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COP 21: Quando o colapso parece promissor

4 de Dezembro de 2015, 10:44 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Texto em colaboração com Marcos Arruda

 

Numa das atividades da Rede Global Diálogos em Humanidade, em Paris, como parte das manifestações da sociedade cívica para pressionar os Estados a assumirem reais responsabilidades frente ao aquecimento global, um grupo de trabalho propôs incorporar a possibilidade de colapso da humanidade. O grupo deveria imaginar as bases com as quais a sociedade humana poderia ser reconstruída para desenvolver-se sem correr riscos de nova aniquilação.

Num primeiro momento, o grupo ficou atônito ao imaginar a conjunção de dados reais: a aceleração do aquecimento global com suas cada vez mais nefastas consequências, mas também do terrorismo; os acidentes ambientais cada vez mais graves devidos aos excessos do capitalismo; a onda de refugiados de guerras e de mudanças climáticas que, buscando o justo direito de reconstruírem suas vidas, desestabilizam territórios já precários; a crise dos alimentos, cada vez mais caros e envenenados; a crise do endividamento, dos Estados nacionais até as famílias e as pessoas; entre outras. Esses dados juntam-se à forte probabilidade de um novo colapso financeiro mundial causado pela insustentável ciranda especulativa, muito mais grave do que a de 2008. Essa explosão torna-se inevitável pela aplicação de recursos oriundos do trabalho humano real junto a uma montanha de dinheiro imaginário (pura especulação), configurando um perigoso cassino global. Ao ruir, o sistema financeiro vai carregar consigo o sistema produtivo globalizado, principalmente bancos e empresas transnacionais, o emprego, as redes de seguridade social, e o nível já conquistado de bem estar.

Passado o momento inicial de impacto de se imaginar o colapso, o grupo pergunta-se o que fazer e imagina que restaram comunidades humanas espalhadas pelo interior dos continentes menos tocados pela catástrofe econômica e pelo aumento do nível dos oceanos. As grandes cidades - com poucos alimentos e energia, falência das grandes companhias atingindo as demais, governos desestabilizados e comunicação precária, expostas à barbárie dos sem esperança - foram em grande medida desertadas por suas populações. Milhões de sobreviventes se transformam em refugiados e buscam locais mais estáveis para reconstruírem suas vidas.

O panorama, aparentemente saído de um filme catastrófico de Hollywood, espelha na verdade os dados de pesquisas recentes sintetizadas no livro « Comment tout peut s'effondrer: Petit manuel de collapsologie à l'usage des générations présentes », de Pablo Servigne e Raphaël Stevens (“Como tudo pode entrar em colapso –pequeno manual de colapsologia para uso das gerações presentes”), ainda sem tradução no Brasil.  De modo mais artístico, esse é também o cenário do filme « A era da estupidez », de Franny Armstrong, que fez um misto de documentário, ficção e animação para contar a história da destruição da Terra, causada pela insensatez da humanidade.

O grupo de trabalho, formado por cidadãos e cidadãs de várias partes do mundo, começa a traçar um caminho de soluções possíveis, buscando enfrentar não só as questões de cunho político, ambiental, social e econômico, mas também criar um quadro cultural e psíquico, que evite que a humanidade desenvolva mais suas sombras que sua luz, e que aproveite ao máximo seus potenciais de conhecimento, criatividade e cooperação. A descontração criada pelo fato de que se tratava apenas de fazer um exercício coletivo de sonhar acordados, sem a pressão de « salvar o mundo », fez do trabalho uma alegre atividade, simples e inspiradora.

Em primeiro lugar, o grupo tratou de reorganizar a sociedade humana a partir dois fatores. Um, subjetivo – o acolhimento e o respeito às diferenças - e o outro, objetivo - as atividades locais que produzem o suficiente para a sobrevivência da comunidade de forma absolutamente ecológica, sem fertilizantes nem pesticidas nos alimentos, e utilizando fontes locais de energia como o sol, a biomassa, os ventos etc. A força de trabalho e os recursos naturais locais vão sendo valorizados por meio de tecnologias adequadas à realidade local e ecossistêmica, produzidas em todo o planeta, o que aumenta em grande medida a produtividade local, e permite a partilha dos seus ganhos com base na proporcionalidade. Volta-se, de certa forma, ao tempo das comunidades primitivas, enriquecidas agora pela consciência de todas as evoluções humanas, em termos sociais, políticos, culturais e tecnológicos.

Imaginando o pleno emprego dos membros da comunidade, chegou-se ao conceito de subsidiariedade, no qual só se mobiliza um nível posterior de escala territorial quando se esgotam as possibilidades de resolver desafios localmente. Em termos brasileiros, isso seria uma autonomia imensa para o nível de governança comunitária e municipal, passando-se para o nível estadual e federal apenas poucas questões, impossíveis de serem respondidas localmente. A subsidiariedade reforça a responsabilização da comunidade e dos indivíduos para a conquista de boas condições de vida para si e para o coletivo, de modo colaborativo. Ela propõe também a construção das escalas « superiores » a partir da prática da solidariedade entre as comunidades.

Na dinâmica da subsidiariedade, constrói-se a pirâmide de possibilidades e responsabilidades de baixo para cima, a partir das necessidades e dos recursos humanos e naturais existentes na comunidade, e não de cima para baixo, a partir do poder da força e/ou do controle do dinheiro, do conhecimento e das técnicas, como se fez na história pregressa da humanidade.

O segundo campo de trabalho do grupo foram os próprios membros da comunidade e a educação. Para evitar os efeitos desastrosos da condição e do sentimento de exclusão, é preciso que cada um tenha seu lugar na sociedade. Todo um programa de apoio ao autoconhecimento, fundado na busca da identificação dos talentos de cada um seria colocado em prática pela comunidade em um sistema educativo baseado na prática da pesquisa e da construção colaborativa do conhecimento, e na busca do bem viver integral. A ideia é que cada indivíduo, sem exceção, sabendo de suas potencialidades, busque ser feliz, disponibilizando seus talentos para que sejam uteis a si e aos demais. Assim, o desejo de cada humano de ser reconhecido e amado teria fundamento na contribuição dada ao todo e a cada outro, e não na supremacia sobre os demais. Apostou-se, como Teilhard de Chardin, o grande paleontólogo e humanista francês, que a crescente individuação naturalmente constrói a solidariedade entre todos, e que a história cósmica é a história da construção da Noosfera – a esfera da cooperação na riqueza da diversidade – após passar pela da geosfera, biosfera e tecnosfera.

O terceiro é o tema do poder: como organizar a partilha do poder de modo a não reproduzir o modelo político fracassado de hoje? Como resgatar, ao mesmo tempo, a história das conquistas democráticas da sociedade humana, que nos levou à noção de direitos humanos e de democracia representativa, sem cair nas armadilhas que enfrentamos hoje de insuficiência humanista e democrática? Partilha, co-responsabilidade e serviço, três palavras-chave que qualificam um tipo de poder político que canaliza a consciência coletiva e viabiliza a democracia co-criativa. Auto-estima, humildade e gratuidade, três atitudes que qualificam quem é investido daquele poder democrático co-criador. A trilha proposta por Patrick Viveret, de buscar o melhor da tradição e o melhor da modernidade, nos fez buscar o modelo político de muitas sociedades ancestrais (entre eles os índios bororos e ianomâmis do Brasil), nas quais o poder é entregue àqueles que são reconhecidos como os mais generosos entre os membros da tribo. Aqueles que têm, como diria São Francisco, maior capacidade de dar do que receber.

Para evitar os excessos que podem ser cometidos quando alguém, ou um grupo de pessoas, mesmo consideradas generosas desvia-se de si mesma no exercício do poder, a noção moderna de controle social seria utilizada. Assim, as pessoas que governam os diversos territórios nos estritos domínios da subsidiariedade (ou seja, respeitando a autonomia individual, familiar e comunitária) seriam acompanhadas pelo conselho da comunidade, composto por sábios e especialistas da confiança da comunidade, recrutados em sua maioria entre jubilados com comprovado espírito público. Esse conselho de sábias e sábios, recriando a sabedoria ancestral, teria, como se concebe modernamente, a representação de todos os setores da sociedade, inclusive jovens e crianças.

O exercício do grupo de trabalho teve tempo limitado e, assim, outros temas não puderam ser tratados e muitos ficaram implícitos. O cultivo de uma relação profunda da humanidade com a Natureza, entendendo seu lugar como parte dela; a modelagem da organização dos serviços públicos e sociais; a pluralidade de lógicas econômicas que, tendo como referência comum a solidariedade e o suficiente, poderiam prevalecer para evitar o monopólio de uma só logica, como a do lucro ou a do Estado, e tantos outros desafios ficaram para novas oportunidades de encontro. As pessoas do grupo sentiram alegria com o trabalho e pode-se dizer que imaginar a possibilidade do colapso da civilização atual é como lidar com a própria morte. Pode nos ajudar a organizar a vida, de modo a tirar dela o melhor e dar a ela a melhor contribuição. As civilizações também podem morrer, como já morreram os impérios mundo afora, por viverem sem consciência da possibilidade de sua própria extinção. Pensar o colapso para além da tragédia das suas dores, pode ser instrutivo… e promissor.


Fonte: Débora Nunes

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