Aller au contenu
Show basket Hide basket
Plein écran
Dsc 0082

Blog

January 12, 2009 22:00 , par Inconnu - | 1 person following this article.

Estágio no Sítio do Futuro em francês – Escola de Sustentabilidade Integral - maio 2018

June 14, 2018 19:56, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

 Nós na fita

Por Muriel Brossard e Débora Nunes

Durante a greve dos caminhoneiros, uma experiência diferente foi vivida por um grupo de mulheres francófonas de idade madura que, por cinco dias, estiveram no Sítio do Futuro, sede de campo da Escola de Sustentabilidade Integral. Afastadas do estresse e das dificuldades vivenciadas pela maioria dos brasileiros e propositadamente desconectadas da civilização dominante,  esse grupo viveu dias de verdadeiras paz, harmonia e alegria, mergulhadas na natureza esplêndida do circuito norte da Chapada Diamantina. Sobre o fato de que nesse momento o Brasil vivia um desabastecimento que nos fazia pensar em como poderá ser uma situação de pré-colapso ambiental, por exemplo, Liliane Mariano escrevia:

“Ter vindo o Sítio do Futuro nesse exato momento só confirma a necessidade de redescobrir o mundo a partir de novos paradigmas. Esse Sítio apresenta um caminho para o futuro (...) do nosso planeta nos mais diversos aspectos, a exemplo do material, cultural, espiritual.”

O espaço ainda está sendo arrumado, mas já oferece um conforto simples e suficiente para pessoas que estão virando as costas para consumismo. A rainha do lugar é a Natureza, com uma profusão de flores, árvores majestosas, riachos impetuosos e caminhos (enlameados) para passear sem ver carro nenhum.  Diferente de outras áreas rurais, são os cultivos em permacultura, os locais de reflorestamento e o jardim de PANCS (plantas alimentícias não convencionais), que mostram porque o Sítio é “do futuro”. Muriel Brossard, outra participante, testemunha:

“Os dias começavam cedo e progrediam com atividades variadas. Yoga e meditação, passeios, oficinas de arte reciclada, jardinagem, preparação das refeições com produtos da horta... As atividades da Escola visavam que o grupo aprimorasse o cuidado que se precisa ter uns com os outros, com o ambiente ao redor e consigo mesmo, para trilhar rumo a um estilo de vida mais sustentável. Atenção, sensibilidade e silêncio foram favorecidos pelo ambiente e pelo coletivo”.

 Conversas muito enriquecedoras entre as participantes  sobre suas vidas, sobre as relações interpessoais e sobre a sociedade em que se vive, foram acompanhadas de explicações sobre os novos paradigmas, e os modos de pensar (e atuar) no mundo. Laurence Allou expressou assim como viu a experiência:

 "Um estágio na Escola de Sustentabilidade Integral é tão surpreendente quanto deslumbrante! Surpreendente para mim porque aprendi muitas coisas e conceitos que me ajudarão a saber como defender a causa ecológica e a necessidade de fazer a Transição. Deslumbrante pela qualidade do lugar, a beleza da natureza, o calor dos participantes ".

As partilhas sobre experiências e interrogações pessoais deram oportunidade de refletir e fazer introspecções sobre a filosofia de vida e o desenvolvimento pessoal de cada uma. Foi salientada a importância de estratégias pessoais de desligar-se, como a busca de colocar-se em “modo avião” ou de experimentar “férias existenciais”, quando for necessário, para encontrar-se na vida. Rituais em áreas sossegadas permitiram que a cabeça se acalmasse e pudéssemos falar com nossa alma.

Podemos dizer que um estágio no Sítio do Futuro são como férias existenciais de alta qualidade, que fortalecem o corpo e a alma. No Sítio, ficamos bem perto dos elementos naturais. Tocamos e cheiramos a terra e a lama, sentimos o ar e o sopro da tempestade e as águas do céu nos abençoaram abundantemente, mas o sol cálido iluminou nosso caminho. Dessa vez faltou uma boa fogueira, mas quando a chuva passar e a lenha secar, faremos, pois todo mundo quer voltar...

  Suca e laurence preparando a mandala de flores do sítio               C481eb36 3d61 47d5 af02 b7b81f7d1367

 

 

Almoço no sítio

 

Agroforêt, souce de beauté et de santé



As entranhas do Brasil

June 3, 2018 10:37, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

 

Greve dos caminhoneiros 20152  

Estamos engolindo sapos há anos, e em algum momento iríamos ter prisão de ventre ou uma diarreia monumental. A greve dos caminhoneiros foi esse momento em que nossas veias pátrias, as estradas, colapsaram, deixando de irrigar nosso organismo já adoentado. Tudo de ruim veio à tona numa energia nauseabunda em que até marchas pela intervenção militar puderam ser vistas. Nossas entranhas ficaram à mostra, revelando suas sombras.

Os brasileiros e brasileiras estão fartos, tendo que aguentar o massacre diário de notícias ruins, da corrupção à violência, que dão ânsias de vômito. Temos que olhar pra cara de um presidente odioso, de ministros que dão náuseas, e de ver, ler e escutar uma mídia que dá raiva de tão parcial e ultrapassada. Poderíamos ter vivido uma greve geral dos lixeiros, ou um desabastecimento geral de água, ou qualquer coisa que nos fizesse encarar a energia parada e doentia que atormenta o Brasil. Foram os caminhoneiros que nos mostraram o quão mal estamos, mas que nos mostraram também sinais de esperança. 

A mídia ficou atarantada. Diante da maior desestabilização dos fluxos internos da história do Brasil, os pomposos analistas ficaram perdidos. Com seus esquemas de interpretação atrasados, estão desarmados para ver o mundo em tempos de ação em rede e fim dos esquemas centralizados de liderança, de intensa e instantânea conexão comunicativa e intersubjetiva. Sem saber tomar o pulso do país, os analistas atiravam às cegas, falavam de manipulação sem saber de quem exatamente, até que só restaram aqueles poucos ignorantes históricos, manifestantes saudosos da ditadura. Quem bom, nessa hora quase todo o espectro político e toda a mídia defendeu a democracia, o que é um avanço nesse país partido. 

Pra ir no ponto, no momento de incertezas em que vive o Brasil, nem mesmo os caminhoneiros tinham qualquer entendimento global ou controle da greve iniciada por eles. Por essa greve ser tido a capacidade de entrar na frequência energética de um país que está paralisado esperando uma eleição completamente confusa e indefinida, ela espelha nossas entranhas. Os efeitos que revela são desabastecimento de esperança e caos de interpretações, beirando ao desespero. O país enfim explodiu sua dor, como numa crise de choro ou agressividade que causa estragos mas dificulta que um câncer insidioso desenvolva-se silenciosamente no organismo sofrido. 

É a febre causada pelos sapos engolidos e remoídos, pelo ataque ao processo democrático que construímos com tanto esforço, do país que assistiu a uma calhorda parlamentar tirar da presidência uma mulher honesta e eleita e colocar um energúmeno estúpido e corrupto até a alma. De algum modo a cidadania brasileira percebeu que eram sadios esses doloridos dias em que tudo que é sólido desmanchou no ar, como as certezas cotidianas do botijão de gás no depósito ou das bananas frescas nos supermercados. O apoio à greve dado pela imensa maioria da população brasileira, mesmo protestando contra seus excessos, foi um bom sinal de maturidade.

Ultrapassamos esses fatos tumultuosos com grandes perdas mas com a resiliência adulta de quem se recompõe após um grande tropeço. Esses dias de desabastecimento apontaram novas possibilidades de vida com menos carros, menos poluição, menos consumo e mais solidariedade. Caminhamos para a maturidade cívica e são poucos os que estão buscando salvadores da pátria, de farda ou civis. Nessa hora, o que nos resta de pessoas honestas na velha política fariam um grande favor à nação se pedissem desculpas por seus erros passados. Se os candidatos às próximas eleições se mostrassem humildes e reconhecessem as imensas dificuldades de governar esse país complexo e continental, dispondo-se a governar de modo mais participativo, honrariam essa maturidade que vem crescendo.

 



Are you an Eco-citizen? Questionnaire I, External Ecology

May 16, 2018 17:26, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

 A terra em minhas mãos julho 2016

Are you an Eco citizen?

This questionnaire is a tool that we use in the training process provided by the School of Integrative Ecology.  It refers to your daily practices and behaviors, as well as your vision of the world. It is useful for anyone who wants to assess their level of eco-citizenship practice in their daily life. Ask yourself questions and plan your transition to a more sustainable life!

 

Do you usually sort your waste separately?

  1. Yes, I reduce my waste as much as possible, I completely separate each material (glass, metal, paper and plastic) for recycling and I compost my organic waste;
  2. I separate organic waste from recyclable waste, but perhaps I should pay more attention to it. I compost organic waste myself;
  3. I would like to collaborate in waste recycling programs, but I have not yet organized.

 How do you manage your water consumption?

  1. I know how much water I use (in volume/day); I have reduced my consumption when I take a bath, brush my teeth, use the dishwasher or washing machine and clean, and I don't waste water;
  2. I have already made efforts to reduce my water consumption for personal hygiene, I use my clothes longer, but I know that I can still improve my behavior;
  3. I perceive the importance and symbolism of water, but I have not yet changed my habits.

 How do you manage your use of electrical energy?

  1. I measured my energy consumption in kWh/month. I avoid taking baths too hot and too often. I turn off unused lights or electrical appliances, whether at home or at work. I don't waste energy;
  2. I have already made progress towards a better awareness of my use of electrical energy, but I am still changing my practices;
  3. When I am in contact with people or readings that have to do with sustainability, I feel involved, but when it comes to my daily behavior, I forget.

 What are your consumers habits regarding clothing, shoes and accessories?

  1. I buy new items only to replace those that are no longer usable and I give priority to their repair and makeover;
  2. I sometimes buy to replace, to have more suitable options and to have some new features;
  3. It is important for me to be in harmony with the atmosphere in which I live and I renew my wardrobe to stay fashionable.

 What is your relationship with nature?

  1. When I observe the environment, I normally perceive the presence of insects and birds, if the plants that surround me are thirsty, the evolution of the moon phases, the small daily changes of the seasons, the movements of clouds and winds, etc;
  2. When I am in moments of leisure and vacation, I become aware of the nature that surrounds me;
  3. I am a big fan of nature, but I am not familiar with the relationship with the natural environment.

 How do you connect with your own body?

  1. I practice my body consciousness daily, with meditations or movement practices. I observe what I eat and drink, I regularly look at my urine and stools, I am aware of my interaction with the cold and the hot, I feel what causes certain dysfunctions in my body, etc;
  2. I exercise regularly, try to eat healthy foods and avoid unhealthy foods, but my body consciousness is not continuous over time;
  3. My connection with my body is not developed enough and I have health problems whose origins I do not understand.

With regard to your ecological footprint, how do you compensate for the excessive use of natural resources?

  1. I measure my ecological footprint annually, balance my excess by planting trees and try to train myself to constantly reduce my CO2 emissions;
  2. I have already measured my ecological footprint and taken measures to offset it, but this practice is not yet an integral part of my life;
  3. The idea of measuring my ecological footprint and compensating for it is not yet very clear to me.

 What is your perception of the current climate crisis and how do you see your own future?

  1. I am sufficiently informed, I am aware of the gravity of the situation and I project myself into the future with a resilient and ecological life, already experimenting, when possible, this new lifestyle;
  2. Although I am informed and aware, I do not yet have a personal project for my future that incorporates environmental degradation;
  3. I avoid thinking about it, because I have the feeling that the information available is not yet clear enough, or when I face the scale of the problems I remain frozen.

 How do you perceive your diet?

  1. Feeding myself is the most regular action that connects me to Nature and the world, so I practice it consciously and ritually. I make choices that respect my body and other living things and honor those who produced the food;
  2. I have slowed down my consumption of industrialized foods, I try to eat less contaminated products and avoid meat, drink more water and be aware of my weight;
  3. I know the importance of what I eat for myself and for the rest of the world, but the strength of my habits strongly determines my diet.

 What is your attitude towards buying and using objects in general?

  1. I am aware of the social pressure for consumption and I only buy the things I need. I reduce the amount of items in my possession (donate, recycle or set aside those I don't need), and adopt a simpler lifestyle by taking care of and repairing what's mine, to avoid waste;
  2. I notice that I have more than I need and therefore I buy less and less, I prefer to repair and recycle, I use reusable bags, I avoid packaging, etc;
  3. I know that there are marketing strategies implemented by capitalist society to push us to consumption and I try to fight against them.

 What is your preferred mode of transportation?

  1. Walking is my first choice, when possible. I also use bicycles, motorcycles and public transport. When I use a car, I look for the least polluting energy, I organize carpooling and I always do my shopping nearby;
  2. The car is my main means of transport, but I have changed my habits to travel more locally, avoiding long distances as much as possible;
  3. I am aware that I am not moving in a sustainable way, but I have not yet managed to change my routine.

 How do you organize your habitat in a sustainable way?

  1. I use natural lighting and ventilation, I collect solar energy and rainwater, I have a garden, I compost, I share the use of the house and meals with other people to reduce the environmental impact, etc;
  2. To gradually reduce the environmental impact of my lifestyle in my home, I have implemented measures, such as reducing my water and energy consumption, raising awareness of household chemicals, etc;
  3. I live in conventional housing and have great difficulty establishing a more sustainable lifestyle around me.

 What is your level of social involvement?

  1. I am involved in socio-environmental movements and organizations and I also try to set an example. I help people who ask for advice on their life choices;
  2. I focus on my own example and, when I can, I help others in their life choices;
  3. I am aware of the urgent need for large-scale social change, but the strength of my habits still largely limits my commitment.

 What is your understanding of "deep ecology", or sustainability understood as respect for the sacred of Nature?

  1. I perceive the elements (water, earth, fire and air) as sacred and everything around me as the fruit of Nature's generosity. In practicing meditative silence, I am grateful for the privilege of sharing this abundance;
  2. I have changed my behavior by being more attentive to the web of life in which I am inserted, by understanding the interconnection between the physical and human environment, by having more respect and by seeking a greater awareness of myself;
  3. I don't spend much time realizing Nature's miracle because of my busy lifestyle.

 How do you use your time?

  1. I know my life well and I use my time according to my short, medium and long term priorities in order to realize myself fully as a person and to be useful to the world;
  2. I try to divide my time in a more balanced way than before, to allow a better quality of life, but time seems to escape me ;
  3. I feel that my life is directed by outside forces, without being able to do what I really want every day, month and year.

 How do you use your leisure time and holidays?

  1. I generally enjoy spending my free time in natural spaces, discovering new initiatives and alternative people, and spending my money in the local economy. If possible, I avoid using aircraft that are not environmentally friendly;
  2. I am looking for new cities and natural places to discover, where I can rest and free my mind. When possible, I like to help the local economy and do something to protect the local environment;
  3. I usually like to go to places where everything is well organized, where I can go sightseeing, change of scenery and live comfortably without worrying about everyday life. However, I'm getting a little bored because it's almost always the same thing.

 

Logomarca esi

How to interpret the results of the questionnaire: 

Translate your answer into a metric assessment, add the points and see in which category you are in.   

1o. – 1 point      2o. – 3 points    3o. – 5 points  

 

Up to 30 points: You have shown yourself like a person who seeks sustainability and respect for Nature in your daily actions; 

From 31 to 50 points: You have shown yourself to be someone in search of transformation, who strives for a sustainable life; 

Equal to or greater than 51: You are aware that difficulties of personal transformation are still blocking the change of your habits. Society and the planet need you to accelerate your pace of ecological engagement.

 

SECOND WAY - Seeing the process => How to interpret the results of the questionnaire

(A) ALPHA - I see a certain stability and balance in myself. There is little questioning of my life context (Alienation or harmony?);

(B) BETA - I feel sporadic restlessness and live with questions about my life context (Need for adjustments?);

(G) GAMA - My restlessness is generating discomfort, but my understanding of the need for change is only mental and I carry on doing everything the same;

(D) DELTA - I feel I'm at a moment of crisis and a paradigmatic leap into action, because my understanding already includes my heart;

(NA) NEW ALPHA - I've achieved new stability after transformation. As this deepens, new challenges will probably arise.

 



No princípio eram as Deusas

May 8, 2018 9:46, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

 Venus von willendorfYemanjá negra   Yemanjá branca 

Nos quatro cantos do mundo, as primeiras divindades eram mulheres: Pótnia, Astarte, Ísis, Amaterazu, Nu Gua. Nas antigas sociedades, elas representavam o começo e o fim de tudo. Hoje, ajudam a entender o passado remoto dos homens.

 (Texto publicado na revista Superinteressante, em 31 jul 1988)

As divindades femininas: No princípio, eram as deusas

Maria Inês Zanchetta

Em Çatal Huyuk, na Turquia, a estatueta de uma mulher sentada num trono e ladeada por duas panteras, em cujas cabeças ela coloca as mãos, sugere ao mesmo tempo a imagem da mãe e da senhora da natureza. Suas formas generosas — quadris largos e seios grandes— reforçam ainda mais essa idéia. O nome da figura feminina é Pótnia, a deusa de Çatal Huyuk, a mais antiga cidade que se conhece do período Neolítico, cerca de 10 mil anos atrás. De Pótnia nasceram outras divindades femininas também adoradas pelos homens pré- históricos. Sua estatueta, esculpida por volta de 6500 a.C., foi uma das muitas encontradas na Europa e no Oriente Médio, algumas mais antigas, do Paleolítico Superior (de 50 mil a 10 mil anos atrás).

Essas descobertas levaram historiadores e arqueólogos a sugerir que, bem antes de venerar deuses masculinos, os antepassados do homem teriam adorado as deusas, cujo reinado chegou até a Idade do Bronze, há cerca de 5 mil anos. Não se sabe a rigor o exato significado daquelas estatuetas, até porque pouco ou quase nada se conhece dos costumes dos homens pré-históricos. Mas não resta dúvida de que por um bom tempo as deusas reinaram sozinhas, deixando os poderes masculinos à sombra. Em seu livro Um é o outro, a filósofa e professora francesa Elisabeth Badinter tenta explicar a supremacia feminina a partir do que se supõe teriam sido as relações entre homens e mulheres naquelas épocas distantes.

A idéia é que o homem do Neolítico—ao contrário dos seus antecessores do Paleolítico, que eram caçadores, e dos seus descendentes da Idade do Bronze, guerreiros—dedicava-se à criação de rebanhos e à agricultura. Ou seja, já não era necessário arriscar a vida para sobreviver. Nesses tempos relativamente pacíficos, em que a força bruta não contava tanto como fator de prestígio e as diferenças sociais entre os sexos se estreitavam, é bem possível que deusas—e não deuses—tivessem encarnado as principais virtudes da cultura neolítica.

Entre as centenas de estatuetas encontradas, algumas têm em comum os seios fartos e os quadris volumosos como Pótnia. Talvez a mais famosa seja a Vênus de Willendorf, encontrada às margens do rio Danúbio, na Europa Central. Nela, os seios, as nádegas e o ventre formam uma massa compacta, de onde emergem a cabeça e as pernas — na verdade, pequenos tocos. Igualmente reveladora é a Vênus de Lespugne, descoberta na França: embora mais estilizada, guarda as mesmas características de sua irmã de Willendorf.

Mas, das esculturas pré- históricas encontradas até hoje, são raras as que apresentam os traços femininos tão exagerados — o que dá margem a um debate sobre o que significava afinal a figura feminina (devidamente divinizada) nos primórdios das sociedades humanas. Os historiadores tendem a achar que os primeiros homens a viver em grupos organizados davam mais importância à sexualidade feminina do que à fertilidade, embora não seja nada fácil separar uma coisa da outra. No entanto. a imagem à qual acabaram associadas foi a da maternidade. Há quem não concorde. “Traduzir o culto dos ancestrais às deusas como simples exaltação à fertilidade é simplificar demais”, comenta a historiadora e antropóloga Norma Telles, da PUC de São Paulo, que estuda mitologia praticamente desde criança. “Na realidade, a deusa não é aquela que só gera. Ela é também guerreira, doadora das artes da civilização, criadora do céu, do tecido e da cerâmica, entre muitas outras coisas.”

De fato, em muitos mitos, a deusa aparece como quem dá o grão aos homens, e não apenas no sentido literal de nutrição. Assim, por exemplo, Deméter, venerada pelos gregos como a deusa da colheita, ajudava a cultivar a terra — arar, semear, colher e transformar os grãos em farinha e depois em pão. Deméter ensinava ainda os homens a atrelar as animais e a se organizar. Os gregos explicaram a origem do mundo com outro mito feminino: o da deusa Gaia. Doadora da sabedoria aos homens, ela limitou o Caos—o espaço infinito—e criou um ser igual a ela própria: Urano, o céu estrelado.

Pouco depois, Eros, símbolo do amor universal, fez com que Gaia e Urano se unissem. Desse casamento nasceram muitos filhos e, assim, a Terra foi povoada. A crença de que o Universo foi criado por uma divindade feminina está presente em quase toda parte.

Ísis, a mais antiga deusa do Egito, tinha dado a luz ao Sol. Na Índia, Aditi era a deusa-mãe de tudo que existe no céu. Na Mesopotâmia, Astarte, uma das mais cultuadas deusas do Oriente Médio, era a verdadeira soberana do mundo, que eliminava o velho e gerava o novo. Essa idéia aparece com clareza nas efígies datadas de 2 300 a.C., que mostram Astarte sentada sobre um cadáver. Também para os chineses foi uma deusa—Nu Gua — quem criou a humanidade. Seu culto apareceu durante o período da dinastia Han (202 a.C.-220 d.C.). Representada com cabeça de mulher e corpo de serpente, a venerável Nu Gua encarnava a ordem e a tranqüilidade.

Os chineses dizem que, cavando barro do chão, ela moldou uma figura que, para sua surpresa, ganhou vida e movimento próprio. Entusiasmada, a deusa continuou a moldar figuras, mas a natureza mortal de suas criaturas a obrigava a repetir eternamente o trabalho. Por isso, Nu Gua decidiu que os seres deviam se acasalar para se perpetuarem—daí também ela ser considerada pelos antigos chineses a deusa do casamento. Do outro lado do mundo, na América pré – colombiana, os astecas tinham em Tlauteutli sua deusa da criação. Para eles, o Universo fora feito de seu corpo. Os maias tinham igualmente sua deusa-mãe. Era Ix Chel. De sua união com o deus Itzamná nasceram os outros deuses e os homens.

Com o passar do tempo, deuses e homens passaram a dividir com as deusas o espaço no Panteão, o lugar reservado às divindades. Para Elisabeth Badinter, isso acontece quando a noção de casal vai deitando raízes nas sociedades. Pouco a pouco, da Europa Ocidental ao Oriente, “reconhece-se que é preciso ser dois para procriar e produzir”, escreve ela. Mas o culto à deusa – mãe ainda não é substituído pelo do deus – pai. O casal divino passa a ser venerado em conjunto. As deusas só serão destronadas com o advento das religiões monoteístas, que admitem um só deus, masculino. Com a difusão do cristianismo, as antigas deusas são banidas do imaginário popular.

No Ocidente, algumas acabaram associadas à Virgem Maria, mãe do Deus dos cristãos, outras se transformaram em santas. Mas outras ou foram excluídas da história ou acusadas pelos padres de demônios e prostitutas. As deusas das culturas indo-européias tinham em comum o poder de criar, preservar e destruir—davam a vida e recebiam de volta o que se desfazia. Esse aspecto destrutivo das divindades femininas foi o mais atacado pelos inimigos do politeísmo. A suméria Astarte, por exemplo, não escaparia à ira nem dos profetas bíblicos nem dos primeiros cristãos: para uns e outros, ela era a encarnação do diabo.

No império babilônico, Astarte foi venerada sob o nome de Ishtar, que quer dizer estrela. Nos escritos babilônicos, ela é a luz do mundo, a que abre o ventre, faz justiça, dá a força e perdoa. A Bíblia, porém, a descreveria como uma acabada prostituta. A importância dada ao lado violento, destrutivo, talvez explique por que a deusa hindu Kali Ma aparece no filme de Steven Spielberg, O templo da perdição, como a encarnação da violência. Ela é a sanguinária figura em nome da qual se matam e torturam adultos e se escravizam crianças.

No entanto, para os hindus, mais especialmente para os tantras — adeptos de uma derivação do hinduísmo —, Kali é a deusa da transformação e nesse sentido mais filosófico é que ela é destruidora, da mesma forma como a passagem do tempo destrói. Representada como uma mulher negra com quatro braços e uma serpente na cintura, pode aparecer também com um colar de crânios no colo e uma cabeça em cada mão.

Em seus templos, espalhados por toda a Índia, realizavam-se sacrifícios de búfalos e cabras. “Para os orientais, Kali é a desintegração contida na vida, visão essa que nós ocidentais não temos”, interpreta a antropóloga Norma Telles. Se Kali foi vista como deusa sanguinária, outras divindades compensavam tanta violência. Sarasvati, a deusa dos rios, era para os hindus a inventora de todas as artes da civilização, como o calendário, a Matemática, o alfabeto original e até os Vedas, o texto sagrado do hinduísmo.

Também na América pré-colombiana, sobretudo entre os astecas, o culto às deusas e deuses incluía muitas vezes sacrifícios humanos. A deusa Tlauteutli é um bom exemplo. Um dia, os deuses descobriram que ela ficaria estéril, a menos que fosse alimentada de corações humanos. Na verdade, os astecas tinham uma visão apocalíptica do mundo: se não alimentassem a deusa, a Terra se acabaria.

Mas, à medida que começava a crescer o culto à deusa da maternidade, Tonantzin, diminuía o interesse dos astecas pelos deuses aos quais se faziam sacrifícios sangrentos. Mais tarde, com a chegada dos conquistadores espanhóis, Tonantzin foi identificada com a Virgem Maria. Isso acabaria acontecendo também com a deusa Ísis. Cultuada no Egito e no mundo greco – romano, ela representava a energia transformadora. Casada com o deus Osíris, morto pelo próprio irmão, Ísis não sossegou enquanto não lhe restituiu a vida. A lenda conta que as enchentes do Nilo eram causadas pelas lágrimas da deusa que pranteava a morte do amado. Por isso, as festas em sua homenagem coincidiam sempre com a época das cheias. É evidente que, ao festejá-la, os egípcios comemoravam a generosa fertilidade do rio Nilo. Nos primeiros séculos cristãos, Ísis passou a ser identificada com Maria.

Já a deusa Brighid, cultuada pelos celtas, ancestrais dos irlandeses, foi transformada pelo cristianismo em Santa Brigida. A veneração daquele povo por Brighid era tanta que ela era chamada simplesmente “a deusa”. Dona das palavras e da poesia, era também a padroeira da cura, do artesanato e do conhecimento. As festas em sua homenagem se davam no dia 1º de fevereiro, antecipando a chegada da primavera. Na história cristã, a santa nasceu no pôr-do-sol, nem dentro nem fora de uma casa, e foi alimentada por uma vaca branca com manchas vermelhas. Na tradição irlandesa, a vaca era considerada sobrenatural.

Antes mesmo da chegada das religiões monoteístas, os mitos dizem que o convívio entre deuses e deusas começou a se tornar difícil e a igualdade dos poderes divinos começava a ficar abalada. Assim, por exemplo, Amaterazu, a deusa japonesa do Sol, de quem descendiam os imperadores, não se dava muito bem com o deus da tempestade. Conta a lenda que certo dia ele foi visitar os domínios da deusa e acabou por destruir seus campos de arroz. Furiosa, Amaterazu resolveu vingar-se trancando-se numa caverna — o que deixou o mundo às escuras. Depois de um tempo, como ela não saísse da caverna, uma multidão de deuses e deuses menores decidiu armar uma estratégia para convencê-la a mudar de idéia. Assim, colocaram diante da caverna um espelho que refletia a imagem do deus da tempestade, como se ele estivesse enforcado numa árvore, e começaram a dançar.

Atraída pela música, a deusa decidiu sair para ver o que acontecia. Ao deparar com a imagem no espelho ficou feliz e voltou ao mundo. Com isso, tudo se normalizou e os dias continuaram a suceder às noites. Outro exemplo dos conflitos entre as divindades é o caso da deusa grega Deméter e seu marido Hades, o deus do mundo dos mortos. Eles começaram a brigar pela guarda da filha Perséfone e a questão só foi resolvida com a mediação de Zeus, o deus supremo do Olimpo. Salomonicamente, ele determinou que a menina ficasse com cada um seis meses por ano. Das deusas veneradas no mundo antigo, não houve tantas nem tão famosas como as da mitologia greco – romana. Afrodite (Vênus, em Roma) talvez fosse a mais popular de todas, por encarnar o amor e as formas belas da natureza.

Já Ártemis (Diana) era a caçadora solitária, senhora dos bosques e dos animais. Seus lugares preferidos eram sempre aqueles onde o homem ainda não tinha chegado. Atena (Minerva) protegia a cidade, as casas e as famílias. O predomínio que as divindades femininas exerceram ao longo do tempo levou alguns pesquisadores do século XIX a supor que na pré-história as mulheres detiveram alguma forma de autoridade política. Não há registros arqueológicos que confirmem isso — hoje os especialistas não admitem que tenha existido alguma sociedade cujo controle estivesse com as mulheres. Mas também é certo que nos tempos pré-históricos, quando era outra a divisão social do trabalho, as mulheres tinham um papel preponderante na luta pela sobrevivência do grupo. É impossível saber com exatidão quando e por que deixou de ser assim. De uma coisa, porém, não se duvida: foram os homens quem primeiro traçaram a mitologia das deusas.

A primeira mulher de Adão

Segundo uma antiga lenda, a primeira companheira de Adão não foi Eva, mas uma deusa chamada Lilith—”monstro da noite”, para os antigos hebreus—que brigou com Deus e por isso foi transformada em demônio. Na verdade, o castigo maior que Ihe impuseram os sacerdotes foi excluí-la dos relatos bíblicos da criação do mundo. Lilith, versão hebraica de uma divindade babilônica, sinônimo de “face escura da Lua”, não se dava bem com Adão. Certo dia, cansada de desavenças, Lilith abandonou o marido e foi para o mar Vermelho, onde passou a viver entre demônios, com quem teve vários filhos.

Inconformado, Adão foi pedir a interferência de Deus. Este determinou então que Lilith voltasse imediatamente para casa. Mas ela recusou-se e foi condenada a devorar todos os seus filhos. Não bastasse, passou a ser considerada um demônio igual a outras deuses do mundo das trevas. Por tudo isso, no folclore judaico, cada vez que morria uma criança, dizia-se que Lilith a tinha levado. A lenda de Lilith perdurou entre os judeus pelo menos até o século VII.

 

Para saber mais:

Nas montanhas dos deuses

(SUPER número 10, ano 3)

     

 



Populismo? razão e emoção na política

May 3, 2018 18:57, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

Razão e emoção

Na acepção clássica da política, o líder populista é aquele que procura estabelecer um vínculo emocional com o povo e que têm atitudes demagógicas de dar-lhes “migalhas” para mantê-lo sob seu domínio político. O populismo sempre foi criticado, à direita e à esquerda. A direita, claro, com seu vínculo histórico com as elites, se opõe aos líderes de esquerda e suas políticas sociais. Classificam de “populista” os líderes que têm o dom de atrair a atenção e o carinho do povo com um modo mais popular de se comunicar e com políticas que lhes favorece. De modo geral, essas políticas aumentam o gasto público – horror dos direitistas – que só o aceitam se esse contribui para o enriquecimento ainda maior dos já ricos.

A esquerda, por sua vez, sempre combateu líderes de direita que desenvolveram uma relação visceral com o povo prometendo soluções mágicas para problemas complexos. Geralmente se tratam de questões vinculadas à segurança do cotidiano (desemprego, violência urbana, supostas ameaças externa ao país, etc.). Interessa aos líderes de direita ditos populistas manter um estado permanente de ameaça em que eles se apresentam como “salvadores”. A história é cheia de casos assim. Para a esquerda, a ideia de emancipação popular, que lhe é cara, contradiz frontalmente a proposta de algum “salvador”: É o povo unido que nunca será vencido. Mesmo líderes “esquerdistas”, que se destacam na atuação política como “salvadores” são alvo de desconfiança de parte da esquerda, pelos mesmos motivos.

De modo geral, o populismo foi amplamente combatido por desenvolver-se fora das instituições, sejam elas partidos (os líderes tornam-se maiores que esses), ou as instituições democráticas (quando o líder toma o poder pela força). Em tempos de desmoralização generalizada dos partidos no mundo inteiro, com as raras exceções de praxe (como o Podemos da Espanha, a coalizão de esquerda que governa hoje Portugal, ou o AAP Party, na India, entre outros), resta defender as instituições democráticas. Os partidos precisam se reinventar para que sejam tão respeitados quanto alguns de seus líderes. Essa reinvenção, focada na coerência de suas práticas com os conteúdos de seus programas, fará muito bem à democracia.

O outro modo de ver o “populismo” que se pretende destacar nesse texto é o caráter desmoralizante que essa expressão confere à relação emocional de um povo com um/a líder, como se essa fosse por si só recriminável. Na lógica cartesiana e patriarcal, o afeto é algo menor. Para o cartesianismo, que domina a ciência e o pensamento “erudito”, apenas o que é objetivo em termos de ser oriundo de um cálculo racional tem valor. As razões do coração só são válidas “para pessoas ignorantes, que não sabem argumentar racionalmente”. Para o patriarcalismo, o afeto é algo “afeminado” e o jogo político é sempre bruto, uma disputa pelo poder onde a desconfiança e disputa devem imperar. As lutas intestinas no seio da esquerda estão relacionadas a essa visão de mundo patriarcal e da ânsia de dominação que lhe é particular, ignorando a necessidade óbvia de parceria.

Nos dois casos, tanto para o cartesianismo intelectual quando para o patriarcalismo relacional, o afeto na política é desaconselhado. Felizmente homens e mulheres de coletivos cidadãos de novo tipo estão valorizando cada vez mais os laços de amizade e confiança na construção da política e superando os preconceitos cartesianos e patriarcais. A arte de associar-se é tão importante quanto o combate ao inimigo político; praticar o que se prega é tão importante quanto argumentar magistralmente a necessidade de novas práticas. A palavra e o cérebro são mais competentes e sábios se associados às práticas e ao coração e assim seguem fazendo aqueles que estão renovando a política nos meandros ainda minoritários da ação cidadã.

Voltando à política de aqui e agora e lembrando da comoção de milhões de brasileiros e brasileiras com as injustiças cometidas contra Dilma Rousseff em seu impeachment e com Lula da Silva em sua apressada prisão, vale considerar as razões do coração na política e mesmo trabalhar mais “objetivamente” em torno delas. A inteligência do coração pode discernir muito melhor que os dados conjunturais valorizados em um momento político: o constante martelar midiático contra Lula e Dilma mostram isso, pois não convenceram tanto como esperavam seus autores. Um/a líder amado por promover a dignidade e não por incitar o medo e o desejo de proteção é um perigo para quem? Quando o afeto vem de uma experiência prazerosa de se sentir entendido e respeitado, de perceber a coerência de um indivíduo nas suas palavras e atos de forma majoritária ao longo de sua história, isso enobrece a política, ou não?.

Discernir entre as emoções positivas (a admiração, a compaixão, a cumplicidade, por exemplo) e as emoções negativas (o medo, o ódio, a vingança) faz toda diferença. A inteligência afetiva que vem do coração percebe para além do racional imediato e do visível e isso é comprovado por inúmeras pesquisas. Ela se revela cada vez mais sábia aos poucos e o Brasil irá valorizar Dilma e Lula ainda mais que hoje, quando o tempo tomar sua estatura e os ódios, vinganças e medos se abrandarem. A esquerda, se quer se renovar, precisa atentar para os valores do patriarcado que a cegam. Precisa observar os limites da objetividade cartesiana. A valorização dos temas “femininos” do cuidado, do afeto, do diálogo e da parceria poderão ser importantes impulsionadores da ação política da esquerda. No Brasil desse momento, ela poderá ser definidora do futuro, se a esquerda começar por aplicar esses princípios a si mesma.

 

Este artigo foi também publicado no jornal online Outras Palavras

https://outraspalavras.net/sem-categoria/populismo-afetos/



Ecovilas na Bahia: Piracanga, Terra Mirim e Campina

April 25, 2018 9:30, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

Terra mirim para artigo

O artigo abaixo foi apresentado no Seminário URBa17, no Eixo Temático dois: produção contemporânea do espaço e a (des)construção do comum. Essa versão contém modificações.

 

PANORAMA DE ALGUMAS ECOVILAS BAIANAS SEGUNDO PRINCÍPIOS DE SUSTENTABILIDADE

 

Débora Nunes - Professora do Curso de Urbanismo da UNEB. Pós Doutora em História das Cidades e Cidades do Futuro pela Bangalore University

Karla Andrade - Professora adjunta do Curso de Arquitetura e Urbanismo da |Rui Barbosa. Mestre em Arquitetura e Urbanismo UFBA. 

 

RESUMO

As ecovilas são comunidades intencionais e/ou sustentáveis que utilizam processos participativos locais a fim de regenerar ambientes sociais e naturais, que adotam soluções de baixo impacto ecológico, estabelecem uma economia sustentável, buscam o aperfeiçoamento e a harmonia das relações humanas. O objetivo deste artigo é realizar um breve panorama mundial e análise comparativa das ecovilas baianas: Fundação Terra Mirim (FTM), Ecovila Piracanga e Campina, quanto à aplicação dos princípios de sustentabilidade: local, proteção ecológica; interação social, cultural e saúde; desenvolvimento político e econômico; transporte sustentável; gestão integrada da água; energias alternativas; construções sustentáveis; política dos 3R’s. Como resultados, identificamos alguns pontos comuns nas ecovilas estudadas: desenvolveram formas horizontais de liderança e gestão com abordagem mais ecológica, solidária e participativa; ajudaram a preservar as áreas de grande biodiversidade; praticam agrofloresta e permacultura; adotam energia solar. Diferenciam-se nas atividades econômicas, socioculturais, construtivas, de gestão da água, energia e etc. Conclui-se que as experiências das ecovilas poderão ser usadas como novos insumos e diretrizes para comunidades com características semelhantes, inspirando novos conceitos para profissionais de arquitetura e urbanismo que buscam real aplicação de princípios de sustentabilidade. Recomenda-se, ainda, a ampliação das pesquisas sobre esse farto material de inovação.

 PALAVRAS-CHAVE

Ecovilas; permacultura; sustentabilidade.

 


PANORAMA DE ALGUMAS ECOVILAS BAIANAS SEGUNDO PRINCÍPIOS DE SUSTENTABILIDADE

O objetivo deste artigo é realizar um breve panorama e análise comparativa de algumas ecovilas brasileiras do Estado da Bahia: Fundação Terra Mirim (FTM), Ecovila Piracanga e Campina, quanto à aplicação de princípios de sustentabilidade desenvolvidos em metodologia específica aqui descrita. As ecovilas são comunidades autônomas formadas por pessoas que escolhem outra forma de vida, oposta ao cotidiano vivido nos grandes centros urbanos, de competitividade, individualismo, consumismo, busca pelo poder e materialismo. São, portanto, comunidades intencionais que utilizam processos participativos locais a fim de regenerar ambientes sociais e naturais. Essas comunidades adotam um estilo de vida que busca integrar a ecologia interna com a externa, ou seja, buscando, ao mesmo tempo, a transformação pessoal e a social, visando uma vivência que rompe com a lógica imposta na sociedade, considerando práticas de horizontalidade, de igualdade e de respeito a cada pessoa. (BRAUN, 2008)

Muitas pessoas optam por morar em ecovilas por sentirem necessidade de contribuir para minimizar os danos que a vida contemporânea causa ao planeta, por se identificarem com o estilo de vida e os princípios éticos adotados nessas comunidades: a relação com a Natureza, a relação colaborativa entre os moradores, o modelo político autogerido e, sobretudo, o sentimento de coletividade e pertencimento. Para tal, utilizam soluções criativas de baixo impacto ecológico, buscam estabelecer uma economia mais sustentável e solidária, chegando mesmo ao uso de moedas alternativas e procuram aperfeiçoar as relações humanas por meio do autoconhecimento e do crescimento espiritual. (CUNHA, 2012)

O modo de vida nas ecovilas varia muito de acordo com sua história, contexto, características ecológicas regionais, de suas origens em termos de motivações de fundação e perfil de seus integrantes, etc. Todas, porém, buscam propiciar um cotidiano coerente com seus objetivos, produzindo alimentos orgânicos, usando medicinas alternativas, fazendo restauração ecológica, e adotando, quando possível, técnicas construtivas de baixo impacto, utilizando materiais e recursos locais, fazendo captação de água de chuva e reuso, uso de energias renováveis, dentre outras técnicas a fim de atingir a sustentabilidade em todos os âmbitos. (CUNHA, 2012)

 

Breve panorama mundial e princípios das ecovilas

Segundo recente publicação da Global Ecovillage Network (GEN, 2015), estima-se que existam hoje cerca de 15.000 no mundo, sendo aproximadamente 600 cadastradas na entidade. Esse número vem tendo um crescimento expressivo a partir da metade do século XX. A implantação de comunidades sustentáveis vem sendo uma alternativa à perspectiva de catástrofe ecológica largamente comprovada pelos dados acerca das mudanças climáticas.  Desde o final da década de 1980, os seres humanos já ultrapassaram a capacidade de carregamento ecológico do planeta (GFN,2016), ou seja, condições para que a humanidade obtenha recursos naturais para a vida e que permitam a absorção de seus resíduos e emissões de gases. Desde 2007, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) vem emitindo relatórios que analisam os efeitos do aumento das emissões dos gases de efeito estufa desde a revolução industrial, verificando as mudanças nas médias de temperaturas e modelando as perspectivas de impacto ambiental.

O IPCC e a GFN são importantes instituições, entre muitas outras, que atestam a gravidade da situação ambiental. Segundo a GFN (2016), por exemplo, a manutenção do modo de vida atual da humanidade implicaria hoje na necessidade de 1,6 planetas para dar conta dos recursos necessários para a vida humana na Terra. Esse quadro vem causando grande desequilíbrio ecológico e influenciando diretamente na extinção de espécies, em catástrofes naturais como furações, secas extremas, enchentes, etc, assim como infestações de insetos causadores de doenças, problemas cardiorrespiratórios e infecções, entre muitos outros efeitos. (KEELER; BURKE, 2010)

Por tudo isso, a opção pelas ecovilas vem se expandindo cada vez mais chegando a ser reconhecido pela ONU como modelo de excelência de vida sustentável. Os exemplos mais destacados de ecovilas em nível internacional são Findhorn (Escócia) e Auroville (India), sendo também as mais antigas, sendo a primeira fundada em 1962 e a segunda em 1968. Elas são as maiores referências no movimento das ecovilas, possuindo um nível maior de desenvolvimento em relação à sustentabilidade, ou seja, são aquelas que possuem maior experiência e consistência interna. Como no caso das ecovilas brasileiras que serão descritas a seguir, as particularidades de cada uma revelam como o lugar, o contexto e a cultura influenciam definitivamente no resultado final das experiências.

Os princípios de organização, gestão e funcionamento das ecovilas em geral e também das ecovilas brasileiras estudadas, aproximam-se da lógica da Permacultura (proposta por David Holmgren) a da ideia de uma Sustentabilidade Ecológica (proposta por Fritjof Capra). É fato que nem sempre esses princípios, as obras, ou os autores, são conhecidos pelos membros das ecovilas, porém, esses conceitos permitem compreender a unidade na imensa diversidade das práticas concretas. Fritjof Capra (2005) em seu trabalho para difundir novos paradigmas, trouxe um conjunto de seis conceitos que se inspiram no próprio modo como a Natureza sustenta incansavelmente a “Teia da Vida”: os ciclos, as redes, as parcerias, a diversidade e a resiliência, sustentadas pela energia solar. Já a Permacultura, conceito criado por Bill Mollison e David Holmgren na Austrália, nos anos 1970, tem princípios orientadores sobre a posse da terra e comunidade; o manejo da terra e a relação com a natureza; o espaço construído; uso das ferramentas e da tecnologia; a cultura e a educação; a saúde e o bem estar espiritual; assim como sobre a economia e finanças. (HOLMGREIN, 2013)

 

Princípios de Sustentabilidade para comunidades rurais

Fundamentando-se nos princípios da Permacultura (HOLMGREIN, 2013) e na contribuição de ANDRADE (2005) sobre os Princípios de Sustentabilidade para Reabilitação de Assentamentos Urbanos, chegou-se aos princípios adotados a seguir para análise das ecovilas. ANDRADE (2005) fundamenta-se na visão ecossistêmica das cidades, como sistemas interconectados e interdependentes, totalmente dependentes dos sistemas de suporte da vida, dos ecossistemas naturais. Chegando à definição dos princípios de sustentabilidade para assentamentos urbanos: proteção ecológica e biodiversidade, adensamento urbano, revitalização urbana, implantação de centros de bairro, desenvolvimento da economia local, transporte sustentável, moradias economicamente viáveis, comunidades com sentido de vizinhança, tratamento de esgoto alternativo, drenagem natural, energias alternativas, políticas baseadas nos 3R’s (reduzir, reusar, reciclar).

A síntese dos dois autores que partem da visão sistêmica e ecológica permite integrar aspectos sociais e políticos mais presentes em HOLMGREIN (2013), e urbanísticos e construtivos mais presentes em ANDRADE (2005). Esta integração deu origem aos indicadores e critérios a seguir: Proteção ecológica e biodiversidade; Desenvolvimento político e econômico; interação social, cultural e saúde; Mobilidade sustentável; Energias alternativas; Gestão integrada da água; Política dos 3R’s; Construções sustentáveis. Para cada um desses itens foram desenvolvidos subitens que se observados identificam favoravelmente a ecovila em relação à sustentabilidade. O Quadro 1 detalha esses itens e subitens.

Quadro 1: Princípios de Sustentabilidade para Avaliação das Ecovilas.

1-       Proteção ecológica e biodiversidade

Localização

Preservação dos ecossistemas existentes

Preservação da paisagem rural

Relação com o território do entorno

Ocupação do solo

5-       Energias alternativas

Integração de energias renováveis (energia solar, eólica, hidráulica)

2-       Desenvolvimento político e econômico

Estratégias de geração de renda

Estatuto da comunidade

Acordos de convivência

Cultura econômica

6-       Gestão integrada da água

Reaproveitamento de águas de chuva

Sistemas de tratamentos de águas residuais e negras e amarelas

Drenagem natural

Tratamento de esgoto alternativo

3-       Interação social, cultural e saúde

Identidade cultural

Participação

Liderança

Educação

Espiritualidade

Cuidados com a saúde

Relação com o alimento

7-       Políticas baseadas nos 3R’s (Reduzir, Reusar, Reciclar)

Redução do consumo

Coleta seletiva

Reutilização e/ou reciclagem dos resíduos

4-       Mobilidade/ transporte sustentável

Facilidade de acesso

Meios de transporte

Caminhos para pedestres e ciclistas

Traçado das ruas

8-       Construções sustentáveis

Materiais e tecnologias construtivas

Estratégias bioclimáticas

Bioconstrução

Sistema de mutirão/ autoconstrução/ contratação de mão de obra

Fonte: Quadro baseado em ANDRADE (2005) e em HOLMGREIN (2013).

 

Breve descrição de Ecovilas Brasileiras e seus princípios de sustentabilidade

Os exemplos nacionais aqui apresentados resumem diversos aspectos de sustentabilidade encontrados em outras ecovilas brasileiras. De modo geral cada experiência consegue desenvolver melhor a sustentabilidade nas dimensões mais ligadas à sua própria filosofia e propósito enquanto comunidade. As características comuns encontradas são: uso de energias renováveis; processos coletivos de decisão; renda advinda de cursos, hospedagens e venda de produtos; número reduzido de moradores vivendo em grande integração; escolha de áreas rurais com recursos naturais abundantes para potencializar uma vida autossuficiente; respeito à escolha espiritual de cada membro e estilo de vida cooperativo e coletivo. Atuam localmente em projetos diversos, além de estarem em um processo cada vez mais crescente de interação e conexão com outras ecovilas nacionais e internacionais, criando grupos e projetos comuns além de favorecer intercâmbios entre os próprios moradores.

Com relação às ecovilas brasileiras, os exemplos raramente se repetem em trabalhos acadêmicos e publicações sobre o tema, o que evidencia que ainda não é fácil identificar ecovilas com posição de referência no cenário brasileiro, como ocorre com as ecovilas internacionais. Muitas experiências se encontram em processo de formação, experimentação, e poucas em consolidação. Mesmo as mais antigas possuem metade ou ainda menos tempo de existência considerando as experiências internacionais. De todo modo, a Fundação Terra Mirim, a Comunidade Campina e a Ecovila Piracanga, situadas no estado da Bahia, foram escolhidas por se destacarem por seu tempo de existência, atuação e consolidação. Será realizada a seguir uma descrição geral de cada ecovila em termos dos aspectos históricos e ecológicos, e destacados os aspectos relativos ao desenvolvimento político e econômico; interação social, cultural e saúde; mobilidade; energias alternativas; gestão integrada de água; políticas dos 3R’s e construções sustentáveis, conforme quadro apresentado anteriormente.

 

Ecovila Piracanga

A ecovila Piracanga, fundada em 2002, é fruto do sonho de Angelina Ataíde (Portuguesa) de criar uma comunidade para as pessoas viverem de acordo com os princípios espirituais na vida cotidiana, compartilhando tudo em união, na constante busca interior. Localiza-se na região leste da Bahia, na Península de Maraú no entorno de uma APA, na foz do rio Piracanga, beneficiada pelo encontro do rio com o mar tendo grande beleza natural, com coqueirais por toda a costa. Quando ocuparam o terreno, grande parte estava desmatada, ao longo dos anos desenvolveram a preservação e a recuperação da Mata Atlântica através de práticas de agrofloresta e de permacultura. Na ocupação do terreno destinaram 80% para área de preservação ambiental e 20% para ocupação com lotes.

Além das casas dos moradores, existe o Centro Inquiri, que compreende ao conjunto de edificações às margens do rio Piracanga, composto por recepção, administração, restaurante, lanchonete (espaço Açaí), 4 lojas, espaços para terapias, escola infantil, casa de artes, casa dos aromas, marcenaria, viveiro de mudas, espaço de permacultura, 4 cabanas para vivências além de alojamentos para 90 pessoas. No Centro os moradores realizam atividades comunitárias, espirituais, educacionais e de hospedagem. Além disso, são oferecidos cursos, retiros e programas de imersão, fonte da geração de recursos econômicos para a comunidade.

Os moradores criaram algumas regras para uso e ocupação do solo: a edificação pode ocupar o terreno em até 10%; as casas podem ter até dois pavimentos; a casa térrea com área até 70m² pode utilizar cobertura cerâmica, a partir de dois pavimentos deverá adotar a cobertura de piaçava; não pode ter cercas, só cerca viva; não pode ter piscina; o ponto de fogo (local para fogueira) tem que ser preservado envolto em um círculo de pedras; no caso de fogão a lenha ou a gás a cobertura será em telha cerâmica. Moram atualmente em Piracanga aproximadamente 120 pessoas, sendo pelo menos 35 crianças. A população moradora possui poder aquisitivo médio, com nível de escolaridade superior. A população é composta por estrangeiros europeus e brasileiros de diversas partes, com formações variadas: psicologia, arquitetura, pedagogia, artes, terapia, permacultura, bioconstrução, etc.

Interação social, cultural e saúde e desenvolvimento político e econômico

Segundo os moradores, a relação de vizinhança é boa, encontram-se freqüentemente nas casas uns dos outros, no centro de yoga, no rio e no mar. Também têm o hábito de comemorar os aniversários. Coletivamente cultivam como valores: honestidade, integridade, coerência, simplicidade, empatia, harmonia, confiança, liberdade, união, paixão e amor. Os moradores de Piracanga desenvolvem uma cultura própria alheia à cultura nacional e regional, não comemoram as festas tradicionais brasileiras como São João, carnaval, etc. Possuem duas lideranças espirituais, representadas por Angelina Ataíde e seu filho Raji Ataíde, são como gurus. Adotam a alimentação vegana, acreditam que a alimentação saudável à base de vegetais orgânicos, somados à prática de meditação, curas energéticas e uso de ervas, promovem a saúde física, que é o reflexo da saúde emocional e espiritual.

Na ecovila existe o Centro Inquiri onde são gerados recursos econômicos para Piracanga.  Realizam-se atividades comunitárias, espirituais, educacionais, além de funcionar como uma pousada. No local há lojas onde comercializam roupas e produtos de higiene confeccionados pela comunidade. Possuem três restaurantes de comida e lanches veganos. Promovem eventos variados na área de terapias alternativas, meditação, yoga, permacultura, educação, alimentação.  A distribuição dos recursos para quem trabalha no Centro é igualitária. Em 2014 todos recebiam hum mil reais por seus serviços prestados, independente da atividade realizada.

As decisões do Centro Inquiri sobre planejamento, aquisição de objetos, gestão, convivência, etc. são tomadas em reuniões semanais e existem reuniões específicas de cada setor de trabalho, como também reuniões gerais. A articulação política de Piracanga dá-se a nível internacional, com relações estreitas com outras ecovilas e mercado internacional no âmbito da divulgação de suas atividades e captação de recursos.

Mobilidade e transportes sustentáveis, energias alternativas e gestão integrada das águas

Como para acessar Piracanga não existe transporte público, a Ecovila disponibiliza este serviço com carros especiais, que transportam moradores e visitantes à comunidade. Alguns funcionários (motoristas, zeladores, etc) moradores de localidades vizinhas, deslocam-se a pé, de bicicletas e motos. A melhor opção de acesso se dá por Itacaré, através de um barco fretado. Atravessa-se o rio e na outra margem funcionários da ecovila esperam os passageiros com carros off road. A ida desta praia à Piracanga é uma grande aventura, adentra-se a mata através de uma estreita estrada de barro, com muitas poças de lama, atravessa-se também alguns rios.

A energia elétrica e térmica é exclusivamente realizada através da captação solar, não há conexão com a mantenedora Coelba. Nas construções, observa-se a predominância da iluminação natural e ventilação cruzada. Procuram reduzir o consumo energético, evitam o uso de eletrodomésticos e ar condicionado, substituindo por geladeiras a gás ou soluções manuais. Adotam lâmpadas fluorescentes e led.

O abastecimento de água se dá através de poços perfurados, que captam a água dos lençóis freáticos. A água é potável, boa para consumo, não é tratada e é bombeada para os reservatórios.  Poucas casas captam e reutilizam a água de chuva, justificam que é devido à predominância das coberturas de piaçava, que deixa a água escurecida, dificultando a reutilização. Utilizam soluções permaculturais para o destino final das águas servidas amarelas, cinzas e negras. Adotam as bacias de evapotranspiração ou fossas sépticas com filtro biológico como solução das águas negras e círculo de bananeiras para as águas cinzas.

A maioria das casas possui sanitário seco, localizado na área externa, o design padrão possui dois vasos para fezes e um vaso separado para a urina. O resíduo sólido após seis meses de tratamento aeróbico, numa caixa de tampa metálica preta, que recebe a incidência solar, é levado ao minhocário e depois é utilizado como adubo na agrofloresta. A urina é canalizada para as composteiras, onde é misturada com o resíduo orgânico, gerando fertilizante.

 

 

Construções Sustentáveis e política dos 3R’S

A Ecovila avança nas soluções construtivas apesar dos materiais não serem do próprio terreno, e também precisam investir alto por conta do transporte dos materiais e do pagamento da mão de obra, que vem de localidades vizinhas que estão num raio de aproximadamente 100 quilômetros. Caracterizam-se por edificações bem construídas de padrão médio, projetadas por arquitetos ou engenheiros e construídas por empreiteiros de localidades vizinhas.

O processo construtivo é apoiado por profissionais (arquitetos, construtores, empreiteiros) contratados para projetar e construir suas casas. Utilizam-se tecnologias construtivas mistas, inicialmente em alvenaria de bloco cerâmico, estrutura em madeira eucalipto e cobertura de piaçava ou telha cerâmica. Atualmente têm sido realizadas várias experiências construtivas utilizando o bambu, o bloco de solo cimento, a madeira de reflorestamento ou de demolição (fig.9), o ferro-cimento, e introduzem o material reciclado como garrafas plásticas e/ou de vidro na alvenaria. Para reboco adotam a mistura de barro e cimento, e no piso predomina o uso de tabuado de madeira ou cimentado.

As construções são soltas do solo, a fim de evitar infiltrações e preservar a declividade natural do terreno. São predominantemente abertas, não existe preocupação com segurança. Possuem grandes vãos de iluminação e ventilação, as esquadrias são em madeira eucalipto e vidro, utilizam também elementos como brises, cobogós, pergolados a fim de minimizar a incidência solar, filtrar a luminosidade, e ao mesmo tempo, permitir a ventilação cruzada.

Em Piracanga faz-se a coleta seletiva, cada morador é responsável pelo destino final do seu lixo. Adotam solução para os resíduos orgânicos e papel que são enviados para as composteiras e reutilizados como composto orgânico nas plantações. Quanto aos plásticos, os vidros e metais são levados para Itacaré, cada morador é responsável pela destinação de seus resíduos. Os resíduos do Centro Inquiri são entregues para associações de reciclagem, ou para o lixão da cidade.

 

Fundação Terra Mirim

A Fundação Terra Mirim é uma comunidade intencional, fundada em 1992, por Alba Maria, xamã e escritora, que ali desenvolve formação e vivências xamânicas de cura individual, coletiva e do planeta. Possui uma população em torno de 30 habitantes, fato comum nas experiências brasileiras, destacando-se que a Terra Mirim encontra-se na segunda geração de moradores. A interação dos jovens com os moradores antigos, da primeira geração, é um exemplo de como laços afetivos profundos fortalecem o compromisso de manutenção da comunidade e favorecem a tomada de decisões coletivas mais sábias e abrangentes geracionalmente. Localiza-se no Município de Simões Filho, região metropolitana de Salvador/BA, no Km 07 da Rodovia BA-093, no entorno da sub bacia do rio Itamboatá, afluente do Rio Joanes, inserida na Área de Proteção Ambiental Joanes Ipitanga. O objetivo maior dessa APA é a preservação das nascentes, das represas dos rios, propiciando a preservação, conservação e recuperação dos ecossistemas existentes.

Desenvolveram campanha junto às comunidades ribeirinhas para revitalização do rio Itamboatá, com a plantação de mais de 50.000 árvores no seu entorno. Ministram cursos sobre meio ambiente para a população nativa, envolvem-se na conscientização da população e dos gestores para questões sociais, ambientais, educacionais, políticas e econômicas da região. Conseguiram mostrar a importância das fontes de água do município aos gestores municipais e, recentemente, junto com a comunidade do entorno, travaram uma importante luta contra a implantação de um lixão na região e foram vitoriosos.

Sua estrutura física é composta por uma casa grande onde funcionam a recepção, a área administrativa e financeira, cozinha e refeitório, quartos e chalés onde acolhem pessoas, espaços para aluguel que comportam até 120 pessoas, templos cobertos para meditação: templo original e casa dos mestres, templos abertos para os Quatro Elementos da Natureza - Terra, Água, Ar e Fogo como veículo de cura e conexão profunda com a Mãe Terra - e muita área verde. Há áreas destinadas ao cultivo de plantas fitoterápicas e para meliponicultura. Um novo espaço contíguo, um loteamento intitulado Colméia, abriga boa parte das novas famílias da comunidade.

 

Interação social, cultural e saúde e desenvolvimento político e econômico

A cultura principal da comunidade é a natureza como centro de tudo. Desenvolveram uma forma de viver onde a meta é a busca da consciência no cotidiano. Vivem com simplicidade, plantam parte do que comem, sentam em volta da fogueira, tocam tambores, usam roupas do campo, tiram os sapatos para entrar nos espaços, lavam os próprios pratos e talheres após as refeições, cantam e celebram o alimento, possuem o hábito de se recolher cedo para suas casas e acordam cedo para suas rotinas diárias.

A espiritualidade da Terra Mirim diz respeito à religação com o divino e com a natureza, adotam o xamanismo como forma de viver, tendo a natureza comoMestra maior e a Deusa Mãe como guia e fonte”. Não possuem nenhuma vinculação com religião institucional ou seitas.

Por muito tempo funcionou uma Escola com o objetivo de tirar as crianças das ruas, promover a ampliação de seus conhecimentos, e que atuava como escola complementar ao ensino regular. Essa Escola tinha como princípio metodológico o aprendizado com a natureza, onde se aprendia experienciando os quatro elementos e respeitando todos os seres gerados pela Natureza. Atualmente essa escola para crianças foi desativada e estão desenvolvendo a Escola XamAM, que segue os passos dos ensinamentos do Xamanismo da Deusa Mãe em resgate da cultura espiritual milenar da América Nativa.

Uma das formas de sobrevivência é acolher pessoas que colaboram contribuindo financeiramente e participando da vida cotidiana local. Recebem visitantes que partilham o cotidiano da comunidade, celebrações, meditações, ritos, jornadas e grupos de estudo. Cada serviço desses tem um valor específico, depende do tempo de realização de cada um deles e do profissional que o focaliza.

Terra Mirim dispõe de produtos orgânicos para a comercialização:
húmus de minhoca (fertilizante), composto orgânico  (adubo), mudas de árvores nativas da Mata Atlântica (negocia-se valores pela quantidade), mudas de ervas medicinais e aromáticas e mel. Mantém um restaurante vegetariano, de predominância orgânica, que oferece essa opção para seus estudantes e a comunidade em geral, demonstrando seu compromisso cotidiano com a ecologia. É responsável pelo projeto Incubadora Eco solidaria de  produção familiar, que inclui os pequenos produtores do Vale do Itamboatá beneficiando agricultores e artesãos da região. Participação na implantação da política de segurança alimentar e nutricional do Município de Simões Filho com a Meliponicultura no Vale do Itamboatá.

Terra Mirim atualmente atende, com seus projetos, um público constituído por crianças, adolescentes e adultos, ONGs, instituições públicas e empresas da Região Metropolitana de Salvador, desenvolvendo cursos, workshops, eventos e projetos sociais. A instituição, ainda recebe, com seu serviço de hospedagem, pessoas de outros estados e de diferentes países, interessadas em conhecer a experiência comunitária e as ações socioambientais. A escola XamAM vem crescendo internacionalmente, recebendo dezenas de alunos de vários países e contribui para a manutenção da comunidade.

A Xamã Alba Maria foi a fundadora e continua a ser a liderança espiritual de Terra Mirim, sendo referência marcante para os moradores que possuem um grande respeito à sua pessoa. Ela hoje atua cada vez mais na esfera de aconselhamento da comunidade. O processo de decisões passa por um colegiado, previsto no estatuto, cujo conselho curador é formado por 1/3 de voluntários da fundação e os outros 2/3 são escolhidos pelos envolvidos na organização (incluindo gerências, voluntários, diretores, e superintendente). É sempre fomentado um processo de discussão e decisão horizontalizada. A tomada de decisões acaba sendo descentralizada, cada gerência tem certa autonomia dentro da sua esfera de atuação.

Mobilidade e transportes sustentáveis, energias alternativas e gestão integrada das águas

Situa-se a 25 quilômetros de Salvador, nas margens da rodovia BA-93, em Simões Filho-BA, servida de transporte público convencional (ônibus). Os moradores da FTM utilizam deste modal ou de veículos particulares para sua mobilidade. A energia abastece a FTM é proveniente da rede elétrica convencional, fornecida pela COELBA. Alguns chalés têm banheiros privativos e atualmente possuem energia solar para água quente em alguns alojamentos. A FTM oferece a riqueza de viver na Mata Atlântica sob um lençol freático de água mineral, pura e cristalina. A água utilizada tem origem em poço artesiano, e não possui sistema de reaproveitamento ou tratamento, sendo descartada em fossas convencionais (sumidouros). Possui também a fonte da Guia em seu entorno, água puríssima e cristalina que abastecia os romeiros da Nossa senhora da Guia, em épocas remotas. A água do rio Itamboatá e da Lagoa não são apropriadas para uso potável.

A política dos 3R’s e a sustentabilidade das construções

A FTM vem introduzindo a coleta seletiva e buscando o lixo zero e o processamento de resíduos orgânicos é o mais antigo esquema de reciclagem existente na comunidade. Os resíduos orgânicos são acondicionados em composteiras e minhocários, sendo convertidos em fertilizantes e utilizados localmente ou vendidos a granel.

Na FTM alguns dos espaços existentes não foram construídos com tecnologias de baixo impacto, até pela época de fundação, uma da mais antigas ecovilas brasileiras. Observa-se que é difícil se conseguir ser sustentável em todas as ações e âmbitos mesmo nas ecovilas. Não há adoção sistemática de técnicas de permacultura e este conceito vem tornando-se  mais presente na ecovila com as novas gerações. Como as edificações, em sua maioria não são bioconstruídas, os materiais empregados são na sua maior parte vindos de fora, embora se observe a utilização de elementos provenientes do local, como bambu e partes das estruturas de madeira.

Com relação às expressões materiais da cultura, observam-se alguns detalhes que marcam as características locais, como a existência de construções circulares (especialmente as destinadas à meditação e a encontros), as pinturas decorativas em algumas edificações e as decorações da Casa das Artes com motivos regionais (bambu e tecidos de chita). A noção de construção circular tem a ver com os princípios do local: “o círculo permite uma maior circulação da energia, além de aproximar as pessoas”, conforme explica uma moradora. Além disso, os desenhos dos templos refletem a integração mística com os elementos da natureza.

 

 

Comunidade Campina

A Comunidade Campina existe desde 1991 e nasceu da reunião de amigos com o mesmo sonho de romper com a vida nas grandes cidades, com o consumismo material e com os valores de uma sociedade capitalista. Buscava a prática de um modo de vida simples e natural, a partir da dimensão de espiritualidade e da busca do autoconhecimento. Localiza-se no Vale do Capão, localidade pertencente ao Município de Palmeiras, no entorno do Parque Nacional da Chapada Diamantina, banhada pelo rio Riachinho. A área da Campina é de 200 hectares, a ocupação com as casas é mínima, a maior parte da área é para preservação ambiental.

Quando a comunidade chegou, o terreno era um pasto, o solo estava ácido e muito prejudicado por queimadas, além de grande parte estar em cima de rocha. A terra não era muito adequada para agricultura. Atualmente encontra-se recuperada, reflorestada, os moradores fizeram este trabalho deixando a própria natureza renascer e remanejando as mudas. Dedicam-se à preservação do meio ambiente, à restauração da biodiversidade do entorno do Parque Nacional e, quando necessário, ao combate aos incêndios, frequentes na região. Qualquer pessoa pode vir a ser morador da Campina, desde que trabalhe na comunidade um turno por dia e contribua com um valor em dinheiro. Após um ano, com a adaptação e a integração com a comunidade, pode construir a sua casa. Entretanto estas são de propriedade da comunidade. Atualmente as edificações e setores existentes são: cozinha comunitária; casa de beneficiamento de ervas; alojamento/biblioteca; apiário; oficina; horta orgânica; herbário; minhocário; SAF – Sistema de Agro Floresta; camping e moradias.

Interação social, cultural e saúde e desenvolvimento político e econômico

A Comunidade Campina é fundamentada nas práticas da permacultura, vegetarianismo e livre expressão. São poucas regras num ambiente familiar, propõem um estilo de vida alternativo, em contato direto com a natureza, constroem uma vida comunitária em busca da melhoria da qualidade de vida. Todos os dias, fazem as refeições principais na cozinha comunitária. A educação ambiental é um dos objetivos, incentivando pessoas que queiram aproximar-se desse modelo de vida. Entretanto a escolinha infantil da comunidade está desativada. Para seu desenvolvimento econômico, a comunidade se empenha na produção orgânica de mel e de outros alimentos, ervas medicinais, produtos medicinais e cosméticos (sabonetes, pomadas, tinturas). No herbário, cultivam ervas orgânicas, e destas produzem tinturas, que envazam ou também utilizam para produzir os sabonetes, cremes e shampoo, também comercializam arroz integral, aveia e açúcar demerara, ensacam e comercializam distribuindo na região, atendem pedidos para outros estados através da internet. Atualmente entre outras ações, a Comunidade aluga o espaço para realização de cursos de permacultura, bioconstrução, vivências, além de práticas de ecoturismo.

Na Campina as decisões são tomadas em reunião por consenso, entretanto identifica-se Luís como liderança, por ser o proprietário da terra e um dos fundadores, sendo o único que permaneceu e sustentou a proposta da comunidade até os dias atuais. Na Comunidade, existe uma escala de trabalho semanal onde os moradores e visitantes participam das atividades do dia por quatro horas, geralmente pela manhã após o café. O trabalho nas atividades é requerido para as pessoas que estão visitando, para facilitar a integração e  o conhecimento da vida comunitária. Em grupo, toda segunda feira, acontece uma reunião, cada membro coloca a sua pauta e a sua opinião, se for alguma coisa boa para todos é colocada em prática. Antes de começar cada um diz o assunto que quer falar, fazem o balanço das atividades realizadas e definem a escala da semana. As atividades podem ser escolhidas de acordo com a vontade, o talento de cada um e procuram executá-la da melhor forma possível.

Mobilidade e transportes sustentáveis, energias alternativas e gestão integrada das águas

O acesso à comunidade Campina não é fácil, pois não há transporte regular. Dista uns 5 quilômetros da Vila do Capão, pode ser feito a pé, de bicicleta, a carro ou moto. A estrada que dá acesso não é pavimentada, esburacada e com sítios nas suas laterais. A parada do ônibus escolar, dista 2 quilômetros da comunidade.

Na comunidade não há energia elétrica convencional, captam a energia solar com placas fotovoltaicas para três casas: a casa da cozinha comunitária, a casa amarela e a casa de um morador. Não possuem eletrodomésticos (geladeira, fogão a gás, televisão...). Utilizam latovelas (lanternas com velas) ou lampiões para iluminação à noite em suas casas. O fogão e o forno da cozinha comunitária são à base de lenha. No local não há sinal de telefone ou celular. Consegue-se acesso à internet em alguns pontos do terreno.

A água que abastece a comunidade Campina é a do Rio Riachinho e outra que vem direto da nascente da serra através da gravidade. Não existem tratamentos da água. Não fazem captação da água da chuva. Como solução para as águas cinzas e negras, utilizam os círculos da bananeiras, as bacias de evapotranspiração, sanitários secos e o “minhocagário”. Trata-se de um banheiro seco criado no local, integrado ao cultivo de minhocas que processa os resíduos e produz húmus para agrofloresta. Nos alojamentos, residências e camping adota-se o sistema de evapotranspiração (BET) e/ou as fossas secas para águas cinzas e negras.

Política dos 3R’s e sustentabilidade das construções

Os resíduos orgânicos são levados para o minhocário e depois são utilizados como adubo na agrofloresta. A urina é armazenada no coletor e misturada com água, em seguida é despejado na composteira e utilizado para biofertilização. Quanto aos outros resíduos sólidos, fazem a separação da seguinte forma: orgânico x inorgânico, seco x molhado, reciclável x dispensável, o papel higiênico é enterrado. Cada morador é responsável por seu lixo, o plástico, o vidro e o metal são levados para a cidade.

A maioria das casas da comunidade é construída em adobe, material abundante do local, através de mutirão. Utilizam também alguns materiais como pedra ardósia para revestimento de piso e parede, bancadas e telhas. A madeira nativa também é adotada para pilares, vigas e estrutura de telhado. O tijolinho de solo cimento e o telhado cerâmico também são adotados. As casas possuem espaço externo com chuveiro e lavanderia. No interior das casas utilizam a ventilação passiva, iluminação natural e onde tem energia elétrica adotam leds ou lâmpada fluorescentes.

     

Discussão

Ao longo da pesquisa, percebem-se pontos comuns nas ecovilas estudadas, particularmente em termos da busca de desenvolvimento pessoal e comunitário focado no autoconhecimento, na partilha de responsabilidades e no contato com a Natureza. Percebe-se também, e isso era esperado, grande variedade de soluções, em aspectos variados. Os itens do quadro metodológico esboçado anteriormente serão utilizados para a discussão a seguir que compara as três ecovilas.

Preservação ecológica e biodiversidade

Observa-se que, em todas as ecovilas estudadas, existe um trabalho sério de recuperação ecológica e de preservação das características ambientais locais e dos ecossistemas existentes, até porque todas estão situadas em áreas de preservação ambiental com forte biodiversidade, banhadas por rios e no caso de Piracanga, também por mar. A preservação dos ecossistemas existentes é evidente na mínima ocupação do solo com residências, na alta permeabilidade do solo e na presença de mata nativa, ou recuperada, em relação ao território total. No caso de Piracanga e Comunidades Campina esta área corresponde a aproximadamente 80% do total. Mesmo na menor das ecovilas estudadas, Terra Mirim, a área verde é muito maior do que a área ocupada por residências. Essa ecovila é também a que estabelece uma relação mais estreita com o território do entorno, promovendo trabalhos regulares e de longa duração com as comunidades vizinhas, enquanto Campina e Piracanga estão mais voltadas para o seu próprio espaço.

Desenvolvimento político e econômico

Todas as ecovilas estudadas buscam formas de autossustento, gerando renda principalmente através de oferta de cursos, hospedagem e produção de alimentos orgânicos, ou outros produtos ecológicos. Embora sendo a mais recente, Piracanga se destaca em termos de dinamismo econômico pela promoção de vivências e cursos, divulgação e marketing pela internet. Isso faz dela um expoente das ecovilas baianas, atraindo novos moradores constantemente, que trazem vitalidade ao local.

Em termos de práticas políticas, as ecovilas tentam uma governança horizontal e estimulam a participação de todos os membros, tendo estatutos que favorecem a gestão compartilhada. É comum a divisão de tarefas em grupos de trabalho e a descentralização da gestão. Piracanga e Terra Mirim, por terem lideranças espirituais fortes desde sua fundação, adotam também essa forma de liderança em seu sistema político, que valoriza a sabedoria dos guias espirituais. 

Interação social, cultural e saúde

A dinâmica sociocultural das ecovilas é intensa, pois, por serem comunidades intencionais, ou seja, pessoas que se juntam por valores e projetos comuns, elas tendem a organizar eventos, ações e encontros de todo tipo, vinculadas à sua “intenção”. Em relação a outras comunidades, sobretudo de mesmo tamanho, a vida social e cultural nas ecovilas é bem mais intensa. Uma dinâmica cotidiana que favorece a interação são as refeições partilhadas, comuns nas ecovilas estudadas, particularmente em Campina, onde todas as refeições são realizadas na cozinha coletiva.

Em termos de saúde, as pessoas que habitam as ecovilas são naturalmente engajadas em ter uma alimentação mais saudável, vegetariana ou vegana, a buscar um ritmo mais tranquilo de vida, a ter mais contato com a Natureza, a realizar trabalhos corporais coletivos ou individuais e a fazer uso de plantas medicinais, cultivadas localmente.  Tudo isso favorece grandemente a saúde, além de terem a facilidade de acesso a terapeutas alternativos de diversos tipos que moram nas comunidades e prestam serviços gratuitamente, por troca ou com preços moderados.

Sobre redes de serviços: mobilidade, energia e água

Em relação à sua integração com as redes convencionais, as ecovilas têm perfis muito diferentes, principalmente em função da sua proximidade, ou não, de centros urbanos importantes, e de seu tempo de fundação. Em termos de mobilidade, por serem comunidades que se situam áreas rurais, todas as ecovilas estudadas enfrentam desafios para acessar outros centros. O caso de Terra Mirim é o mais simples, pois ela é servida por uma rodovia movimentada com transporte público disponível, embora deficiente. Pirancanga, localizada em área rural remota, necessita de transporte off road para sair de seu perímetro, enquanto Campina acessa à pé a vila mais próxima, situada a cinco quilômetros. Para mobilidade interna, por serem pequenas vilas, priorizam a caminhada ou a bicicleta.

Em termos de abastecimento energético as três ecovilas têm soluções completamente diferentes: enquanto a Terra Mirim está conectada com a rede tradicional da COELBA, Campina e Piracanga têm abastecimento solar. Esse é reduzido em Campina, que o usa prioritariamente nas construções coletivas e usa velas e lampiões em construções residenciais. A energia solar é generalizada em Piracanga, cuja população tem um nível de renda mais alto que a das demais.

Sobre a gestão integrada das águas, as soluções também são variadas e são principalmente alternativas. Para a captação, existem os poços artesianos e das nascentes. Estranhamente, por motivos variados, nenhuma delas faz uso extensivo da captação da água de chuva. Como solução para as águas cinzas e negras, as ecovilas experimentam muito: existem círculos da bananeiras, bacias de evapotranspiração, sanitários secos (e sanitário seco integrado ao cultivo de minhocas – minhocagário), além de fossas ecológicas. Em Terra Mirim, usa-se a fossa tradicional tipo sumidouro, que, pelas distâncias entre elas, não prejudicam o lençol freático, nem o rio que foi recuperado em seu território.

 

A Política dos 3R’s e a sustentabilidade das construções

Todas as ecovilas demonstram preocupação com a reciclagem, destacando-se no aproveitamento dos resíduos orgânicos para compostagem. A separação do lixo em diferentes materiais para o reaproveitamento também é realizada, porém a responsabilidade é individual e a destinação é a mesma, a da cidade mais próxima. Em Piracanga, plásticos, papéis, metais e vidros produzidos no Centro Inquiri são enviados diretamente para cooperativas de reciclagem.

Em termos de construções busca-se soluções bioconstruídas, porém esse item não é generalizado. A população de Campina autoconstruiu seus imóveis adotando o adobe, a madeira nativa e pedras locais, como base, sendo, portanto, quase inteiramente bioconstruída, apenas usando telhas produzidas nas proximidades. Piracanga tem dificuldades, pela distância e pela indisponibilidade de energia para manejo de materiais locais e assim traz da região os materiais de construção, destacando-se pela qualidade arquitetural e construtiva e pela criatividade e variedade de tipos de construção. Terra Mirim, no seu início, adotou técnicas convencionais, mas vem inovando na bioconstrução nas obras mais recentes.

 

Considerações Finais

Essa pesquisa mostra que as ecovilas vêm constituindo-se em exemplos para a sustentabilidade dos aglomerados humanos. Elas demonstram, com suas práticas, que existem soluções simples para os desafios do convívio da humanidade com a Natureza, em diferentes frentes, tanto social, quanto ambiental, ou econômica. Observa-se que não se exige uma quantidade expressiva de recursos, apenas comunidades determinadas a viverem de outro modo e dispostas e encarar a busca da coerência entre o que dizem e o que fazem como desafio cotidiano. A divulgação das práticas das ecovilas pode estimular que mais e mais pessoas se disponham a mudar suas formas de viver, assim como influenciar as posturas profissionais em arquitetura e urbanismo e incentivar a comunidade acadêmica a ampliar pesquisas e ações que tenham como foco o exemplo das ecovilas, rumo à maior consciência ambiental.

É verdade que até aqui, mesmo experiências internacionais mais antigas e de peso, como Findhorn ou Auroville, ainda são comunidades que não ultrapassam três mil habitantes e que a ecovila baiana mais populosa, Piracanga, não chega a ter duas centenas de moradores. Esse fato mostra, de um lado, que o número de pessoas dispostas, ou que tenham condições objetivas, de passar do discurso à prática ainda é pequeno. Por outro lado, mostra que o agravamento da insustentabilidade da sociedade atual, tanto em termos de condições climáticas, quanto sociais e econômicas não está sem resposta e que modelos de comunidades e modos de vida alternativos à insustentabilidade já estão sendo testados e aprovados. A escala limitada não é empecilho para sua propagação e multiplicação.

Referências

ANDRADE, Liza Maria de Souza. Agenda verde x Agenda marrom: inexistências de princípios ecológicos como desenhos de assentamentos urbanos. Dissertação de Mestrado. Brasília: FAU-UNB, 2005.

AUROVILLE – The City of Dawn. Disponível em: <http://www.auroville.org/> Acesso: Outubro, 2015 e FINDHORN FOUNDATION. Disponível em: <https://www.findhorn.org/> Acesso: Outubro, 2015.

BRAUN, Ricardo. Novos Paradigmas Ambientais: desenvolvimento ao ponto sustentável. 3. Ed.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

CUNHA, Eduardo Vivian da. A sustentabilidade em ecovilas: práticas e definições segundo o marco da economia solidária. UFBA: 2012.

KASPER, Debbie Van Schyndler. Redefining Community in the Ecovillage. Human Ecology Review, Vol. 15, No. 1, 2008. Disponível em http://www.humanecologyreview.org/. Acessoem jan/2014.

HOLMGREN. David. Permacultura, Princípios e caminhos além da sustentabilidade. Tradução Luiza Araújo. Porto Alegre: Via Sapiens, 2013.

 

GEN- Rede Global de Ecovilas. Disponível em: <http://gen.ecovillage.org> Acesso: Outubro, 2015 e  GFN – Global Footprin Network- disponível em http://www.footprintnetwork.org Acesso: novembro, 2016.

KEELER, Marian, BURKE, Bill. Fundamentos de projeto de edificações sustentáveis. Tradução: Alexandre Salvaterra. Porto Alegre: Bookman, 2010.

CAPRA, Fritjof. As conexões ocultas: ciência para uma vida sustentável. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Cultrix, 2005.

BISSOLOTTI, Paula Miyuki Aoki. Ecovilas: Um método de avaliação de desempenho da sustentabilidade. 148f. Tese (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2004.

 

 



Lula não é um santo. Viva Lula!

April 6, 2018 13:22, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

 Lula não é santo viva lula

 

Lula não é um santo. O PT teve erros inaceitáveis. Mas a história avança sem perfeições. Quem sinaliza o lado certo em que podemos estar nela é a resposta à pergunta: A quem serve esse fato histórico? É incontestável que Lula mudou o Brasil incorporando os pobres como parte da Nação. É por isso que o povo lhe defende, assim como aqueles que têm sensibilidade social. Isso não quer dizer que todos os que estão "do outro lado" sejam insensíveis. A realidade política é complexa. Há muita gente que apenas quer os corruptos sejam presos, sem se darem conta da injustiça que está sendo cometida contra Lula, ou, dando-se conta, achando que esse é um mal menor.

É importante separar o joio do trigo e não misturar todos como "coxinhas". Eles e elas existem, voltados para seus próprios umbigos, não querendo mudanças no status quo que lhes benefecia. Querem um mundo exclusivo para a classe média e os ricos, os brancos, os heteros, os privilegiados de todas as naturezas. Por que iriam querer empregados que se valorizam e questionam, salário mínimo decente, cotas universitárias que tiram vagas de seus filhinhos, dinheiro público servindo ao povo em grandes programas sociais? mas os coxinhas de carteirinha não são tão numerosos assim.  

O que existe, imensamente majoritário na população brasileira, é uma indignação com a corrupção. E mesmo que a condenação de Lula por um apartamento que não está em seu nome, no qual ele nunca viveu, nem tirou qualquer proveito, seja esdrúxula, o fato de que o PT também se envolveu em corrupção comove a nação. Aliás, nós que votamos e defendemos Lula nesse momento também continuamos indignados e querendo que o PT finalmente faça sua autocrítica e se reconcilie com sua história. Mas a história não é um romance de mocinhos e se queremos estar do lado certo vamos nos perguntar: quem está mais próximo daquilo que acredito que é melhor para o Brasil?

Viva Lula!

 



Micro efeitos culturais do combate à corrupção no Brasil

March 23, 2018 18:33, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

 Banner corrupção

Pode-se ter a sensação de que a corrupção atingiu níveis inimagináveis nos últimos anos pois esse tema tornou-se tão presente na mídia que parece que nunca tinha havido antes tanta roubalheira no âmbito público. Ok, nem vou citar inúmeros escândalos desde a época da ditadura até antes da Lava Jato pra dizer que o que tivemos nos últimos tempos foi apenas investigação e punição. Nem vou entrar na discussão sobre as disparidades entre os crimes, a parcialidade ou não de certos juízes, etc. etc., a perseguição de uns e as vistas grossas para outros, temas sobre os quais já se gastou muitas palavras. Vou falar de nós, pessoas comuns, honestas e que se deliciam ao lembrar que Cunha, Maluf e Geddel estão presos, na companhia de muitos outros notórios corruptos.

O que observo, feliz? Uma intolerância cada vez maior com os pequenos crimes que nos rodeiam. Quem não percebeu o quão é comum hoje falar criticamente sobre as “pequenas corrupções”, desde subornar um guarda de trânsito até ter carteira de estudante falsa? A sociedade está evoluindo muito para perceber o caráter cultural e sistêmico da corrupção e também para combatê-la nos micro espaços. Acompanho nos últimos tempos verdadeiras rebeliões pela ética até mesmo nos rincões mais privados e corporativos da sociedade.  Posso citar as mulheres que denunciam sem cessar os abusos masculinos, sejam eles sexuais ou puro machismo “ordinário” de homens que consideram que tudo lhes é devido.  As manifestações contra o racismo estrutural se multiplicam assim como contra o racismo “ordinário”.  Mas vou terminar focando no ambiente das Universidades, que é onde estudo e trabalho desde meu vestibular, há mais de três décadas.

Estudantes que compram trabalhos em plataformas na internet? Que copiam trabalhos já publicados em suas dissertações e teses? Estão sendo denunciados e punidos pelas bancas de avaliação. Professores que colocam informações falsas na plataforma nacional de currículos do CNPQ? Que acumulam horas em contratos múltiplos que lhes fazem ter até 80 horas remuneradas por semana ? Que faltam aulas injustificadamente e que não honram a profissão por não dedicar-se seriamente à formação de seus alunos e alunas? Estão sendo denunciados pelos próprios colegas que abrem processos muitas vezes unânimes e assim rompem com uma prática corporativa que vi por décadas. Talvez as reações à corrupção no país devessem estar sendo mais públicas, sobretudo quando malas de dinheiro vão e vêm. Mas a reação fulminante da sociedade brasileira em face do assassinato de Marielle Franco e os processos que tenho acompanhado em torno de mim mostram que podemos ficar otimistas com o futuro. Nossa sociedade está mudando em profundidade.

Publicado no Jornal A Tarde, 23/03/2018

 

Micro efeitos da luta contra a corrupção 23 03 18



Permacultura e Meditação

February 16, 2018 8:45, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

Alto do parque horizontal

Acabei de viver um experiência única no município em que nasci, Miguel Calmon, nas imediações do Parque das Sete Passagens. A Escola de Sustentabilidade Integral - ESI, que criei e sustento em parceria com bravas pessoas, levou um grupo de 12 exploradores de si e do mundo para vivências com a Natureza e em sintonia com a Alma. Como disse alguém que estava lá, permacultura e meditação são dois lados da mesma busca de harmonia: pra fora e pra dentro.

Preparando pancsTodxs pintandoPeneirando o barro da tinta

O Sítio do Futuro, que há dez anos vem sendo reflorestado por nós e pela gente da Grota e que produz frutas, raízes, folhas, ervas e legumes livres de agrotóxicos e de fertilizantes, nos acolheu com alegria e beleza.  Os passarinhos, as borboletas, os sapos, as corujas, as iguanas e os jabutis, também. As agroflorestas do Sítio mostraram o caminho da produção de alimentos de forma que enriquece o solo e a biodiversidade, tão diversa do mórbido agronegócio.  Minha alegria de ver aquele ambiente pronto para acolher pessoas buscando uma transição para outro tipo de vida, calma, simples e abundante, cooperativa e alegre, foi enorme. 

A sede de campo da ESI, em contrução, permitiu uma oficina de pintura de terra, divertida e inspiradora, que mostrou o quanto é possível viver em beleza sem química, honrando a beleza que já está aí, numa explosão de cores da Natureza. A casa em adobe e madeira de reflorestamento, a BET- Bacia de EvapoTranspiração,  que transforma os resíduos da casa em fertilizantes, são outros exemplos de bioconstrução. A alimentação natural, os exercícios físicos feitos logo cedo, a cooperação entre os membros dessa pequena comunidade, os momentos de silêncio e meditação e o apoio das pessoas da região resultaram em bem estar e leveza. 

 

 Viver é bomA alegria de son e joana

O Sítio do Futuro e a Escola de Sustentabilidade Integral mostram que o Bem Viver e a alegria que decorrem de uma vida simples, cooperativa e em sintonia com a Natureza estão disponíveis para todo mundo. Milhares de outras iniciativas de permacultura, de autoconhecimento e de vida comunitária ecológica estão por aí. Cada pessoa que quer contribuir para que a humanidade passe a outro patamar de amorosidade precisa viver na prática experiências assim e apoiar aqueles que estão desbravando esse novo mundo, como nós. Venham, estamos abertos a acolhê-los em nossa próxima atividade. Acompanhem a Escola de Sustentabilidade Integral pelas redes sociais e saiba quando:

https://www.facebook.com/escoladesustentabilidadeintegral/

Joana preserva o sítio



A emergência da cidadania planetária

October 6, 2017 17:49, par Débora Nunes - 0Pas de commentaire

Cidadania planetária

 

 

EMERGÊNCIA DA CIDADANIA PLANETÁRIA

Transformar a Visão da Política e da Geopolítica: do Poder Dominador ao Poder Co-criador

A grande questão geopolítica atual não é saber que Potência dominará o século 22, mas se haverá para a Humanidade um século 22. A civilização humana está ameaçada de desaparecer. Mas o que a ameaça é sua irresponsabilidade ecológica e social, sua própria barbárie interior e não exterior. Isto muda a maneira como vemos a questão da defesa.

A defesa, pois, consiste na capacidade dos humanos de organizar seu viver juntos, num planeta que permaneça habitável. As questões ecológica e humana, isto é, a capacidade da humanidade confrontar seus demônios interiores e crescer em humanidade torna-se o centro de uma nova abordagem da geopolítica. Esta visão integral e planetária do lugar do humano na natureza muda nosso olhar, que se torna mais apto à compaixão e mais construtivo. Cada ser humano se torna, naturalmente, cidadão da Terra, portanto, do Universo. Pequenino e ao mesmo tempo responsável pelo seu futuro. Mas, de fato, propenso à humildade e à solidariedade, por ser um elemento frágil da família humana e da de todos os seres vivos.

É, portanto, necessário passar do Poder dominador, que fundamenta a geopolítica clássica, ao Poder co-criador. Isto conduz a uma mudança da noção de governança. E a uma mutação qualitativa da democracia competitiva e delegativa a formas de Democracia participativa e colaborativa. É também a passagem de uma política fundada na inimizade (a figura do inimigo) à que Aristóteles e Derrida chamavam de “uma política da amizade”, fundada na ideia de que a/o “irmã/o” (no sentido de filhas e filhos da Mãe Terra) só pode sobreviver superando suas pulsões violentas. Isto não significa o fim dos conflitos nem dos desacordos, mas a capacidade de entende-los de maneira fecunda e não violenta. Isto é importante tanto nas relações interpessoais quando nas interações no seio da sociedade civil planetária na sua diversidade.

Isto leva a uma mudança da visão jurídica: passagem da “soberania solitária” dos Estados-Nações à “soberania solidária”, capaz de levar em conta “bens comuns” ecológicos e societários. Ela se apoia desde já em novas abordagens jurídicas tais como a noção de ecocídio, ou de crime contra o ambiente que coloca em risco a humanidade. A Corte Penal Internacional se reconhece competente se um crime contra a humanidade de natureza ambiental é provado; este já é um primeiro passo naquele sentido.

É também uma superação da abordagem puramente “internacional” para avançar no sentido da “mundialidade”: a mundialização se opõe à globalização que é somente econômica e financeira, por levar em conta o conjunto das questões ecológicas e sociais mundiais a partir do nível local. Isto significa tratar destas questões em termos de subsidiaridade, para que a mundialidade não entre em contradição com as diferentes identidades. Assim, cada comunidade é responsável pela gestão do seu espaço apoiada, quando necessário, pelos outros níveis. Isto permite, ao mesmo tempo, a construção de identidades-relações entre comunidades e entre diferentes níveis (territórios, países, continentes). Assim, o reconhecimento de uma cidadania planetária, que dá a todo ser humano direitos e deveres definidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta da Terra, torna-se compatível com a cidadania local, nacional ou continental. A identidade-relação envolve a co-responsabilidade entre as diferentes escalas de vida, para a sobrevivência do conjunto do povo da Terra.

Há também, evidentemente, mudança em relação à economia. Uma Economia plenamente ecológica, que promove a consciência da necessidade de uma boa gestão de todas as nossas moradas: nosso corpo, nossas casinhas terrestres, nossas comunidades, nossos biomas, nosso país e a grande casa planetária.  Isto exige uma economia do suficiente, que reconheça os limites dos recursos da Terra, promova o consumo sóbrio e responsável de bens materiais e ponha limites ao crescimento; novos conceitos e indicadores de riqueza; e uma abordagem da contabilidade que resgate ao termo benefício seu verdadeiro sentido de atividades benéficas, fontes de melhoras qualitativas e não quantitativas, para todas e todos, e não apenas para um pequeno número de privilegiados. Ora, diversos valores monetários correspondem, de fato, a atividades destruidoras do ser humano, da natureza, da saúde…, tais como a mercantilização da exploração humana, das guerras, das doenças, dos acidentes rodoviários, o agravamento das catástrofes naturais (extrativismo ou construções anárquicas) e os vícios, como o consumo de cigarros.

O que conta numa casa é o Bem Viver de todas e todos os que a habitam. O verdadeiro sentido da atividade econômica deve ser o Viver em Plenitude, e não o lucro e a acumulação de dinheiro e de propriedades. Viver em Plenitude inclui ter acesso a todas as condições que facilitem o desenvolvimento dos potenciais, qualidades e talentos de cada pessoa, comunidade, território e povo. A partilha da propriedade e da gestão dos bens produtivos, seja a terra, as unidades industriais e financeiras, seja a tecnologia e o conhecimento nutrem a solidariedade, a reciprocidade e a complementaridade.

Isto leva a outras mudanças profundas, como a transição para uma economia plural e o deslocamento do centro das atividades econômicas da empresa privada para as comunidades humanas nos seus territórios e ecossistemas, auto gestionárias e solidárias entre si. O planejamento participativo do desenvolvimento socioeconômico e humano auto gestionário orienta a oferta para a produção de bens e serviços que respondem às necessidades reais dos sujeitos sociais e dos modos de governança participativos e não-hierárquicos organizados do local às esferas mais gerais. Esta vocação de serviço ao Bem Viver integral das pessoas se estende ao Estado democrático, cujas responsabilidades abrangem a orquestração da diversidade social e a proteção dos direitos humanos e da soberania nacional e popular; a promoção de relações harmônicas e igualitárias entre as comunidades e as regiões, assim como o respeito à diversidade; a produção das infraestruturas que servem às esferas regionais e nacional; a garantia de uma gestão responsável dos bens comuns, dos biomas e ecossistemas; a proteção da resiliência dos ambientes alterados pela ação humana; e a gestão dos assuntos internacionais e planetários.

Há igualmente mudança em relação à espiritualidade. Espiritualidade aberta, fundada na relação com a beleza, com o mistério da interioridade que permite superar as várias religiões organizadas em torno do medo, da culpa, da submissão e do sacrifício. Em particular há a superação da lógica da Potência dominadora, que corrompeu profundamente diversas instituições religiosas e conduziu às piores guerras, aquelas realizadas em nome de Deus. Essa espiritualidade aberta, criadora e não dominadora pode, então, ser plenamente coerente com uma abordagem aberta da laicidade. A espiritualidade se torna, assim, uma pesquisa íntima da missão profunda de cada uma e cada um nesta vida, o que nos leva à prática da alegria de viver consigo mesmo, com os outros e com a Natureza. É, pois, uma mudança da relação entre micro e macrocosmo, que conduz a uma visão fractal tanto do universo exterior quanto do interior, e abre à abordagem de uma transformação tanto pessoal quanto social. Isto supõe, claro, a abertura a uma inteligência global aberta tanto ao coração e ao corpo, quanto ao espírito.

A partir de agora há uma mudança da noção de civilização. A perspectiva de uma Cidadania mundial permite oferecer uma alternativa não só à noção de civilização colonizadora, mas também à guerra de civilizações teorizada pelos neoconservadores estadunidenses. Isso vale, em particular, para o diálogo necessário, ao mesmo tempo exigente e aberto entre Modernidade e Tradição, capaz de conservar o melhor dos dois. Da Modernidade guardaremos a liberdade de consciência, o reconhecimento da singularidade e, portanto, dos direitos de todos os seres humanos, sem o pior – a coisificação ou mercantilização da Natureza, da Vida e até dos Humanos. E operaremos a mesma “triagem seletiva” entre a parte luminosa da Tradição – a reconexão com a Natureza, com os outros e com as questões do sentido), rejeitando sua parte sombria: a dependência derivada da dominação patriarcal (controle social, fundamentalismo identitário e ecologia misantrópica).

É toda a perspectiva do humanismo que se encontra assim transformada. Co-construção de um Humanismo a serviço do Ser Vivo e da cidadania planetária, e não o humanismo de dominação da natureza e de imposição da visão ocidental do mundo.

 

O desafio do “Bem viver”

 

Nessa perspectiva, a visão manifestada pelos povos originários da América Latina, e divulgada com força a partir do FSM de Belém em 2009, propõe uma transição no sentido de sociedades do “Bom Viver” (sumak kawsay em quechua), do Bem viver, que ganha pleno sentido hoje e cria a reviravolta espiritual de que nosso mundo necessita.

Mas o Bem Viver não se tornará um verdadeiro projeto de sociedade a menos que seja encarnado por um movimento cidadão que o leva a sério para se organizar consequentemente em torno desse eixo e realizar ações concretas. Precisamos responder ao desafio da experiência e não só da esperança. A simplicidade dos 13 passos propostos pelos povos originários dos Andes para exprimir o sumak kawsay no cotidoano pode servir de inspiração a todas e todos que querem empreender uma transformação pessoal e assim contribuir a uma transformação social. Esta transformação começa pela vida cotidiana na escala individual para ampliar-se à escala de toda a sociedade global. É um novo sentido da vida que se exprime na busca do “Viver Plenamente”, no sentido integral: Bem Viver conosco mesmos, com os que nos cercam e com a busca, com aqueles que nos cercam e com aquela que nos nutre, a Mãe Terra. Os 13 princípios do Bem Viver na busca do equilíbrio são:

 

1) saber nutrir-se do que é saudável;

2) saber beber favorecendo o fluxo da vida;

3) saber dançar no ritmo do Universo;

4) repousar, dormir de um dia para o outro;

5) ser capaz de trabalhar com alegria;

6) saber calar-se e buscar o silêncio meditativo;

7) pensar, em conexão com o coração e o espírito;

8) saber amar e ser amada/o;

9) saber ouvir-se, os outros e a Mãe Terra;

10) saber falar de modo construtivo;

11) saber sonhar com uma realidade melhor;

12) aprender a caminhar acompanhado das boas energias; e

13) saber dar e receber.

 

Para que uma transição a sociedades do Bem viver, já iniciada nos quatro cantos do mundo, seja amplificada de modo significativo, é preciso que ela seja atraente. A antecipação deste mundo do devir, que já é praticado e experimentado por um novo tipo de movimento social e cidadão, está criando este desejo em todas e todos de participar dele e de demonstrar que é realizável em grande escala. Devemos, portanto, construir uma verdadeira “aliança das forças da vida”, capaz não só de resistir às lógicas mortíferas, mas também de promover essa grande Transição a sociedades do Bem viver, na linhagem dos movimentos Cidades em Transição, Programa Educação Gaia, Rede Global de Ecovilas, movimento Nação Pachamama, Rede intercontinental de promoção da economia social solidária (RIPESS), o pulular educativo e empreendedor da entidade Gawad Kalinga, nas Filipinas, Ekta Parishad (o movimento gandhiano de Rajagopal) e Vikalp Sangham (grande rede de grupos e movimentos alternativos), ambos na Índia, e todas as iniciativas que manifestam em todo o mundo uma formidável criatividade cultural, ecológica, econômica, societal e cidadã.

No centro deste projeto de Transição para uma sociedade do Bem viver, há, contudo, um ponto cego importante que, não sendo plenamente entendido, conduz vários projetos transformadores ao fracasso ou a ter limitada sua potência criadora. Este ponto cego é que vários projetos alternativos na História terminaram por fracassar não pela força dos seus adversários (o capitalismo, o despotismo, o imperialismo, por exemplo), mas pela implosão causada pelas rivalidades fratricidas e pela insuficiência de energia interior criadora. Sempre encontramos, ao analisar as causas desses fracassos, o fato de que formas de mal viver, e também de maus tratos estavam sempre presentes no seio dessas movimentos. Ora, todo mal viver, coletivo ou individual, traduz-se por um déficit de energia interior que leva à busca no exterior da energia que falta. Isto se traduz pela rivalidade nas relações com o outro, a predação nas relações com a natureza e a depressão na relação da pessoa consigo mesma. Interessa, neste sentido, ver como problemas ditos “pessoais” desempenharam um papel decisivo nas bifurcações negativas de forças transformadoras: quer seja entre Danton e Robespierre, Marx e Proudhon, Lenin e Trotsky, Castro ou Mao Tse Tung, com diversos dos seus companheiros de revolução respectivamente. É longa a lista destas influências negativas de falta de sabedoria, que se traduzem em formas brutais de modos de organização e de liderança. Podemos sem dificuldade encontrar diversos exemplos disso em organizações atuais às quais pertencemos.

A necessidade de mudar esta dinâmica para dar mais lugar a movimentos que renovam a energia dos participantes que desejam mudar o mundo aqui e agora torna-se evidente. Existem diversos movimentos que, baseados na autogestão e na liderança compartilhada, valorizam a contribuição de todas e todos, confirmando esta necessidade cada vez mais consciente. Esses coletivos se tornam mais fortes e atraentes, em especial para a juventude, porque promovem laços de amizade enquanto força política. Esta política da amizade e da confiança repousa na benevolência de um/a em relação ao outro, no acolhimento das diferenças, mas também na exigência de responsabilidade individual e coletiva em coerência com os valores compartilhados. Estes coletivos, graças à sua capacidade de construir unidades na diversidade, se tornam uma força de ação maior para a transformação do mundo. Todos os exemplos que existem aqui e ali desde há decênios são sementes de renovação e são portadores de frutos abundantes, mas frequentemente desconhecidos, à exceção de exemplos políticos emblemáticos como os de Rosa Luxembourg, Rosa Parks, Wangari Matthaai, Leymah Gbowee, Rigoberta Menchú, Nelson Mandela, Desmond Tutu, Martin Luther King e Gandhi, cuja célebre citação resume a filosofia destes novos movimentos cidadãos: “Seja a mudança que você quer ver no mundo”, retomada pelo Papa Francisco na sua Encíclica Laudato Si.

A Alegria de Viver no seio do Bem Viver constitui a alternativa individual e societária às economias do mal estar e dos maus tratos. Assim, segundo as Nações Unidas, as despesas anuais com drogas e entorpecentes representam dez vezes as somas que permitiriam a satisfação das necessidades vitais da humanidade; e as despesas com armamentos, vinte vezes! Acrescente-se que a publicidade que participa desta economia do mal estar, vendendo promessas da ordem do SER (beleza, felicidade…) para melhor alimentar a corrida ao TER, é avaliada em mais de dez vezes as somas exigidas para erradicar a fome, permitir acesso a água potável ou aos cuidados básicos. O déficit energético provocado pela insuficiência de alegria interior deságua na compensação do que o filósofo Spinoza chamava de paixões tristes. Se, em termos ecológicos, o mal viver está também na origem de formas insaciáveis de produtivismo  e extrativismo, só uma sobriedade feliz (contanto que enfatizando este segundo termo) e uma economia do suficiente têm o poder de inverter este processo deletério. Mas isto só é possível se a qualidade de consciência e de presença da Vida nos permite este avanço.

Como podem os atores que colaboram para “a Grande Transição” melhor coordenar-se em escala global? O conceito de cidadania planetária oferece a possibilidade de um projeto mundial ambicioso, que permite a todas as energias criadoras presentes hoje de forma fragmentada, unir-se na sua diversidade e ampliar-se, pois os bens mais preciosos se multiplicam quando são compartilhados. Reunamo-nos, pois, em torno deste projeto comum! Trabalhemos para identificar os sinais de pertencimento à nossa grande família (logos, colantes, ferramentas comuns de comunicação, bandeira, etc.) a fim de torna-la visível, natural, evidente, incontornável. Esta visibilidade é essencial a fim de que seus membros, cada vez mais numerosos, possam dizer-se: sim, temos o poder de agir; sim, estamos em casa em qualquer lugar do planeta; sim, somos todas e todos cidadãs e cidadãos do Povo da Terra; sim, podemos nos organizar para garantir juntos a nossa autonomia em relação ao sistema dominante e para experimentar novas formas de vida que consideramos ecológica e socialmente as mais desejáveis!

De fato, nós ainda estamos na origem de uma célula fractal deste movimento cidadão mundial pelo Bem Viver. Mas todos os grandes projetos na História começaram assim e, se muito atores presentes, por exemplo, no Fórum Social Mundial se aprestam a co-construir um tal Projeto, ele poderá rapidamente se expandir. A Visão deve ser imensa, e a Ação levará tempo, dando pequenos passos para segui-la, em confiança e consciência, brilhando pela qualidade dos seus resultados e atraindo sempre mais energias criadoras do futuro. Este é um paradigma complexo inédito que estamos ajudando a vir à luz .

Ele supõe abordagens múltiplas e ações concretas, tentativas-erros, com uma visão comum, novos espaços de criação, novas relações, novas transversalidades, novas hierarquias de valores, uma nova linguagem a invertarmos com a colaboração de todas as pessoas criativas, em todos os campos – cultural, econômico, político, religioso, agnóstico, espiritual…!

Para servir a esta visão, a rede Diálogos em Humanidade propõe a criação de um Conselho de Segurança da Humanidade. Frente aos colapsos maiores, - tais como as crises financeiras, catástrofes ecológicas, explosões sociais, riscos ligados ao uso voluntário ou acidental de armas de destruição maciça, etc., - a ideia de construir, a partir da sociedade civil mundial, um Conselho de Segurança da Humanidade poderia ser um projeto comum aos nossos movimentos. Sobre este ponto o Conselho de Segurança das Nações Unidas está longe de estar à altura da sua missão de promover a paz com justiça. O fato de seus cinco membros permanentes, que deveriam ter a maior responsabilidade sobre o desafio mundial da paz, sejam também os cinco principais vendedores de armas, constitui uma trágica ilustração. Precisamos, portanto, construir as condições para que seja um autêntico “Conselho de Segurança da Humanidade”, combinando dois tipos de recursos. Por um lado o conjunto de atores susceptíveis de formular alertas e contra propostas relativas aos grandes riscos que corre a Humanidade: as grandes organizações da sociedade civil que atuam nos domínios ecológico, humanitário, social, tecnológico, mas também todo tipo de ator, de qualquer forma institucional, que possa compartilhar de forma descentralizada o conjunto de informações e propostas que possam alimentar esta perspectiva.

Para servir a esta visão, a rede Diálogos em Humanidade retoma a ideia da “Cúpula das Consciências” ocorrida durante a COP21 e propõe a criação de um Conselho de Segurança da Humanidade. Frente aos colapsos maiores, - tais como as crises financeiras, catástrofes ecológicas, explosões sociais, riscos ligados ao uso voluntário ou acidental de armas de destruição maciça, etc., - a ideia de construir, a partir da sociedade civil mundial, um Conselho de Segurança da Humanidade poderia ser um projeto comum aos nossos movimentos. Sobre este ponto o Conselho de Segurança das Nações Unidas está longe de estar à altura da sua missão de promover a paz com justiça. O fato de seus cinco membros permanentes, que deveriam ter a maior responsabilidade sobre o desafio mundial da paz, sejam também os cinco principais vendedores de armas, constitui uma trágica ilustração. Precisamos, portanto, construir as condições para que seja um autêntico “Conselho de Segurança da Humanidade”, combinando dois tipos de recursos. Por um lado o conjunto de atores susceptíveis de formular alertas e contra propostas relativas aos grandes riscos que corre a Humanidade: as grandes organizações da sociedade civil que atuam nos domínios ecológico, humanitário, social, tecnológico, mas também todo tipo de ator, de qualquer forma institucional, que possa compartilhar de forma descentralizada o conjunto de informações e propostas que possam alimentar esta perspectiva.

Por outro lado a criação de um “Conselho de Sábias e Sábios”, com a função de aconselhar e apoiar o Conselho de Segurança da Humanidade,  o que permitiria um diálogo exigente e transparente com o atual Conselho de Segurança da ONU. Um  tal Conselho da cidadania poderia manifestar, para além de todo interesse econômico, político ou religioso, uma consciência do futuro da nossa família humana.  Um primeiro desafio desse Conselho seria participar da mobilização pela Missão 2020, divulgada na revista Nature (junho de 2017). Nesse apelo diversas personalidades propuseram mudanças concretas em seis campos de ação que resultariam na diminuição significativa na emissão de gases-estufa. Isso permitiria à Humanidade ganhar cerca de vinte anos para prosseguir seu caminho de desaceleração da mudança climática. A partir desse apelo decisivo é preciso realizar a aliança de que precisamos entre as forças sociais e cidadãs, os grandes agentes científicos e espirituais, e os atores em posição de responsabilidade política ou econômica. Este poderia ser o primeiro assunto a ser tratado pelo Conselho de Segurança da Humanidade, numa incitação a mobilizar-nos coletivamente por uma agenda dinâmica, na perspectiva de ação da cidadania planetária.

 

 

Texto proposto em nome da rede internacional Diálogos em Humanidade, por Patrick Viveret, Débora Nunes, Marcos Arruda, Anne Marie Codur, Christine Bisch, Siddhartha, Laurence Baranski, Geneviève Ancel et Hugues de Rincquesen.