A Travessia de Marina
Marina Silva, independente de qualquer filiaçãopartidária ou qualquer interesse político imediato, a partir do que possamosjulgá-la, é uma figura que tem engrandecido enormemente as possibilidades daprópria política no Brasil. Tanto do ponto de vista programático quanto ético.
O princípio político de não se julgarprecipitadamente quem quer que seja, no caso de Marina, é um imperativo sobpena de não se ter a capacidade de identificar o que é especial em nossaHistória, a com H maiúsculo.
Getúlio Vargas, JK e Lula, para ficar nos maisimportantes ex-presidentes pós 30, também foram referências centrais deprocessos que promoveram importantes saltos históricos que impactaram a culturapolítica brasileira, para além da própria conjuntura em que atuou. Marina é umapossibilidade real, mas é a sociedade brasileira, com maior responsabilidadespara as lideranças e formadores de opinião, que definirá com precisão seu papelhistórico.
Getúlio deixou um legado histórico que introduziudefinitivamente na cultura política nacional, o desejo e a capacidade de nospensarmos como nação por inteiro, incluindo todas as regiões, inaugurando assimo anseio por soberania, na cidadania comum.
JK foi referência de um processo que acrescentou emnossa cultura política, o desejo e a capacidade de se pensar o Brasil para alémdas lógicas paroquiais.
Lula marcou definitivamente a adoção da pauta socialem nossa cultura política, ao mesmo tempo em que recolocou o papel deprotagonista entre a cidadania.
E Marina? Quais possibilidades pode trazer?
Mas antes é preciso dizer que, claro que a conquistacultural do sentimento de nação com Getúlio, de grandeza com JK e de justiçacom Lula, não estão colocadas como uma evolução retilínea e muito menos comoelementos irreversíveis. As contradições do contexto da luta entre os diversosprojetos de nação que estão em disputa no Brasil, contingenciam e relativizamestas conquistas como história dinâmica, o que só nos aumenta ainda mais aresponsabilidade, enquanto geração, de combinar melhor as escolhas políticasque determinarão sobre nosso destino nacional.
Neste cenário, é que as possibilidades que oprocesso político representado por Marina deve ser considerado na medida em quejulgarmos como central pelo menos duas novas componentes políticas para nossaadoção cultural.
A primeira diz respeito a adoção da agenda dasustentabilidade em todas as suas dimensões e a segunda à adoção de uma práticapolítica ética, ou seja, a que nos preserve enquanto nação e sociedade organizadaa partir de direitos e deveres estabelecidos e assumidos.
Não se trata de uma única via, mas de uma vianecessária na composição política nacional. Não podemos mais nos submeter aocurto raciocínio da opção política por exclusão, mas por composição estratégica.
Também precisamos fazer a Travessia de que nos falaMarina no texto abaixo, como diz, sob pena de ficarmos à margem de nós mesmos.
Tempo da travessia,
porMarina Silva, publicado na Folha de São Paulo
Faz um ano que fomos às urnas escolher presidente,governadores, senadores e deputados. Ainda hoje repercute o patamar de votação-quase 20 milhões de votos, levando as eleições para o segundo turno- que eu eo empresário ambientalista Guilherme Leal conseguimos, representando um projetode desenvolvimento sustentável para o país.
Venho, assim, com justa razão, suscitandoanálises, criticas e avaliações quanto a possíveis desdobramentos de meu papelno intrincado cenário de nossa realidade política.
Em recente palestra no Rio de Janeiro, encontrei odeputado do PV francês Daniel Cohn-Bendit. Ele referiu-se à baixa expectativa,no passado, de que ocorressem fatos históricos que levaram ao fim estruturas esistemas que pareciam inamovíveis, como a queda do Muro de Berlim, o fim daGuerra Fria ou a existência da Comunidade Europeia. E, no presente, quemimaginaria a queda de algumas ditaduras no mundo árabe, onde o Egito é oexemplo mais eloquente?
Dialogando com Daniel, permiti-me ser mais umaanalista de meu próprio caso e lembrei que, até meados de 2008, ninguém, nem eumesma, seria capaz de preconizar o que aconteceria nas eleições de 2010, ouseja, uma candidatura a presidente, com plataforma de sustentabilidadesocioambiental, surpreender num cenário político em que o script eleitoralhavia sido minuciosamente ensaiado para ser apenas uma espécie de plebiscitoentre as principais forças políticas, PT e PSDB, que passaram a ocupar a cenade nossa crônica e empobrecedora polarização partidária.
Sem pretensão de sair de meu incômodo lugar deobjeto de análise para o talvez menos incômodo lugar de analista, ouso dizeraos que supõem prever os fados da política só com base em correlações de dadospretéritos ou em tendências que sejam bem-vindos à era do imponderável, doimprevisível. Quem poderia afirmar, há 10 ou 15 anos, que os países ricosperderiam sua aura de inexpugnáveis e teriam que lidar abertamente com seuserros, tendo que enquadrar-se nas fórmulas e receitas de "sucesso"que nos ensinaram e prescreveram?
Diante de tantas incertezas dos outros e minhas,foi em Condeúba (BA) que encontrei na poesia de Fernando Pessoa uma excelentemetáfora para minhas buscas de respostas.
Estava lá para o encerramento da Campanha daFraternidade e, graças ao refinamento do padre Juliano, conheci estes versos dePessoa: "Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que játêm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempreaos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremosficado, para sempre, à margem de nós mesmos".
0sem comentários ainda
Por favor digite as duas palavras abaixo