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‘CAMAROTIZAÇÃO’

23 de Janeiro de 2015, 9:08 , por Fórum Brasileiro de Economia Solidária (Artigos e reflexões) - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Por Selvino Heck (23/01/2015)

Surge no pedaço um palavrão adequado aos tempos atuais: 'camarotização': "Um fenômeno chamado camarotização - Neologismo criado para definir segregação entre pobres e ricos se populariza no Brasil e vira tema de vestibular" (O Globo, 18.01.15 - Sociedade, p. 41). "Qual distância separa um camarote do público em geral? No sentido literal, alguns pares de metros. No figurado, pode ser um abismo."

O termo foi criado pelo filósofo político americano Michael Sander, traduzido do inglês 'skyboxification'. É associado à ideia de segregação entre menos e mais abastados em estádios e outros espaços de eventos, como também em diferentes lugares na sociedade. "No caso brasileiro, pesquisadores destacam casos exemplares como as áreas especialmente reservadas para os chamados VIPs (na tradução literal, 'very important peoples' - pessoas realmente importantes) em boates, arenas esportivas, shows ou no carnaval. E associam o fenômeno a recentes tensões geradas pelo acesso de camadas mais pobres a shoppings, bairros nobres e até mesmo a algumas praias."

São as ilhas. As pessoas isoladas umas das outras, os muros que cercam as casas e os condomínios, cheios de portarias, interfones de acesso, seguranças, onde só pessoas especiais, 'escolhidas' têm acesso e direitos.

Não é preciso ir longe para descobrir práticas semelhantes. Há poucos dias eu esperava um carro na frente do prédio onde moro em Brasília. Estava estacionado um carro oficial. O motorista me informa que é de um Tribunal do Poder Judiciário. Chega o usuário do carro, relativamente jovem, entra no carro e senta-se no banco traseiro, separado, portanto, do motorista. Não por segurança ou qualquer razão desta ordem, mas para manter a distância/separação devida. E não acontece apenas com 'autoridades' do Poder Judiciário.

Janeiro de 2003, início do governo Lula, a ordem era não aceitar convites para os camarotes do carnaval carioca, especialmente os patrocinados por empresas privadas. Descobriu-se depois que vários companheiros ignoraram a ordem e lá estavam perfeitamente instalados e usufruindo de todas as benesses. Além do elitismo, sabe-se o preço futuro dos comparecimentos.

Há outros casos e situações. O fato de, insistentemente, anos a fio, mesmo contra a vontade do chamado, pessoas com determinados cargos, mais ou menos importantes, serem chamados de 'Doutores' ao telefone ou quando apresentados a outras pessoas. Ou os que só se lembram das secretárias/os e das/os ajudantes de serviços, ou 'boys', na hora de trabalhar ou de dar ordens. Nunca para almoçar junto, festejar o aniversário, visitar suas casas ou convidá-las/os para alguma comemoração como companheiras/os de trabalho, amigas/os. Ou a pessoa que nunca cumprimentou o servidor que limpa o banheiro do Palácio e jamais vai saber que ele se chama Antenor.

São formas de 'camarotização', cada vez mais presentes na sociedade e mais odiosas. O fenômeno é histórico, mas, segundo Alexandre Barbosa Pereira, da UNIFESP, os recentes avanços agregaram novos componentes aos conflitos entre os 'diferentes' que não se aceitam iguais. "O acesso de pessoas aos pobres a aeroportos, shoppings ou bairros mais nobres (por que mais nobres, grifo meu?) através do metrô gera uma grita dos que antes tinham vantagens. Essas pessoas querem preservar certas coisas porque não as entendem como privilégios, mas como consequência de mérito ou de dom." São casos como os rolezinhos e o episódio famoso em que um passageiro foi ironizado nas redes sociais por estar de bermuda num aeroporto. 'O aeroporto virou rodoviária' foi a acusação discriminadora e preconceituosa. Segundo Pereira, "esse processo de segregação é a negação do outro, da convivência com ele. E, embora às vezes a violência seja pretexto para a segregação, a segregação muitas vezes é a causa da violência."

Ao refletir sobre o papel do dinheiro na sociedade, Michael Sander diz que a lógica de mercado na economia se reproduziu na sociedade, penetrando instâncias como saúde, educação e política. "A mercantilização de tudo leva ricos e pobres a terem vidas cada vez mais separadas. A 'camarotização' representa ameaça à democracia, onde os cidadãos devem compartilhar uma vida em comum. O importante é que pessoas de contextos e posições sociais diferentes se encontrem e convivam na vida cotidiana, pois é assim que aprendemos a negociar e a respeitar as diferenças ao cuidar do bem comum."

Na opinião da professora Rosana Pinheiro Machado, "a 'camarotização' é uma expressão máxima do que temos assistido no patético comportamento de nossas elites, que, na Europa, adoram pegar ônibus e, no Brasil, nunca entraram em um porque tem muito povão. Ao segregar, perde-se em diversos aspectos trazidos pela negação da alteridade. Ao nos confinarmos, emburrecemos. Achamos que estamos agradando, mas estamos nos tornando caricaturas do ridículo e da falta de imaginação".

A 'camarotização' é reflexo da sociedade do dinheiro. Produz e reproduz o que vemos todos os dias no Brasil e no mundo: o preconceito, a discriminação, a concentração de renda, a desigualdade. Não humaniza, não leva à justiça e aos direitos iguais, não fortalece a democracia.


Fonte: http://www.fbes.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=8630&Itemid=62

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