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Pau-de-arara, tortura e capitães-do-mato: as práticas modernas da Marinha no Quilombo Rio dos Macacos

22 de Fevereiro de 2012, 22:00 , por Alan Freihof Tygel - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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O sol já vai se pondo, e os escravos aproveitam o fim de tarde na senzala para descansar da jornada extenuante. O trabalho no engenho de cana é duro. Açoitados, acorrentados, longe da terra natal, separados de suas famílias, os negros ainda assim jogam capoeira e cultuam seus orixás. Nesse mesmo dia, houve duas fugas na fazenda: Zé Preto tentou sair por trás das amendoeiras de baixo. Almeida, o capitão-do-mato, não teve muita dificuldade: o negro não tinha mais forças, fugiu por desespero. As chibatadas que levou ali mesmo, no mato, foram suficientes para encerrar seu sofrimento e levá-lo para a outra vida. Gangá não teve a mesma sorte: foi para o tronco, e deve ficar lá por dias. Para todo mundo saber o que acontece com escravo fujão.

Num lugar não muito distante dali, cerca de 300 anos depois, a situação não mudou muito. Para os moradores do Quilombo Rio dos Macacos, foi como se a escravidão tivesse acabado e depois voltado. Alguns ainda possuem fotos de seus bisavós vestidos com trapos trabalhando na fazenda. Os mais idosos se lembram do jongo, da capoeira e do samba-de-roda na comunidade. Da época em que eram felizes, na sua roça, com seu pescado, sua dança e sua religião. Há cerca de 30 anos, voltaram a ser cativos.

Nos anos 60, a Marinha de Guerra do Brasil começou a construção da base naval de Aratu, nas terras das antigas fazendas Ponta da Areia, Pombal e Boca do Rio, nas proximidades de Simões Filho, subúrbio de Salvador (BA). Chegando ao local, encontraram algumas comunidades remanescentes de quilombos, dentre elas, o Rio dos Macacos. No início, lembram os moradores, a convivência era tranquila: “Trabalhamos na construção das casas da vila, fazíamos os partos aqui mesmo”.

Aos poucos, a cerca começou a apertar. A comunidade foi sendo pouco a pouco espremida pela vila, proibida de plantar, até que o direito fundamental de ir e vir lhes foi negado: o quilombo foi cercado com arame, e a única entrada hoje é pela portaria da vila. Lá, guardas possuem fotos dos moradores, e decidem ao bel-prazer quem pode e quem não pode passar.

Moradores de Rio dos Macacos durante assembleia, realizada no quilombo

Ao final do ato realizado na última quarta-feira (15/02), no Pelourinho, Rosimeire dos Santos Silva, uma das lideranças,terminou a noite sem saber se poderia voltar para casa. “Agradeço a todos pela presença, mas preciso ir. Já são onze horas, e acho que não vão me deixar entrar. Mas a gente dá um jeito, dorme em qualquer canto.”

A lista de violações é enorme. As mais chocantes dão conta das ameaças a crianças e idosos. “Quando eu tinha 8 anos, fui buscar água no riacho com minha irmã mais nova, de 2 anos. Quando olhamos para o lado, tinham 5 soldados armados dizendo que não podíamos pegar água ali. E descarregaram a metralhadora no balde”, lembra Rosimeire. E ainda misturando escravidão e ditadura, ameaçaram: “Vamos te colocar no pau de arara!”

A situação na comunidade, hoje, é caótica. Proibidos de plantar e pescar, moradores passam fome e relatam ainda a invasão de suas casas e roubo de comida. “Eles entram nas nossas casas e furam os sacos de comida”. Casas, aliás, que hoje chegam a abrigar cinco famílias sob o mesmo teto. Várias moradias foram destruídas, e a Marinha não permite novas construções.

A tentativa de despejar o Quilombo Rio dos Macacos já vem se arrastando há anos. Quando receberam a primeira ordem de despejo, quatro idosos faleceram. “Nós vivemos estressados. Ninguém dorme, nós só cochilamos, com medo de acontecer alguma coisa.”

Diferente da maioria dos casos de disputa de terras no Brasil, o conflito neste caso se trata de terras da União. A comunidade foi reconhecida como quilombola pela Fundação Cultural Palmares e o território ocupado já foi demarcado e identificado pelo Incra. No entanto, a Advocacia Geral da União, em atendimento aos interesses da Marinha de Guerra do Brasil, ingressou com uma ação de reintegração de posse, que implica no despejo da comunidade. Uma das alegações é de que o laudo antropológico que fundamenta o reconhecimento da comunidade como quilombola seria apenas uma “farra antropológica”. A esperança agora é de que o Incra e a Fundação Cultural Palmares, duas autarquias federais, se manifestem em defesa da comunidade, mas ambos os órgãos se negam a seguir em frente. Uma ordem da presidenta Dilma já bastaria para a suspensão do processo. Dilma, aliás, passou o ano novo na base, separada apenas por um muro do Rio dos Macacos.

Quilombolas reivindicam atuacao dos governantes contra o despejo da comunidade

 
“Nós não queremos ajuda para sair. Queremos ficar. E só saímos daqui dentro do caixão.” É com esse espírito que a comunidade espera a próxima data de remoção: 4 de março. Entidades do movimento negro estão se mobilizando para a realização de vários atos em Salvador. Uma vigília também está programada a partir do dia 2 de março, em frente à base.

Agora, mais do que nunca, somos todos mãe África, somos todos negros, somos todos Quilombo Rio dos Macacos.


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