Gestão Solidária de bens comuns - terra, aguas, ar e software
12 de Janeiro de 2014, 18:12 - sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
Vivemos em um tempo de destruição metódica do coletivo, que de acordo com Pierre Bourdieu (1) é parte do processo neoliberal. A politica neoliberal atua globalmente no favorecimento e ruptura entre a economia e as realidades sociais. Em seu percurso destrói, deslegitima, inferioriza aquilo que é particular de cada realidade, na busca pela homogeneização, e par isso elimina todas as estruturas coletivas capazes de interpor obstáculo à mão reguladora do mercado.
Imagem do filme Cloud Atlas (no Brasil: A Viagem) (2)
Percebemos a investida neoliberal acontecendo em diferentes zonas - violação da soberania nacional, quando tropas internacionais ocupam o território de uma nação em busca de suas riquezas naturais; ou quando espalhasse o mito da meritocracia nos ambientes de trabalho, associando as remunerações em função de competências individuais, com a consequente atomização dos trabalhadores – e em todas elas há movimentos de resistência.
Considero resistência às iniciativas de oposição à lógica do livre mercado, da homogeneização e da privatização. Essas iniciativas são de diferentes intensidades (radicais-moderadas) e de formas distintas de participação (individual-coletiva). Destaco à seguir algumas ações de resistência ao neoliberalismo que considera ter caráter coletivo e radical.
As comunidades de fundo de pasto, que muitas vezes possuem relação de parentesco próximo, possuem uma forma de gestão compartilhada da terra que isolam as áreas de roça e permitem aos animais ficarem soltos em áreas sem cercas. Tal convivência só é possível pelas regras comuns que orientam o uso dos recursos naturais nas atividades produtivas das famílias. Esse modo de vida é apropriado ao Semiárido onde os recursos encontram-se escassos.
Da mesma forma os pescadores, pescadoras, faxinais e caiçaras que fazem uso coletivo dos rios, dos mangues, das praias e do mar para reprodução social e simbólica dos seus modos de vida. Através do culto a seres naturais e sobrenaturais, o que configura bases indenitárias no território, e por isso suas lutas estão para além do recurso especifico e sim territorial. Em sua visão de mundo às águas são muito mais do que outra mercadoria, um bem de consumo que é canalizado de outros lugares para suas casas.
E por que não falar das rádios livres? Considerando a Constituição Federal do Brasil como norma reguladora e que assegura direitos, ativistas da comunicação social (3) vem “plantando rádios” em comunidades rurais, quilombos, aldeias e outras áreas pouco afetadas pelas politicas de comunicação do Estado. A compreensão do ar enquanto um bem comum, e a ineficiência do Estado para regulamentar seu uso de forma igualitária e plural, faz com que eles não aceitam as legislações absurdas, nem os conchavos com representantes políticas.
Veja como isso aconteceu com os Kiriri - clique aqui
Assim, instalando rádios, efetivam o direito a comunicação para as comunidades onde trabalham, trabalhos como este reforçam a ideia da comunicação enquanto um direito que deve ser exercido por todos como forma de garantir o acesso aos demais direitos, necessidades a uma vida social digna.
Na mesma direção estão as iniciativas de gestão de software livre e as licenças copyleft. Diferente dos exemplos anteriores, o software é um bem imaterial desde sua origem. Apesar do baixo custo para reprodução dos cartões perfurados, o desenvolvimento de software alcançou possibilidades únicas com o surgimento da internet. Se antes a colaboração era uma tarefa árdua, agora passa a ser uma necessidade.
Para explicar a grande quantidade de software livre sendo desenvolvida, alguns fatores merecem destaque:
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as TIC a gestão do trabalho colaborativo ficou mais ágil e fácil,
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o modelo de desenvolvimento modularizado que separa o software em unidades de implementação integras e independentes,
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a ação de resistência na forma de produção adotada pelas grandes empresas,
Reduzir ao advento das redes telemáticas as mudanças alcançadas pelos Softtware Livre é desconsiderar o papel das pessoas enquanto sujeitos da história, e construtores do movimento por trás do conceito, além de reforçar uma ideia de tecnologia maniqueísta, neste caso a tecnologia foi boa pois ajudou as pessoas a colaborarem.
Graças a pessoas como Richard Stallman (4), cujo lema é “software livre, sociedade livre”, as possibilidades de colaboração e o espírito de compartilhamento do software livre foi corporificado na licença GPL. A licença cria uma mecanismo legal, o copyleft, que garante a continuidade das contribuições coletivas e a obrigatoriedade de uma vez feita modificações num bem GPL, a distribuição deste precisa ser sobre a mesma licença.
Apesar da iniciativa das licenças copyleft serem ações em nível de contrato social sua radicalidade é tamanha que toda a indústria midiática passou a temer iniciativas que se apropriem do conceito de “vc é aquilo que compartilha” e tem travado brigas a favor do copyright, criando barreiras, ora legais ora tecnológicas, para restringir o uso de um bem imaterial, sobre a mitificação da propriedade privada.
Para um entendimento mais amplo do movimento de software livre, da cultura livre e da pirataria recorrer ao trabalho de Adriano Belisário e Bruno Tarin que organizaram uma coletânea de artigos, entrevistas e outros formatos de texto no livro Copyfight: Pirataria e Cultura Livre.
Andre Lemos (5), aponta que a ideia de copyleft sempre esteve presente nas interações culturais e não devemos pensar em barreira e sim em caminhos para que estas trocas se intensifiquem. Aqueles interessados no livre intercâmbio de experiências e nas mútuas influências dos modos de vida diferente precisam compreender o Movimento de Software Livre como um potencializador daquilo que herdamos, ouvimos, lemos, aprendemos e vivenciamos.
Ainda, se compreendermos o software como um bem imaterial, devemos preservar sua qualidade de não causar rivalidade entre diferentes usuários, mesmo quando usando simultaneamente, temos que assumi-lo como um bem cultural sem qualquer diálogo quanto a apropriação privada sobre o mesmo.
O desenvolvimento de software livre pode representar uma importante experiência de gestão solidária de um bem imaterial, cultural, coletivo e compartilhado. O fato de ser encorajado o uso e a modificação não quer dizer que todos façam o que querem da forma que querem. Pelo contrário, no caso do uso coletivo de bens, formas de gestão são fundamentais para transformar tensões em diálogos, e não introduzir elementos de conflitos entre possíveis colaboradores.
Assim, a gestão de um software livre é uma atividade eminentemente política, uma vez que está em uso por uma comunidade, sendo essa um proprietária coletiva, as decisões sobre os caminhos não devem ser frutos de grupos ou uns poucos indivíduos. Esta tomada de decisão exige consulta de prioridades, cultura de participação do evolvidos, acolhimento de ideias pelos demais gestores.
Este exercício de gestão pode apresentar um campo fértil de práticas que promovão uma lógica inversa à do neoliberalismo. Basta que nos atentemos a ele e nos coloquemos enquanto sujeitos da história para construí-lo.
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1 - Pierre Bourdie dedicou parte de sua obra a entender como os agentes - leia sujeitos da história - incorporam a estrutura social e qual autonomia possuem para negá-la. Em seu percurso identificou que existem novas práticas de poder e dominação para além da economia, apesar de uma consistente relação.
2 - É um filme de ficção científica e drama, escrito e dirigido por Andy, Lana Wachowski (os mesmos que fizeram a trilogia "Matrix") e Tom Tykwer. A cena da imagem mostra os clones humanos geneticamente fabricado para serem escravas laborais num restaurante. Talvez uma forte provocação de onde vamos parar se o avanço neoliberal continuar? Ou ainda, quem são os "escravos laborias" nos dias de hoje?
3 - Um coletivo de ativistas da comunicação social é o Nordese Livre, que tem um dos focos nas rádios livres como projeto Rádio Amnésia - http://radioamnesia.wikispaces.com/.
4 - Stallman fundador da Free Software Foundation (FSF, Fundação para o Software Livre), uma organização sem fins lucrativos que se dedica a eliminação de restrições sobre a cópia, redistribuição, estudo e modificação de programas de computadores, através do desenvolvimento e o uso de software livre, em particularmente o sistema operacional GNU.
5 - No ensaio - Cibercultura, cidadania e identidade: em direção a umacultura copyleft - é mostrar a cibercultura como dinamizadora da cultura em nível planetário, a partir de práticas de compartilhamento e de trabalho colaborativo que é a essência mesma da cultura e da identidade cultural.
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