindo também recentemente a público a partir do colapso progressivo do sistema Terra, face ao modo de vida dos humanos e seu rebatimento no meio ambiente. Este colapso evidentemente relaciona-se a uma visão estreita da idéia de bem estar, na qual esse estaria vinculado a um consumo cada vez maior de bens materiais, mas também a uma ideia de serviços que também toma o planeta como um provedor infinito de energia. Nesta idéia, indicadores que mostram o acesso a serviços de saúde sofisticados seriam mais expressivos da saúde dos indivíduos do que saber se ele tem um ambiente familiar e comunitário gregário. Como contraponto, pensar no “bem viver”, que tem origem nas tradições milenares dos povos andinos - como os quéchuas, os aimarás e os guaranis - tornou-se uma expressão “avançada” de indicador de felicidade.

A ética do Bem Viver andina não coloca em primeiro plano o homem/a mulher e a satisfação de suas necessidades, mas a continuidade da Vida. O Bem Viver estaria necessariamente vinculado ao bem viver comunitário, à valorização da história e da cultura, assim como ao bom relacionamento com a Natureza e ao uso respeitoso dos recursos naturais. Deslocar o estudo do bem estar para dimensões coletivas, como fazem os indicadores do FIB e a idéia do Bem Viver, é estar em sintonia com o que Fritjof Capra chama de Teia da Vida, na qual as redes, as parcerias, os ciclos e o equilíbrio dinâmico são alguns dos fundamentos.

Retomando e misturando, para finalizar, um filósofo, Patrick Viveret, que escreveu um livro memorável intitulado “Reconsiderar a Riqueza” e um psiquiatra, Carl Jung, que define a alegria como o grande indicador de que estamos no caminho certo na vida que levamos, propõe-se democratizar largamente esse debate. São os cidadãos e cidadãs do mundo, em debates públicos mediados por técnicas artísticas e muito diálogo, que devem escrever os caminhos de identificação da felicidade pessoal e coletiva.  A construção de indicadores que revelem uma sociedade equânime, sustentável e feliz, em curto, médio e longo prazos (e em acordo com as condições de sustentabilidade na vida local e global) não deve ser atributo de funcionários ou intelectuais, mas ser uma pergunta de cada um e de cada uma, todo dia. Só a partir dessa plena consciência de muitas pessoas o coletivo poderá evoluir. E vice-versa.


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