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TESTEMUNHO SOBRE O HCE - Marcos Arruda 300715

31 de Julho de 2015, 0:48 , por Marcos Arruda - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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COMISSÃO DA VERDADE DO RIO DE JANEIRO

CLÍNICAS DO TESTEMUNHO

AUDIÊNCIA PÚBLICA COM EX-PRESAS E PRESOS POLÍTICOS QUE ESTIVERAM INTERNADOS NO HOSPITAL CENTRAL DO EXÉRCITO – HCE

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2015

 

TESTEMUNHO DE

MARCOS PENNA SATTAMINI DE ARRUDA

 

Vocês que vivem seguros

Em suas casas cálidas,

Vocês que encontram comida quente

E caras amigas quando voltam à casa.

Considerem se isto é um homem

Que trabalha na lama,

Que não conhece a paz,

Que luta por uma migalha de pão,

Que morre por um sim ou não.

Considerem se isto é uma mulher

Sem cabelos, sem nome,

Sem a força de recordar,

Vazios são seus olhos, frio é seu ventre,

Como uma rã no inverno.

Nunca esqueçam que isto aconteceu.

Lembrem-se destas palavras.

Gravem-nas nos seus corações,

Quando em casa ou na rua,

Quando deitados ou se levantando.

Repitam-nas para seus filhos.

Ou que suas casas sejam destruídas,

Que a doença lhes golpeie,

Que seus filhos virem as costas a vocês”.

Primo Levi, Survival in Auschwitz

 

  1. Estudei geologia no Rio de Janeiro e trabalhei três anos como geólogo. Deixei a profissão para trabalhar em fábricas metalúrgicas em São Paulo, ajudando na organização e luta dos operários por seus direitos e contra a ditadura. Fui preso em 11.5.1970 e torturado pela Operação Bandeirantes (OBAN). A brutalidade foi extrema, me levou às portas da morte. Levado ao Hospital Geral do Exército, na manhã seguinte, recebi a Extrema Unção. Passei um mês e meio para melhorar o suficiente para ser levado de volta à OBAN para uma acareação. Só em agosto minha família conseguiu que, depois de três meses internado no Hospital Geral do Exército eu fosse transportado numa cela-ambulância para o Rio de Janeiro, minha cidade de origem. No Rio, fui entregue ao DOI-CODI, no Batalhão da Polícia do Exército sediado na Rua Barão de Mesquita. De lá fui levado para o Hospital Central do Exército (HCE), em Triagem, onde fiquei preso entre os dias 21.8.1970 e 1.2.1971.
  1. “Esquecer? Nunca Mais!” é o nome do livro publicado pela minha mãe, Lina Penna Sattamini, onde ela conta a saga do filho nas mãos sangrentas da ditadura empresarial-militar que dominou o Brasil durante 21 anos, e o que a família vivenciou para conseguir a minha libertação. Por iniciativa do professor de história do Brasil na Universidade Brown, James Naylor Green, esse livro ganhou uma versão em inglês, com o título “A Mother’s Cry”, da Universidade Duke, dos Estados Unidos, país onde Lina viveu e trabalhou por mais de duas décadas.
  2. Em setembro de 2014 participei da Comissão que visitou o HCE, composta de membros das Comissões Nacional e Estadual da Verdade, das Clínicas do Testemunho e de ex-presas e presos políticos que ali estiveram internados. Nesta ocasião, entreguei carta em mãos ao Diretor do HCE solicitando o meu prontuário. Até hoje não obtive qualquer resposta. Neste testemunho, não deixo dúvida de haver conhecido por dentro o HCE na época em que lá estive. Portanto, não se pode pôr em dúvida que lá estive como preso político. Então, se o HCE se recusa a fornecer meu prontuário, está violando conscientemente um direito meu como cidadão.
  3. No HCE fui colocado num quarto-cela no pavilhão chamado de 13a Enfermaria, onde fiquei em torno de 20 dias totalmente incomunicável, sem ninguém que me examinasse nem falasse comigo. E o servente que me trazia comida se recusava a trocar palavras comigo.
  4. No fim deste tempo, fui transferido para uma enfermaria ampla e aberta, com cerca de 20 camas. Ela ficava no fundo à esquerda do corredor, e defronte dela havia outra enfermaria de mesmas proporções, para militares presos. Como algumas pessoas passaram por lá que não eram presas políticas, percebi que essa enfermaria abrigava presos políticos e presos comuns civis. Todos os que ali conheci haviam sido vítimas de sevícias pelos órgãos da repressão governamental.
  5.  Nomes
    1. Raimundo Nonato dos Santos – contou que foi torturado pelo I Batalhão da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, Tijuca, Rio de Janeiro. Estava com as pernas imobilizadas e sofria descontinuamente descargas nervosas espontâneas nas duas pernas. Depois de um mês foi levado de volta à PE. Contou que fora acusado de tentativa de roubo de automóvel.
    2. José Carlos Tortima, preso político – contou que, por ser membro do PCBR, sofrera violentas torturas no DOI-CODI da rua Barão de Mesquita durante 9 dias, em fevereiro e março de 1970, fora hospitalizado em estado grave, voltara à PE e estivera preso sete meses na Ilha Grande. Foi trazido ao HCE para tratamento psiquiátrico.
    3. João Pedro Francisco – contou que sofrera choques violentíssimos nas mãos e tornozelos, que ficaram incinerados. Depois fora pendurado num pau-de-arara enferrujado, que provocara infecção das feridas. Os ossos e tendões de uma das mãos e um dos tornozelos estavam à mostra e João estava sendo submetido a operações plásticas de enxerto.
    4. Senildo da Silva – contou que estivera na Delegacia de Roubos e Furtos, no DOPS e na PE. Fora torturado com choques e muitas pancadas, que lhe quebraram o fêmur direito em dois lugares e a tíbia direita. Foi transportado para o Hospital Souza Aguiar e depois para o HCE. Os policiais diziam que ele tentara pular do terceiro andar de um prédio para fugir e quebrara a perna. Senildo disse que a própria Polícia quebrara sua perna com pontapés, em meio a sessões de tortura.
    5. Estrella Dalva Bohadana Bursztyn, arquiteta de 19 anos de idade – contou que fora trancada num quarto escuro durante seis dias no 1o. Batalhão de Infantaria Blindada de Barra Mansa, e depois transferida para o DOI-CODI da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, onde foi violentamente torturada com chutes na barriga (quando disse que estava grávida), choques e pancadas. Estrella foi levada para o HCE em péssimo estado, com hemorragia interna e as pernas paralisadas. Contou-me que sofreu aborto, devido às sevícias que sofreu. Ficou em torno de um mês no HCE, entre novembro e dezembro de 1970, e pude comunicar-me com ela graças à ajuda solidária do servente Sr. Valter. Ele e o Sargento-enfermeiro Argolo mostraram total solidariedade para com as presas e presos políticos durante todo o tempo em que estive no HCE. Estrella recebeu alta pelo diretor da enfermaria, Major Dr. Wilson Boia, e foi levada de novo para o DOI-CODI e de lá para o 1o BIB de Barra Mansa, onde voltou a ser torturada brutalmente sofrendo, entre outros danos, fratura de duas costelas.
    6. Através da Estrella fiquei sabendo da presença de outra presa política, de nome Irony Bezerra, que estava em estado de gravidez avançada. Por isso, não tinha condição de suspender-se até a janela gradeada para participar, durante as noites, das conversas minhas com Estrella. Ela estava na cela ao lado daquela em que Estrella estava presa.
  6. Os remédios que eu tomava diariamente incluíam pílulas anti-convulsivas (eu tive convulsões depois de horas de pau-de-arara com choques elétricos muito violentos, e elas retornavam de forma intermitente) e soníferos (creio que Valium), em dose que me deixava lerdo e semi-drogado. Nos últimos meses de prisão, eu fingia tomar o Valium e depois guardava as pílulas, ou as jogava na privada, para estar desperto para as conversas com Estrella. Durante esses meses fui tratado com fisioterapia diária, e tive visitas de um neurologista para examinar meu olho esquerdo, cuja pálpebra estava caída desde a tortura com choques elétricos.
  7. O quadro do pessoal do HCE, quando lá estive, incluía:
    1. o diretor General Galleno,
    2. o responsável pela segurança, Capitão Morais, que sempre tratou os membros de minha família com gentileza e humanidade,
    3. o Major Dr. Wilson Boia, dermatologista, que não dava praticamente nenhuma assistência aos pacientes, tratando-os como animais, aos berros e com ameaças;
    4. os dois Sargentos-enfermeiros, Argolo, solidário e prestativo com presas e presos, e outro do qual esqueço o nome;
    5. os dois serventes, Sr. Valter, sempre solidário e prestativo com presas e presos, e o outro, creio que de nome Wilson.

Minha homenagem ao Sargento-enfermeiro Argolo e ao Sr. Valter, pelo espírito solidário com que nos apoiaram naqueles tempos sombrios.

8. Durante minha estada no HCE, passei a maior parte do tempo incomunicável, apesar de todos os esforços da minha família de me visitar, e mesmo do advogado, Técio Lins e Silva, que ela contratou de vir entrevistar-se comigo pessoalmente. Só o conheci depois que fui libertado, em 1.2.1970. Expresso aqui minha gratidão a cada membro da minha família e ao Técio, que trabalharam amorosamente pela minha libertação. Em especial à minha mãe, Lina Penna Sattamini, minha avó materna, Maria e minha madrinha Elza Sattamini de Britto Pereira, pelos esforços incansáveis em pressionar os militares pelo meu direito à liberdade.

9. A função do HCE, assim como do Hospital Geral do Exército em São Paulo, onde eu já estivera preso entre 12.5.1970 e 21.8.1970, era “recauchutar” presas e presos políticos que haviam sido torturados, para que pudessem retornar aos centros de tortura para mais interrogatórios e novas sevícias. Portanto, os hospitais militares cumpriam a função de elos da cadeia produtiva das torturas e dos assassinatos. Os médicos que realizaram esta função traíram seu juramento ético-profissional, denegrindo assim suas instituições e as Forças Armadas.

10. Daquele período de cinco meses e 10 dias que passei de prisão no Rio de Janeiro, apenas três dias não foram no HCE, mas sim no Doi-Codi da rua Barão de Mesquita. Dias de inferno, entre 23 e 25.12.1970, pois fiquei trancado numa cela, situada num corredor em que havia várias celas com outros presos. Dia e noite vinham os soldados, apelidados de ‘Catarinas’, levar um preso para a tortura. Os gritos dos torturados ecoavam por todo o prédio, inclusive durante toda a noite de Natal, levando-nos a um sentimento de compaixão e impotência, e de terror diante da possibilidade de servos o próximo a ser levado para a tortura. Os soldados depois traziam o preso de volta apoiado neles ou arrastado pelo chão. Por falta de medicamento, voltei a ter convulsão e fui levado de volta para o HCE. Só fui libertado em 1.2.1971.

PROPOSTAS

  1. Expresso aqui minha gratidão aos membros das Comissões Nacional e Estadual da Verdade, e sugiro que seja criada uma instância governamental permanente, ligada à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, para dar continuidade às investigações sobre o HCE em particular, e sobre os Hospitais das Forças Armadas que serviram à repressão durante das décadas da ditadura empresarial-militar.
  2. Desejo também expressar minha gratidão às psicólogas e psicólogos do Projeto Clínicas do Testemunho, que têm acolhido com espírito de pesquisa, competência e carinho, vítimas das torturas do tempo da ditadura empresarial-militar e suas famílias. Este Projeto tem colaborado ativamente com os trabalhos das Comissões Nacional e Estaduais da Verdade, em particular a CEV-RJ. Defendo que o Governo Federal transforme as Clínicas do Testemunho em projeto de governo, com mandato para realizarem sua missão sem horizonte temporal e contando com recursos suficientes para isto. 

Na realidade

Vivemos hoje

Os sonhos

Que sonhamos ontem.

E, vivendo

Estes sonhos,

Sonhamos outra vez.

 

MARCOS PENNA SATTAMINI DE ARRUDA


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