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Contos e crônicas da Antyga

12 de Janeiro de 2009, 22:00 , por Desconhecido - | Ninguém está seguindo este artigo ainda.

Mon, 01 Mar 2010 01:07:00 +0000

27 de Fevereiro de 2010, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

EM BUSCA DA HISTÓRIA PERDIDA


Perdi a memória. Desde que saí do coma, ouço minha mãe (a mulher que estava sempre lá e que me apresentaram como tal) discutindo com os médicos, que dão explicações complicadíssimas, ininteligíveis, sobre as probabilidades de eu vir a recobrar a dita cuja. Em casa, a Mãe tentou me fazer lembrar coisas. Registrei algumas informações (nome, idade, profissão, situação financeira, estado civil) mas pedi-lhe encarecidamente que não me dissesse mais, que esperasse eu lembrar. Afinal, perdi a memória mas não o bom senso: não vou adotar assim de graça a sua versão da minha vida, prefiro ir montando a coisa aos poucos.

Meu único outro pedido foi que não contasse a ninguém do meu estado: não quero que me atribuam atitudes ou palavras que não tenho como checar se são verdadeiras . Também levei um tempo sem participar de eventos sociais: receio encontrar pessoas que detectem meu vazio total. Ontem, no entanto, resolvi ir ao aniversário do que a Mãe diz ser meu Melhor Amigo; em parte porque já rechaçara duas vezes suas tentativas de folhear comigo um álbum de fotos da infância e adolescência, e ela já estava com um ar de "depois-de-tudo-que-fiz-é-assim-que-você-me-trata?"; em parte porque as pessoas podiam desconfiar de tanto sumiço.

Entrei no clube. Passei pelo salão às escuras onde as pessoas se balançavam convulsivamente sob a batuta de um dj enlouquecido e me dirigi às mesas do terraço. Numa delas vários braços me acenaram; eram os meus Melhores Amigos, ou pelo menos os que eu podia reconhecer porque me visitaram no hospital.

Garçons passavam com salgadinhos, bebidas. Me ofereceram uma cerveja. Declinei, pedi um copo d'água, lembrei das recomendações dos médicos, expliquei: "Ainda não estou podendo..." Os Melhores Amigos riram muito: "Demais, cara! Ainda não está podendo! Até parece que algum dia bebeu! É aquela sua idéia de resgatar o gerúndio para acentuar a transitoriedade, né?" Não entendi nada. Um perguntou: "Como é mesmo que você dizia, transitoriedade ou impermanência?" Olhei para a rua. Ainda muito movimento de carros. Disse, distraidamente: "Trânsito!" Acharam maravilhoso. "Genial, cara, trânsito, nem transitoriedade nem impermanência!" O papo ia assim escorrendo sem eira nem beira nem peneira, mas pelo menos ninguém parecia notar nada da minha amnésia. Perguntaram: "E o livro novo, já resolveu o título?" Olhei de novo lá fora, vi um gato, balbuciei: "Gato na Calçada". Julgaram o título fantástico, muito apropriado e sugestivo. (A Mãe já me mostrara o tal livro, mas era muito parecido com essa conversa; não entendi nada, parei na terceira página, um tédio!) No geral, não posso dizer que não tenha sido uma reunião agradável, apenas não sei sobre o que falamos a noite toda. Todos achavam tudo o que cada um dizia maravilhoso, fantástico, genial.

Ao final da festa, já ia pedindo ao porteiro para chamar um táxi quando um Melhor Amigo apontou: "Olha lá, é a Lê! Acho que você não conhece, mas ela mora na sua rua, pode te levar." Chamou-a. Não sei bem se foi o jeito que ela se virou, uma mão na porta, a outra levantada ajeitando os cabelos, ou o olhar que ela me mandou por cima do ombro, que me atingiu em cheio. Só sei que nunca senti aquilo. Duvido que se tivesse sentido esquecesse... Entrei no carro como se de volta ao coma, mas com uma leve dor de barriga: medo de que ela começasse a fazer perguntas que eu não saberia responder. Ainda bem que o percurso não era tão longo, ela se ateve ao básico, que eu já conhecia (nome, idade, estado civil, profissão, etc.). Na despedida, o convite : "Vamos pegar uma praia amanhã?"

Entrei em casa excitadíssimo, fui direto para o computador (essa habilidade não perdi, como a de falar, ler e escrever). Tinha que me preparar para a praia. Listei as perguntas que gostaria de fazer a ela, e que ela provavelmente vai querer me fazer. Catei respostas no google: lembranças de infância, aniversários, escolas, namoros, viagens, livros, restaurantes, músicas. Quando amanheceu já tinha construído toda uma vida para substituir a que me escapara da mente. Com direito a notas rabiscadas em pequenas tiras de papel para "colar", se necessário. Tenho de novo uma história. Para seduzir a Lê. Espero que funcione.


RJ, março 2010



Mon, 01 Mar 2010 01:06:00 +0000

27 de Fevereiro de 2010, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

A LENDA DA FOLIÃ CAPENGA



Não conseguia nem fingir que era feliz. A alegria dos outros a irritava; achava tudo farsa, a euforia do Carnaval escondia os problemas de família, trabalho, relações. Ela não tinha como disfarçar, pior não podia estar. Quem mandou namorar homem casado? Com o mesmo papo de "amor" pra cá, " querida" pra lá, com que garantira passar o Carnaval com ela, veio com essa de que não foi possível, pediu perdão, jurou que na Semana Santa fariam a viagem prometida. Nem deu para lhe contar que perdeu o emprego, que ia ter que procurar outro após os feriados. E agora? Não tinha plano B, descartara todas as propostas dos amigos. Uma coisa era certa: não ia aguentar ficar em casa. Sua rua era passagem de blocos quase todos os dias, insuportável aquela algazarra, aquela palhaçada... Anotou os horários, para programar evitá-los.

O bloco de sábado era no final da tarde. Foi visitar a mãe. Mal entrou na casa viu que a irmã estava lá. Clima tenso, como sempre. Logo estavam discutindo, a irmã cobrando uma maior presença dela no cuidado da mãe, dizendo não entender porque ela não vinha morar ali, ela cobrando da irmã que levasse a mãe para morar com ela, já que era casada e tinha uma casa com toda a "infra", por causa dos filhos, etc. A mãe fingia assistir TV e não ouvir a discussão constrangedora. Ela saiu aos prantos. Quando chegou em casa desabou na poltrona da sala. Ainda bem que o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

Domingo o bloco era logo depois do almoço. Decidiu almoçar em Petrópolis, respirar ar puro. Chegou à Av. Brasil até facilmente, mas antes de pegar a Rio-Petrópolis o carro parou de repente. O tanque estava cheio; o que podia ser? Tentou dar partida várias vezes. Ligou pro mecânico, torceu que atendesse. Deu sorte. Ele ia terminar um "servicinho" e logo a socorreria. Apareceu uma hora depois, examinou, tentou alguma coisa. Nada. De tudo o que ele disse, só ouviu quando falou em rebocar, e "dar uma posição" na sexta. Duas horas depois o reboque chegou, pôde ir para casa. Suspirou aliviada porque o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

Destinado às crianças, o bloco de segunda era de manhã. Tomou um café rápido e foi para o Aterro do Flamengo. Caminhou devagar, alongando o corpo, apreciando a zoada das maritacas. Sentiu-se mais leve, reconfortada. Na volta, não viu o buraco na rua, pisou de mau jeito, torceu o pé e caiu, batendo o lado numa mureta. A dor nas costelas era lancinante e não conseguia firmar o pé. Alguém a ajudou a levantar e chegar ao seu prédio, o porteiro levou para o apartamento. Não quis hospital, achou que bastava colocar gelo. Improvisou um sanduíche e se estatelou na cama. Pelo menos o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

No dia seguinte levantou com ajuda da bengala que a vizinha tinha emprestado. Ao se ver no espelho, levou um susto: olhos fundos, rosto emaciado, cabelos desgrenhados. Resolveu acabar com aquilo. Tomou uma chuveirada, ajeitou os cabelos, caprichou na maquilagem. Catou no armário uma minissaia antiga, uma meia arrastão, uma blusa tomara-que-caia, colar e pulseiras coloridos. Fixou o tornozelo com uma tala. Empunhou a bengala e saiu procurando um bloco. Não havia nenhum na sua rua naquele dia. De táxi, achou um quase do outro lado da cidade. Mergulhou na folia. No meio do desfile já tinha esquecido as dores. Agitava a bengala, pulava e cantava.

Até hoje ninguém sabe o que aconteceu depois. Uns dizem que ela continua vagando pelas ruas da cidade, cantando e girando a bengala, com a qual agride quem tenta se aproximar. Outros dizem que ao atravessar a rua para comprar uma garrafa de água foi atropelada por um caminhão. Há também quem diga que ali no bloco mesmo conheceu um cineasta argentino, vive hoje com ele em Buenos Aires e conseguiu enfim ser feliz.


RJ, fevereiro 2010



Mon, 01 Mar 2010 01:04:00 +0000

27 de Fevereiro de 2010, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

E NO ENTANTO ACREDITE




Era sempre na pior hora. No meio do banho depois da caminhada matinal, por exemplo. O telefone tocava. Saía quase escorregando no chão molhado, com a toalha agarrada às pressas, e lá vinha:
- A Josefina está?
Ou quando, refestelada no sofá para assistir sua série policial favorita, ia enfim descobrir o assassino:
- Posso falar com a Josefina?
Nos momentos em que batia o lado ruim da solidão atendia correndo, na esperança de uma voz familiar ou amiga:
- Boa noite. A senhora Josefina?
Vontade de mandar a algum lugar distante, de matar ou de morrer. Mas explicava:
- Este telefone já é meu há cinco anos; por favor, não há ninguém aqui com esse nome...
Naquela tarde não deu outra. Tinha acabado de sair, atrasada como sempre, para a consulta médica, bolsa de um lado, saco com os resultados dos exames do outro. Mal fechou a porta ouviu a campainha. Pensou em não atender, mas podia ser cancelamento da consulta, vasculhou o monte de bugigangas da bolsa onde jogara a chave e abriu a porta correndo para o usual:
- Dona Josefina, por favor?
Depois da explicação de rotina, pegou o metrô. Humor estragado, quase recusou quando a mocinha viçosa levantou para ceder o lugar, não lhe deixando esquecer a idade. Sentou sem agradecer.
De repente reparou a mulher sentada a seu lado. Igualzinha a ela: mesma faixa etária, mesmo tipo de roupa, mesmo corte de cabelo, só o tom da tinta um pouco mais escuro. Veio aquela lembrança idiota do anúncio do bonde da infância: "Veja, ilustre passageiro /o belo tipo faceiro / que o senhor tem a seu lado./ E no entanto acredite..."
Para completar, a mulher levava um saco plástico do mesmo tamanho, da mesma cor, do mesmo laboratório, quiçá com os mesmos exames que ela. Sorriram. Comentaram: indo ao médico, as duas; na Praça Saenz Peña, as duas.
Na estação Catete tinham trocado informações sobre os motivos da consulta, os piripaques de cada uma. Na Glória passaram para dicas de cabeleireiro e de dietas. Na Cinelândia chegaram às profissões, uma bióloga, a outra psicóloga, ambas aposentadas. Na Uruguaiana já confidenciavam história de vida, casamento na mesma época, separação mais ou menos pelos mesmos motivos, filhos criados. E assim foram, de estação em estação, se inteirando das grandes semelhanças e das pequenas discrepâncias de suas biografias.
Quando enfim saíram do metrô, a volta à superfície pareceu o fim de um sonho. Ficaram um tempo paradas, sem querer se despedir. Já ia cada uma para seu lado quando ela chamou:
- Ei! Conversamos tanto e eu nem sei o seu nome.
- Jô. E o seu?
- Jô? Só Jô?
A outra riu:
- Não vá espalhar, na verdade é Josefina, mas todo mundo me chama de Jô. Não sei por que minha mãe fez isso comigo.
Riram muito quando ela contou suas desventuras telefônicas, até descobrirem que o número tinha mesmo sido da outra, antes da mudança para Copa, há sete anos.
Naquela noite, quando estava escovando os dentes para se deitar, o telefone tocou. Atendeu com a boca ainda espumando. Surpresa:
- Desculpe, sou eu. A Jô. Não resisti à vontade de ligar, foi legal te conhecer. Que tal tomarmos um café amanhã, está a fim?
A partir daí foi um cafezinho aqui, um cineminha ali, um jantar acolá, não desgrudavam mais. Assunto a perder de vista. Programas, compras, planos de viagens, depressões e alegrias, partilhavam tudo.
Uma noite combinaram ficar na casa dela vendo o filme que descobriram que era o preferido de ambas, Casablanca, degustando queijos e vinhos.
No final do filme, o vinho era tanto e a emoção tamanha que se abraçaram enternecidas. Começaram a se tocar, a se beijar, e logo estavam na cama, degustando uma nova maneira de amar.
Cada vez era mais difícil se separar. Em poucos meses resolveram morar juntas, Jô se mudou para a casa dela.
É com enorme prazer que agora atende sempre o telefone. Não há mais engano. Mesmo quando não é para ela, pode enfim responder, satisfeita, completa:
- Um momentinho que eu vou chamar.




RJ, outubro 2009



Mon, 01 Mar 2010 01:02:00 +0000

27 de Fevereiro de 2010, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

COMO ERA GOSTOSO O PÃO FRANCÊS

Hoje tive que ir ao supermercado. Simplesmente não tinha mais nada comível em casa. Adio esse momento até não poder mais. Ironia, pois devia ser um prazer. Antigamente era uma obrigação, a mala do carro ficava cheia de sacolas: quilos disso, dúzias daquilo. Agora, que os filhos já foram viver suas vidas e eu já me aposentei, devia poder curtir só o que gosto, certo? Errado. A questão da comida virou uma verdadeira guerra entre o bem e o mal. Não há uma vez que eu abra a Internet que não receba um monte daqueles e-mails aconselhando todo tipo de cuidado, coisas que a gente sempre comeu e descobre que já era para ter morrido, de tão ruins que são para a saúde; outras que nem sabíamos que existiam e somos informados que não dá para viver sem. E você tem que estar sempre se atualizando, pois uma coisa pode ser indispensável hoje e um veneno amanhã. O maior exemplo é o ovo. Imagino a confusão que deve ser nas granjas: nem as galinhas sabem mais se é para botar ou não. Os médicos são verdadeiros sádicos. As vezes me dá vontade de perguntar se eles seguem o que recomendam. Basta ir fazer um check-up básico e a gente sai com um monte de prescrições e receitas, mesmo que tenha ido ao dermatologista só para perguntar se seria bom tirar aquele sinal que apareceu no ombro esquerdo. No início achei prudente pregar as normas na porta da geladeira: o que posso, o que não posso, o que devo, o que não devo. Até o dia em que eram tantas listas e ímãs que não consegui encontrar a geladeira. Aí tirei tudo, e nem levo mais lista quando vou às compras. Descobri o princípio da coisa: basta você passar a comer e beber só o que não gosta, e evitar o que gosta. É óbvio que todos os defeitos que o médico detecta no seu organismo se devem aos hábitos que você cultivou na vida, então há que reverter o processo.

Assim, fui enchendo o carrinho com todas as coisas insossas que encontrei, percorrendo as prateleiras preguiçosamente. Ao final, me dirigi orgulhosa ao caixa, certa de que seria aprovada em qualquer vistoria. De repente, ao passar pela seção de pães, uma moça de avental colocou, quase no meu caminho, uma enorme cesta cheia de pãezinhos franceses, recém saídos do forno. O cheiro era ensurdecedor. “Cacetinhos” - murmurei, lembrando de Salvador. A moça viu meu ar desolado. Deve ter achado que pisou no meu pé, ou talvez intuiu mesmo a maldade maior que acabara de me infligir. Pediu timidamente desculpas. Eu ali, respirando fundo, apoiada no carrinho, me deixava levar pelo cheiro para um mundo tão antigo que julgava perdido na memória: mamãe passando manteiga no pão, aquele cheirinho misturado com o da mão dela enquanto mexia o café, eu já salivando com o nariz pregado na mesa. Ou pedindo para um de nós comprar “duas bisnagas”, e todo mundo queria ir. Ela dava o dinheiro e avisava: “Mas é para o lanche, não é para comer no caminho não, hein?”. Falava por falar. Sabia que a bisnaga já chegaria sem o bico, que a parte boa era voltar comendo a ponta quentinha. Olhei o pão integral acomodado imponente no meu carrinho, cheio de avisos de coisas corretas na embalagem: fibras, cereais, sem gluten, sem gordura trans, etc. Sondei em volta: ninguém estava vendo. Surrupiei dois cacetinhos e joguei no carrinho. Mas aí me lembrei também da merenda, o sanduíche que mamãe fazia com mortadela. Voltei ao balcão de frios, pesquei um pacote de mortadela – pecar por pouco, pecar por muito.

Vim pela rua meio desconfiada, olhando para os lados, com medo de ser parada pela polícia; imaginava o defensor da lei e dos bons costumes me interpelando: “O que é que a senhora está levando aí?” Quando já ia chegando, quase tropecei em dois meninos dormindo na calçada; desses meninos que tem gente que chama de “menor”, mas que eu acho que são crianças também. Dormiam tão quietos que me preocupei, parei para ver se respiravam. Um devia ter uns doze anos, o outro era mais novo. Dava para ver as perninhas magras saindo da coberta. Olhei para o céu: “Tá bom, já entendi, cara!” Tirei a sacola com os dois pãezinhos e o pacote de mortadela e ajeitei ao lado deles. O caçula acordou; deve ter sido pelo cheiro. Mandei um beijo com a mão e fui embora. Estava satisfeita, pronta para o meu pão integral. Foi o melhor pão francês que já não comi na vida. Inda mais com o sorriso lindo que o menino me deu de troco.


RJ, agosto 2009



Mon, 01 Mar 2010 00:59:00 +0000

27 de Fevereiro de 2010, 21:00, por Desconhecido - 0sem comentários ainda

A HORA E A VEZ DE A.M.

Não é a primeira vez que participo de um grupo em que se propõe que se liste os 10 melhores filmes, na opinião de cada um. Não é tampouco a primeira vez que omito na minha lista um filme que teve um papel fundamental na minha vida: “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A omissão não é gratuita. Não se trata de desmerecer a beleza ou a importância do filme. A questão é que eu simplesmente não o assisti.

Estava eu fazendo dois meses de cursinho pré-vestibular (depois de muitos cálculos foi o que deu para pagar), e um colega começou a me paquerar: me dava carona após a aula, convidava para um chopinho e coisa e tal. Eu nunca tinha namorado, mas os hormônios adormecidos pelo intelecto se impuseram, e um dia acabei aceitando acompanhá-lo até o pequeno apartamento que improvisara, depois de um desentendimento com os pais, em Santa Teresa.

Era um rapaz razoavelmente rico, na minha avaliação, pois carro e apartamento eram sinais de uma vida bem diferente da minha. Nasci pobre, e minha mãe tinha uma série de preceitos que tínhamos de seguir por isso: tínhamos que ser honestos (“pobre vai para a cadeia, rico não”); trabalhar muito sem descuidar do estudo (“ter uma profissão, um emprego com estabilidade”); aliás, tirar sempre as notas mais altas (“rico não precisa, tem herança”); não ver tevê na casa dos outros (para não saberem que não tínhamos); não ler jornal (“tem muita coisa imprópria”) nem gibi, só livros; andar sempre arrumado (ela mesma varava a noite costurando, cerzindo, lavando e engomando as nossas roupas); falar direito (nem gíria, nem palavrão, nem apelido).

Havia ainda os preceitos específicos por sexo: meus irmãos não podiam nos bater, o que era ótimo: quando eu brigava com um, ele não podia revidar (“homem não bate em mulher, nem com uma rosa”); já as filhas mulheres (minha irmã e eu) não podiam ser “moças fáceis”, nem ficar pensando em namoro e casamento, pois “mulher não pode depender de homem, tem que ter uma carreira”. Assim, eu via minhas coleguinhas de ginásio trocando confidências e segredinhos, rindo maliciosamente, enquanto eu vivia mergulhada nos livros.

Eu tinha decidido enfim por uma profissão: ia estudar Sociologia. O motivo era tentar entender essa dicotomia entre ricos e pobres que matizava toda a minha vida, e que eu sabia que não era culpa nossa (afinal, fazíamos tudo certinho), nem de Deus (a essa altura não mais que uma sublime ausência). Achei que só podia ser uma questão social, e me dispus a decifrá-la.

Então ali estava eu , de repente, no apartamento do colega, que foi logo se pondo à vontade, tirando sapato, camisa, sentando no colchão que fazia as vezes de sofá e cama, cheio de almofadas, no chão. Ficamos conversando, ouvindo música, descobrindo muita coisa em comum, e eu também fui ficando à vontade. Logo estávamos nus, trocando mil carícias. Tudo muito natural e gostoso, eu enfim me tornando mulher.

Sabia que tinha cometido um pecado mortal, pelo menos para minha mãe; ele me deixou em casa (na esquina, pois também não se devia deixar ver que morávamos num prédio de conjugados), mas eu tinha perdido totalmente noção da hora. Minha mãe me esperava na portaria, e, ao me ver, mudou o ar de preocupação para reprovação. Perguntou onde eu estivera, respondi rapidamente, pedindo desculpas, que tinha ido ao cinema com algumas colegas.

-Que filme? - ela perguntou, brava .

-“ A hora e a vez de Augusto Matraga” - foi o que me ocorreu; tinha ouvido alguém comentar sobre esse filme, e tinha certeza que mamãe não saberia o que era – não me lembro de tê-la visto ir ao cinema, mas mesmo que fosse, não seria para ver filmes nacionais, pois, segundo ela, “ antes era só pornografia, agora só mostram miséria” . Ela certamente assinaria embaixo a declaração, depois famosa, do Joãozinho Trinta, de que “pobre não gosta de miséria; quem gosta de miséria é intelectual”.

Já me deparei, depois, com anúncios desse filme em algumas mostras de cinema brasileiro, mas nunca quis assistir. Desconheço o diretor, os atores, o enredo. Minha impressão é que, se o vir, estrago o prazer da minha maior mentira. No meu imaginário, também recuperaria a virgindade, da qual custei tanto para me livrar.

RJ, julho 2009



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