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Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade

3 de Setembro de 2014, 19:10 , por Desconhecido - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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                                                     Moacyr Scliar

Nós somos um terrível pistoleiro. Estamos num bar de uma pequena cidade do texas. O ano é 1880. Tomamos uísque a pequenos goles. Nós temos um olhar soturno. Em nosso passado há muitas mortes. Temos remorsos. Por isto bebemos.

A porta se abre. Entra um mexicano chamado Alonso. Dirige-se a nós com despeito. Chama-nos de gringo, ri alto, faz tilintar a espora. Nós fingimos ignorá-lo. Continuamos bebendo nosso uísque a pequenos goles. O mexicano aproxima-se de nós. Insulta-nos. Esbofeteia-nos. Nosso coração se confrange. Não queríamos matar mais ninguém. Mas teremos de abrir uma exceção para Alonso, cão mexicano.

Combinamos o duelo para o dia seguinte, ao nascer do sol. Alonso dá-nos mais uma pequena bofetada e vai-se. Ficamos pensativo, bebendo o uísque a pequenos goles. Finalmente atiramos uma moeda de ouro sobre o balcão e saímos. Caminhamos lentamente em direção ao nosso hotel. A população nos olha. Sabe que somos um terrível pistoleiro. Pobre mexicano, pobre Alonso.

Entramos no hotel, subimos ao quarto, deitamo-nos vestido, de botas. Ficamos olhando o teto, fumando. Suspiramos. Temos remorsos.

Já é manhã. Levantamo-nos. Colocamos o cinturão. Fazemos a inspeção de rotina em nossos revólveres. Descemos.
A rua está deserta, mas por trás das cortinas corridas adivinhamos os olhos da população fitos em nós. O vento sopra, levantando pequenos redemoinhos de poeira. Ah, este vento! Este vento! Quantas vezes nos viu caminhar lentamente, de costas para o sol nascente?
No fim da Rua Alonso nos espera. Quer mesmo morrer, este mexicano.
Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o mexicano. Seu riso se apaga. Vê muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.
Nós vemos um mexicano. Pobre diabo. Comia o pão de milho, já não comerá. A viúva e os cinco filhos o enterrarão ao pé da colina. Fecharão a palhoça e seguirão para Vera Cruz. A filha mais velha se tornará prostituta. O filho menor ladrão.
Temos os olhos turvos. Pobre Alonso. Não se devia nos ter dado suas bofetadas. Agora está aterrorizado. Seus dentes estragados chocalharam. Que coisa triste.
Uma lágrima cai sobre o chão poeirento. É nossa. Levamos a mão ao coldre. Mas não sacamos. É o mexicano que saca. Vemos a arma na sua mão, ouvimos o disparo, a bala voa para o nosso peito, aninha-se em nosso coração. Sentimos muita dor e tombamos.
Morremos, diante do riso de Alonso, o mexicano.
Nós, o pistoleiro, não devíamos ter piedade.
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Sobre o autor: 
Moacyr Jaime Scliar nasceu em Porto Alegre (RS), no Bom Fim, bairro que até hoje reúne a comunidade judaica, a 23 de março de 1937, filho de José e Sara Scliar. Sua mãe, professora primária, foi quem o alfabetizou. Cursou, a partir de 1943, a Escola de Educação e Cultura, daquela cidade, conhecida como Colégio Iídiche. Transferiu-se, em 1948, para o Colégio Rosário, uma escola católica.

Em 1955, passou a cursar a faculdade de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre (RS), onde se formou em 1962. Em 1963, inicia sua vida como médico, fazendo residência em clínica médica. Trabalhou junto ao Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU), daquela capital. 

Publica seu primeiro livro, “Histórias de um Médico em Formação”, em 1962. A partir daí, não parou mais. São mais de 67 livros abrangendo o romance, a crônica, o conto, a literatura infantil, o ensaio, pelos quais recebeu inúmeros prêmios literários. Sua obra é marcada pelo flerte com o imaginário fantástico e pela investigação da tradição judaico-cristã. Algumas delas foram publicadas na Inglaterra, Rússia, República Tcheca, Eslováquia, Suécia, Noruega, França, Alemanha, Israel, Estados Unidos, Holanda e Espanha e em Portugal, entre outros países.
Em 1965, casa-se com Judith Vivien Oliven.
Em 1968, publica o livro de contos "O Carnaval dos Animais", que o autor considera de fato sua primeira obra.
Especializa-se no campo da saúde pública como médico sanitarista. Inicia os trabalhos nessa área em 1969.
Em 1970, freqüenta curso de pós-graduação em medicina em Israel, sendo aprovado. Posteriormente, torna-se doutor em Ciências pela Escola Nacional de Saúde Pública.
Seu filho, Roberto, nasce em 1979.
A convite, torna-se professor visitante na Brown University (Departament of Portuguese and Brazilian Studies), em 1993, e na Universidade do Texas, em Austin.
Colabora com diversos dos principais meios de comunicação da mídia impressa (Folha de São Paulo e Zero Hora). Alguns de seus textos foram adaptados para o cinema, teatro e tevê.
Nos anos de 1993 e 1997, vai aos EUA como professor visitante no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University.
Em 31 de julho de 2003 foi eleito, por 35 dos 36 acadêmicos com direito a voto, para a Academia Brasileira de Letras, na cadeira nº 31, ocupada até março de 2003 por Geraldo França de Lima. Tomou posse em 22 de outubro daquele ano, sendo recebido pelo poeta gaúcho Carlos Nejar.
O escritor faleceu no dia 27/02/2011, em Porto Alegre (RS), vítima de falência múltipla de órgãos.

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                        Por Adele

Fonte: http://caldasminibibliotecas.blogspot.com/2014/09/nos-o-pistoleiro-nao-devemos-ter-piedade.html

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