14 de Abril de 2015, 15:51
, por MinibiblioteCaldas
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Eustáquio Gomes
Era no tempo em que ainda existiam as lojas Mappin, isto é, não faz muito. Marco, um estudante de filosofia, estava recebendo a visita da mãe, que viera de longe para vê-lo. Nesse dia levou-a ao Mappin para que ela comprasse uma blusa. Já começava a fazer frio. Enquanto a mãe percorria a seção de roupa feminina, deslizando em câmera lenta de ilha em ilha, com a firme intenção de percorrer todo o arquipélago, Marco foi sentar-se numa cadeira e abriu um livro.
Na cadeira vizinha estava sentada uma moça que também lia um livro. Observou-a de soslaio. Tinha o rosto ovalado, os olhos eram verdes e os cabelos escuros desciam até os ombros. O tecido da blusinha fina colava-se ao tronco frágil e delicado que no entanto descrevia um harmonioso percurso até os quadris fortes e destes para a solidez das coxas ocultas pela saia estampada. Marco levou um pequeno susto quando viu a capa do livro que ela segurava: era o mesmo que ele lia, isto é, a maravilhosa novela de Arthur Schnitzler, Breve Romance de Sonho. Teria ela visto o filme de Stanley Kubrick?
A quem ela espera?, perguntou-se. Logo teve a resposta. Um homem se aproximou, entregou-lhe qualquer coisa em silêncio (um silêncio pesado, distante) e afastou-se de novo em direção aos provadores. Casada, concluiu Marco. Seja como for, em que página do livro ela se encontra? Esticou os olhos e descobriu que na página 85. Não teve dúvida de que ela terminaria de lê-lo aquela noite mesmo, recostada num travesseirão, enquanto o marido, bem, o marido se ocupava de outra coisa num outro aposento. Desejava que assim fosse e envergonhou-se disso.
Se está na página 85, refletiu Marco, então seus olhos já percorreram aquele trecho que os dele já haviam percorrido com uma emoção agravada pela imaginação:
— "Ele hesitou um instante; depois, fez como ela queria, deitando-se a seu lado. Cuidou, porém, para não tocá-la. (...) Ficaram ambos em silêncio, deitados de olhos abertos, sentindo a proximidade e a distância um do outro".
Teria ela sentido o mesmo que ele? Pareceram absortos na leitura durante quinze minutos. Mas demoravam muito a passar de uma página a outra. Na verdade, conjeturou Marco, observavam-se sem se olharem. Teve certeza disso quando ela repentinamente virou-se para ele e, deixando claro que havia notado a coincidência dos livros, sorriu-lhe. Mas não disse nada e fingiu voltar à leitura. Ao fim de dez minutos o marido retomou e chamou-a à parte. Ela deixou o livro sobre a cadeira e acompanhou-o. Parecia irritado e insatisfeito com alguma coisa, talvez com as camisas que provava, nenhuma delas boa o suficiente para ele. Quando o marido se afastou, ela levantou ostensivamente os olhos para o teto e suspirou. É coisa antiga, concluiu Marco. E viu-a acomodar-se outra vez na cadeira, com uma graça de gazela, e reabrir o livro. Pobrezinha, pensou.
Nesse ínterim a mãe de Marco reapareceu e chamou-o. Havia escolhido uma blusa que não lhe caía bem, e Marco teve trabalho para convencê-la disso:
— Está grande nos ombros, mãe.
— Mas eu sou apenas uma viúva, disse a mãe.
— Por isso mesmo, brincou Marco. Quando voltou para a sua cadeira, a moça estava de pé mirando-se num espelho. Tinha ouvido a conversa e sorria. Juntou os cabelos para trás e passou-lhes uma presilha. Estava agora com o pescoço à mostra e Marco pensou que era para ele. Teve então a idéia maluca de passar diante do espelho e encará-la de frente, quase não acreditando no que fazia. Ela notou o estratagema e ao vê-lo passar pareceu acompanhá-lo com os olhos interessados. Marco sentiu o rosto queimar de excitação. Vagaram então pelo arquipélago, em linha paralela ou de costas um para o outro, como estudando o terreno. Voltaram quase juntos para as cadeiras e tomaram a abrir os respectivos livros.
Pensou em lhe dirigir a palavra nestes termos: "O final é surpreendente". "Não me conte", ela diria. E ele: "Acha que a fantasia de Frigolin é real ou imaginária?". Mas não chegou a dizer nada. O marido estava outra vez de volta e passou por ela como um cometa, convocando-a com um movimento de cabeça. Ela levantou-se e seguiu-o. Marco viu-os se afastarem em direção à saída e previu que, chegando à porta, ela voltaria a cabeça e sorriria de novo para ele. Mas não o fez. Perdeu-se na multidão do shopping.
Tarde da noite, na pensão onde tinha um quarto, enquanto via a mãe reforçar amorosamente um dos botões da blusa nova, Marco notou que seu exemplar do Schnitzler tinha uma página dobrada ao meio. O que era estranho, pois não costumava dobrar páginas de livros. Observou melhor e constatou, aterrado, que aquele exemplar não era o seu. Tinha havido uma troca. Tanto haviam se levantado e sentado que tinha havido uma troca. Foi quando, entre a capa e a folha de rosto, encontrou um diminuto cartão de visitas. Leu: Alicia Ferreira de Oliveira Paniagua. E embaixo, acrescentado à mão: [email protected]. E mais abaixo um número de telefone.
Sobre o autor:
Eustáquio Gomesnasceu em Campo Alegre, povoado localizado no oeste de Minas Gerais, em 1952. Filho de pais lavradores, realizou seus estudos lutando contra dificuldades, primeiro na cidade de Luz (MG) e depois em Assis (SP), antes de bacharelar-se em jornalismo pela Universidade Católica de Campinas. Mais tarde tornou-se Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e defendeu tese sobre os modernistas de província. Sua infância é tema recorrente das crônicas publicadas em jornais e revistas, como "O mestre escola", "Os paramentos" e "Paisagem com neblina". Os seis anos vividos em colégios internos lhe inspiraram um romance, "Jonas Blau". O curso de jornalismo lhe deu uma profissão, a de repórter e depois editor, que exerceu desde os 19 anos. Trabalhou em jornais do interior do Estado de São Paulo e colaborou ocasionalmente em jornais da capital, tais como O Estado de S. Paulo e Jornal da Tarde. Entre 1973 e 1981 atuou também na área de propaganda e publicidade, primeiro na empresa Bosch do Brasil, em Campinas, e em seguida na White Martins, no Rio de Janeiro. Na condição de jornalista esteve, desde 1982, ligado à Unicamp. Como colaborador regular do jornal Correio Popular, de Campinas, já publicou mais de 500 crônicas, além de reportagens especiais, entrevistas culturais e outros textos. Dos dez livros publicados de Eustáquio Gomes, a maioria é desconhecida do grande público. "A Febre Amorosa", o mais difundido, está na segunda edição e é considerado "um pequeno clássico do underground" (Luiz Fernando Emediato). Foi adaptado para o teatro em 1996. Além de "A Febre Amorosa" (romance, 1994), seus outros livros são: "Cavalo Inundado" (poemas, 1975), "Mulher que Virou Canoa" (contos, 1978), "Os Jogos de Junho" (novela, 1982), "Hemingway: Sete Encontros com o Leão" (ensaio biográfico, 1984), "Jonas Blau" (romance, 1986), "Ensaios Mínimos" (ensaios, 1988), "Os Rapazes d'A Onda e Outros Rapazes" (ensaio, 1992), "Um Andaluz nos Trópicos" (entrevista com o pintor Bernardo Caro, 1995), "O Mapa da Austrália" (romance, 1998) e "A Febre Amorosa: Romance Bandalho" (romance, 2001) .
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