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Solidariedade: trampolim para outro mundo possível

Agosto 3, 2015 15:20 , by Marcelo Inácio de Sousa - 0no comments yet | No one following this article yet.
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Este texto é uma entrevista feita por Sergio Ferrari com Franco Cavalli, oncologista suíço de fama internacional, ex-presidente da União Internacional contra o Câncer (UICC), ex-deputado nacional socialista e proeminente militante associativo e do movimento de solidariedade. Na entrevista, ele recorda que fundou a Ajuda Médica para a América Central (AMCA), em 1985, como resposta a um pedido de colegas nicaraguenses. O mais importante é "que seguimos existindo e ampliando nossas atividades. Com a confiança total de que outro mundo é possível". Cavalli afirma que "a vida política e a solidariedade não são, para mim, simples trâmites administrativos. São expressões de ternura, de sentimentos firmes, de amor, de compromisso militante". Confira a entrevista:

[+] Texto de Sergio Ferrari, colaborador de Adital na Suiça. Colaboração: E-CHANGER

Qual foi a razão que impulsionou o nascimento da AMCA há justamente 30 anos, em 1985?

Franco Cavalli - Viajei para a Nicarágua, na Semana Santa de 1985. Alguns médicos me contataram e me solicitaram apoio. Era um momento muito difícil porque havia se intensificado a guerra contrarrevolucionária contra o governo Sandinista. E este deveria destinar grande parte dos seus recursos para a defesa. Portanto, o setor médico-sanitário-preventivo, que constituía um dos eixos programáticos do Sandinismo desde a vitória popular de 19 de julho de 1979, vinha se debilitando. Senti-me profundamente interpelado por essa solicitação dos meus colegas "nicas”. E daí nasceu a decisão de criar nossa organização de solidariedad. Por uma viagem "casual”, motivada pelo amor e respondendo também com muito amor a uma demanda de apoio de parte dos nossos parceiros centro-americanos.

Franco Cavalli, fundador da AMCA, em atuação, visita projeto infantil na Nicarágua

SOLIDARIEDADE COM VISÃO POLÍTICA

Era um momento muito complexo da conjuntura centro-americana… O Sandinismo, apenas seis anos depois de conquistar o poder na Nicarágua, sofria uma devastadora guerra de agressão. Ao mesmo tempo, guerras de libertação nos vizinhos El Salvador e Guatemala. A criação da AMCA esteve imersa em uma clara identificação política…

Cavalli - Sem dúvida. No início, ligada a uma visão reduzida no setor puramente médico. Mas foi se ampliando a partir de outros estímulos da própria realidade. Por exemplo, o contato regular, intenso, com refugiados salvadorenhos, que viviam na Nicarágua. E, em menor medida, com companheiros guatemaltecos. Percebemos, então, como muito importante a solidariedade com um Estado, o nicaraguense, ameaçado e agredido pela principal força mundial. E ao mesmo tempo a solidariedade com os combatentes da guerra de guerrilhas de libertação, que se expandia na região. Importante nessa etapa, e não quero menosprezá-lo, o contato na Nicaragua com numerosos médicos cubanos, que chegaram também como internacionalistas. Foi um elemento promotor da posterior solidariedade com Cuba, que impulsionamos a partir de 1991, com a fundação da mediCuba, na Suíça. Quando nascemos como AMCA, nos estatutos estava claramente definido que somos uma organização não governamental, que tem como tarefa apoiar as forças progressistas centro-americanas.

Incluindo também uma ativa militância política no Norte…

Cavalli - Certamente. Em havia me envolvido antes na solidariedade com o povo vietnamita, colaborando com a Central Sanitária Suíça. E militava também na política suíça.

"A PRÁTICA PARA CORROBORAR A MUDANÇA"

Por que o compromisso político na Suíça, no Norte, e a promoção de uma consciência/prática solidária com o Sul constituíram para você valores essenciais?

Cavalli - Como homem político, tenho um grande interesse pela discussão teórica. Leio e discuto muito sobre Sociologia, Política, Economia. Mas sempre tenho a necessidade de fazer coisas práticas. Não me preenche apenas a teoria. E, nesse sentido, minha postura antiimperialista, que provinha da época das guerras de libertação da Argélia e do Vietnã, não só se contentava com o protesto de rua. Mas necessitava de uma prática propositiva, direta, de aproximação e apoio. E isso se expressa com o trabalho da AMCA e da mediCuba.

Fundado na necessidade de vivenciar, na prática, o sentido profundo da mudança tanto no Sul como no entorno local, regional, nacional…

Cavalli - Penso que sim… Necessito corroborar a mudança. E, para mim, nada do que ocorre em outros lugares do mundo me é indiferente. Sinto-me co-responsável por uma cidadania planetária, como ator político e como cidadão suíço. Não podemos esquecer que é um país que tem uma responsabilidads grande na conjuntura internacional.

O que implica ter uma visão clara da necessidade de novas relações interplanetárias mais justas?

Cavalli - Sim, mas esclarecendo que não estou de acordo com os que fazem grandes discursos sobre o global e não veem nem assumem os desafios de transformar também o local. Para mim, é uma ida e uma volta. Exige uma flexibilidade dialética. Por exemplo, voltando à reflexão anterior sobre os políticos suíços que desestimam essa visão de solidariedade, sinto que nessa atitude é possível pecar por oportunismo e reduzir o conceito do político a algo estreito e reduzido. Especialmente, porque se falamos da Suíça nos referimos a um país absolutamente pequeno e algo "artificial", no qual a metade da sua classe trabalhadora – estrangeira – não tem direito a voto. Sumamente atípico em sua composição social, com uma economia fundamentalmente de serviço (bancos, finanças etc.), mas com um poder real no plano internacional. Ninguém pode argumentar que a Suíça não tem nada a ver com o que acontece no resto do mundo. Integra o clube dos poderosos, que têm uma responsabilidads direta pelo subdesenvolvimento e a pobreza de uma grande parte do planeta. Não podemos negar, por exemplo, a responsabilidade significativa de muitas das grandes transnacionais helvéticas na violação de direitos humanos e ambientais na África, Ásia e América Latina. Portanto, não posso me imaginar como um verdadeiro militante progressista suíço que não tenha um compromisso também com a cooperação solidária ou com a solidariedade internacional.

"A SOLIDARIEDADE IMPLICA SENTIMENTOS, PAIXÃO"

Voltemos à prática da AMCA e à plataforma de base de sua ação: a solidariedade. Um dirigente sandinista a definia como "a ternura entre os povos". É conceito que te interpela?

Hospital em Manágua, capital nicaragüense, apoiado pela AMCACavalli - Claro, é uma definição magnífica, que continua tendo uma vigência total. E a sinto profundamente: para mim, não é suficiente gritar contra o imperialismo ou assumir bandeiras demasiado intelectuais. Para viver realmente a solidariedade internacional, é necessário um conteúdo sentimental, de amor. Saber que uma criança morre de fome na América Central ou na África, ou onde quer que seja, me parte o coração. Não posso aceitar isso. Voltando à definição – sempre é complexo definir, com simplicidade, os grandes conceitos existenciais –, não quero ficar somente no aspecto da "ternura". Poderá ser reduzido a um simples discurso cristão. E a solidariedade de esquerda, progressista, precisa basear-se em uma análise política; tem que ter apostas e princípios políticos. Porém, insisto, dialeticamente, não se pode reduzir ao político-conceitual. Solidariedade implica envolver-se com ternura, com sentimento, com paixão, com os que mais sofrem. E daí a importância que voluntários, cooperantes, jovens suíços, possam partir para a América Central e outras regiões. Lá, no terreno, na cotidianidade, é muito mais fácil observar e compreender a exploração e a injustiça do que com complexos enunciados teóricos. E, ao mesmo tempo, lá são claramente visíveis a luta e o trabalho cotidiano dos povos para enfrentar essas injustiças.

Um laboratório prático para ganhar em consciência cidadã…

Cavalli - De fato. Mas não apenas trata-se de compreender a realidade passivamente. Mas também descobrir os esforços para mudar as coisas. Essas populações são a ponta de um diamante de resistências e utopias em favor de outro mundo possível. Mas atenção: não cometamos o erro de pretender ver nessas lutas o modelo a copiar universalmente. Não podem ser imitados. Constituem uma trincheira importante, mas, em cada lugar, em cada rincão do mundo, deve se renovar criativamente a melhor forma de enfrentar, aquí e agora, a injustiça.

O PARADIGMA DE CHE

Falando da América Central, me permito um parêntese… Nos anos oitenta, foram numerosos os europeus, latino-americanos, norte-americanos, internacionalistas, que foram colaborar com os processos dessa região. E vários pagaram, inclusive, com seu próprio sangue esse compromisso.

Cavalli - Agradeço-lhe por introduzir essa reflexão. Para mim, uma das figuras paradigmáticas mais importantes da história, um dos meus heróis, é Che Guevara. E estou convencido de que os companheiros que morreram como internacionalistas são pequenos Che. Gente que foi até o fim. Mais além do seu sacrifício é impossível. Tenho-os muito presentes. Não minto se te digo que pelo menos uma vez por mês penso neles, por exemplo, em Maurice Demierre, já que estava lá, em fevereiro de 1986, quando o assassinou a contrarrevolução, perto de Somotillo. É essencial que os tenhamos sempre muito perto dos nossos corações. Reforça nossa entrega infinita em favor dos pobres. Fortalece o sentimento, o amor do nosso compromisso…

COOPERAÇÃO SOLIDÁRIA, UMA APRENDIZAGEM MÚTUA

Voltando ao trabalho da AMCA, se fosse fazer uma análise retrospectiva destas três décadas, qual foi a conquista essencial, de fundo, conceitualmente falando, mais além dos múltiplos projetos realizados exitosamente?

Cavalli - A primeira conquista é que ainda existimos e com energias. É um êxito chegar aos 30 anos e, inclusive, continuar ampliando nossas atividades. Não são poucas as associações e instituições de solidariedade que duraram muito menos tempo do que nós. A chave desse grande êxito da nossa existência – sem menosprezar erros cometidos – é ter compreendido corretamente o tipo de relação com os nossos parceiros, com os nossos colegas centro-americanos. Não chegamos lá com a nossa "verdade helvética" (nota: "confissões helvéticas" é o nome de dois documentos que expressam a crença comum de Igrejas Reformadas da Suíça), mas nos colocando no mesmo nível, horizontalmente, dos nossos colegas nicaraguenses, salvadorenhos, guatemaltecos ou mexicanos. Buscando juntos soluções para os problemas e também juntos as respostas para os desafios. Sem pretender transferir conhecimentos verticalmente, mas aprendendo mutuamente.

Outro elemento, também essencial para a nossa prática: não ter apostado em oferecer um apoio material, mas reforçar os recursos humanos locais. Tentamos sempre ajudar a desenvolver as potencialidades próprias, para que fosse assegurado que os projetos possam continuar ainda sem a nossa presença. Por exemplo, no setor da pediatria oncológica, na Nicarágua, não necessitam de nós, ou simplesmente, hoje, podemos aportar aspectos muito precisos e determinados.

Outra chave de interpretação positiva da nossa prática é a maneira original de entender a relação com os Estados dos países nos quais estamos presentes.

RESPONSABILIZAR O ESTADO, FORTALECER A SOCIEDADE CIVIL

Poderia desenvolver mais essa reflexão...

Cavalli - Ainda em épocas de governos neoliberais, tratamos sempre de envolver os representantes do Estado. Uma das minhas críticas a muitas das grandes e famosas organizações humanitárias que trabalham no terreno médico-sanitário é que chegam com tudo programado e resolvido. E implementam seus próprios projetos, instalam, inclusive, um hospital, e pensam que assim resolvem os problemas. As grandes instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional, debilitam as estruturas públicas com suas receitas de ajuste neoliberal. E, paradoxalmente, às vezes, em paralelo, muitas ONG, ainda que bem intencionadas, impulsionam seus próprios projetos e infraestruturas, tirando a responsabilidade dos Estados. Estamos convencidos que mesmo com governos de direita é preciso inserir nossos projetos em uma política de responsabilidade do Estado. Por exemplo, na Nicarágua, a escolinha "Barrilete de Colores" nasceu como um projeto alternativo ao Estado neoliberal dos anos noventa. Mas, tão logo voltou o Sandinismo ao governo, a escolinha passou a integrar os planos estatais no setor educacional.

Com frequência, as ONG internacionais expressam seu temor ante os riscos de medidas corruptas nos países onde estão presentes e por isso se distanciam dos Estados…

Cavalli - Claro que a nossa visão implica riscos. E, muitas vezes, exige mais tempo. É mais simples chegar com tudo já cozinhado, pensado, programado ao estilo suíço e instalá-lo. Pode ser, inclusive, no início, mais efetivo no curto prazo, ditanciar-se das discussões com os ministros da Saúde e outros funcionários. Mas estamos convencidos de que nossa perspectiva é mais eficaz no longo prazo e, sobretudo, mais duradoura. Conheço dezenas de exemplos de grandes hospitais em distintas partes do mundo construídos com recursos externos por ONG internacionais e que, agora, são puras ruínas. A sustentabilidade passa por envolver os governos e a sociedade civil. Às vezes, com um condimento mais forte de um sobre o outro. Mas sem perder de vista responsabilizar as políticas públicas, associando nossos projetos solidários. E aqui quero incluir o impacto histórico que tem para mim a solidariedade cubana. Os médicos e cooperantes cubanos aportam para melhorar as condições de vida das populações em distintos continentes. E nem sempre tratam-se de governos progressistas. Mas eles se mantêm com persistência em sua prática, em todo caso, desde que não os expulsem. O conceito de solidariedade de Cuba é exemplar.

Durante estas três décadas, a existência da AMCA se deu em um cenário internacional de grandes mudanças políticas, que repercutiram na solidariedade internacional. Por exemplo, o impacto profundo da derrota do Sandinismo, em fevereiro de 1990 (pouco tempo depois da queda do Muro de Berlim e o fim do Socialismo real), para todo o movimento de solidariedade, especialmente na Europa e América do Norte.

Cavalli - A derrota do Sandinismo teve um efeito terrível. Necessitamos de muito tempo para reorientar nossa prática.

Crianças nicaraguenses da escolinha "Barrilete de Colores”, projeto promovido pela AMCA em Manágua

A SOLIDARIEDADE COMO PLATAFORMA PARA OUTRO MUNDO POSSÍVEL

Para completar essa reflexão mais conceitual, gostaria de saber como se situa, hoje, em 2015, a solidariedade internacional, segundo slogans ou bandeiras que definiram momentos históricos importantes para essa tal solidariedade. "A imaginação ao poder", do maio francês (fim dos anos 1960); "Pátria livre ou morrer" (da América Central dos setenta e oitenta); ou o "Outro mundo possível", do altermundialismo ligado ao Fórum Social Mundial, a partir de 2001, nutrido pela reflexão zapatista sobre as novas relações interplanetárias…

Cavalli - "A imaginação ao poder" responde a um momento histórico, mas tem um condimento muito individualista e quase pequeno burguês. "Pátria livre ou morrer" está ligado a uma conjuntura específica de uma dinâmica político-militar particular, como a nicaraguense dessa etapa histórica. Sem dúvida, me identifico claramente com a visão do "Outro mundo possível". É, hoje, a bandeira política mais importante. Penso que, inclusive, para a juventude, que deve ser o relevo essencial da nossa geração no exercício da solidariedade ativa. São esses jovens – e estamos vivendo isso na AMCA – com outras sensibilidades, outras experiências de compromisso, com novos códigos culturais, os quais percebem que a pobreza cresce no Sul. E que as desigualdades planetárias, com mecanismos globais de dominação, têm responsáveis claros.

É muito importante conseguir facilitando para que esses jovens possam viver e aprender sobre as realidades do Sul. É como uma escola prática, como dizia antes. Um método quase 100% seguro de sensibilização e tomada de consciência cidadã… É mais fácil e impactante começar com uma viagem para a Nicarágua ou a América Central do que com um discurso conceitual retórico.

Creio que a única possibilidade que a solidariedade internacional tem para sobreviver é oferecer aos jovens visões, opções de práticas concretas e não apenas discursos.

Com vistas a 2035, nos 50 anos da AMCA (e algo mais de 90 anos de idade de Franco Cavalli), qual seria o sonho essencial com respeito aos objetivos da solidariedade?

Cavalli - Não sei. É uma aposta demasiado teórica. Uma resposta seria que espero muito que, em 2035, a AMCA não seja mais necessária, porque teremos chegado a outro mundo mais justo, onde a solidariedade como a conhecemos agora deixou de existir.

[+] Esta entrevista realizada por Sergio Ferrari – em uma versão mais ampla – faz parte do livro "AMCA y su gente” [AMCA e sua gente, em portugués], publicado na Suíça no marco da celebração dos 30 anos da associação de mesmo nome e apresentado, públicamente, em 30 de julho 2015 em uma actividad pública, em Ascona (Tesino).
[+] A AMCA conta com o apoio da cooperação oficial suíça. Faz parte da plataforma UNITE de cooperação helvética através do intercâmbio de pessoas. E também da FOSIT, Federação da Suíça Italiana para a Cooperação. E tem relações firmes com numerosas organizações e redes, entre elas Medicuba, Médicos do Mundo, Suíça e E-CHANGER/COMUNDO.

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Cultura, Internacional, Política
This article's tags: solidariedade outra economia

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