Ir para o conteúdo
Mostrar cesto Esconder cesto
Voltar a Blog
Tela cheia

Auroville: Uma utopia realizada?

24 de Setembro de 2021, 8:45 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
Visualizado 536 vezes

Auroville composição 2

Este artigo foi originalmente publicado em francês, na Revue Possibles, do Canadá (https://revuepossibles.ojs.umontreal.ca/index.php/revuepossibles/article/view/458)

 

Débora Nunes[1]

Há mais de 50 anos, nessa pequena cidade situada no sul da Índia, no estado de Tamil Nadu, é praticado o sonho da “unidade humana”, segundo o conceito do filósofo, político e místico indiano Sri Aurobindo (1872 – 1950). A cidade tem cerca de três mil habitantes de mais de 50 nacionalidades diferentes e quatro línguas oficiais: tâmil, francês, inglês e hindi. A tenacidade de Mirra Alfassa (1878 – 1973) companheira espiritual de Aurobindo, com apoio da UNESCO, foi capaz de atrair cerca de 300 jovens de várias partes do mundo para começar, em 1968, o que hoje chamamos de “ecovila”. Auroville é contemporânea de outra ecovila mítica, Findhorn[2] mais uma pérola no colar de realidades resistentes à homogeneização capitalista e patriarcal. Ambas surgiram nesse caldo de cultura da rebeldia que sempre esteve presente na humanidade e que fez ainda mais adeptos e adeptas ao longo dos últimos 50 anos. Essas pessoas e suas realizações constituem hoje uma grande teia de experiências alternativas pouco conhecidas, que essa publicação busca ressaltar e que provam o lema do Fórum Social Mundial de que “outro mundo é possível”.

O objetivo da "cidade da Aurora" era de propiciar que pessoas de diferentes culturas pudessem, juntas, viver em paz e em progressiva harmonia. Como propunha Sri Aurobindo, para isso era preciso penetrarem profundamente em seu mundo interior ao tempo em que desabrochariam para o mundo exterior como seres mais evoluídos. Na cultura de Auroville isso significa serem capazes de incluir as diferenças, de sentirem-se mais parte da comunidade humana do que de uma nação específica e buscarem incansavelmente uma convivência feliz e frutífera para todos/as. Nesse grande laboratório humano que é Auroville, tudo foi pensado para facilitar a transformação: desde a abolição da propriedade privada, passando por uma economia de pleno emprego, por dispositivos de educação gratuita por toda a vida, pelo acesso a meios de cura os mais variados, pela regeneração cooperativa da Natureza, pela compreensão do trabalho como manifestação de talentos livremente exercidos em prol do bem comum, pela liberdade afetiva e sexual, até inúmeras formas de estímulo ao autoconhecimento e à interiorização.

Auroville disponibiliza para seus habitantes e visitantes diversos caminhos para a evolução pessoal, entre eles o Yoga Integral, criação de Sri Aurobindo desenvolvida também pela “Mãe” (como Mirra Alfassa é conhecida pelo seu papel, por toda uma vida, como diretora do Ashram de Sri Aurobindo). O Yoga Integral é uma articulação de várias técnicas tradicionais do Yoga, mas sua característica principal é buscar alcançar um estágio superior de consciência sem se afastar do mundo, diferente do caminho tradicional dos iogues. Como líder independentista indiano, companheiro de Gandhi e Nehru, Sri Aurobindo revolucionou a compreensão do Yoga ao imaginar que o trabalho político em busca da evolução humana também é um trabalho de crescimento de consciência, contanto que suas premissas sejam praticadas no cotidiano. Dezoito anos  após a morte de Aurobindo, a “Mãe” decidiu criar uma comunidade cujos habitantes se comprometessem com a tese do Yoga Integral e vivessem e trabalhassem buscando serem pessoas melhores para si e para o mundo, contribuindo para a evolução da humanidade. Auroville é essa “comunidade teste”.

A primeira tarefa das e dos habitantes de Auroville foi começar a restauração de uma área de cerca de dois mil hectares, completamente desertificada e tirar daí seu sustento. O trabalho árduo de construir diques e plantar mais de dois milhões de árvores deu frutos, e hoje se vê uma extensa floresta em todo o perímetro urbano-rural. Enquanto moravam em cabanas e plantavam árvores, os/as aurovillianos/as aprendiam a grande tarefa de viverem juntos e de se autogovernar. Em meio a muitas línguas, culturas, religiões e visões pessoais de mundo, partilhavam o trabalho e a luta pela sobrevivência, tendo um sonho grandioso para si mesmos/as. De muitas maneiras o realizaram, e, ao mesmo tempo, como em todas as utopias, tudo resta a ser feito, pois quando mais se aproxima o horizonte utópico, mais esse projeto se alarga e se aprofunda.

Muitas das pessoas que fundaram Auroville ainda transitam por suas ruas com cabeleiras brancas esvoaçantes em motos, muitas vezes elétricas, e bicicletas, os modos mais comum de transporte na cidade. Transferiram para filhas e netos aquela centelha de rebeldia e idealismo, e aquela capacidade prática de fazerem o que está ao seu alcance, e um pouco mais. Para jovens que nasceram e cresceram na cidade é difícil entender o mundo do entorno, machista, predador e onde o dinheiro é rei pois ouviram muitas histórias e ao mesmo tempo são testemunhas dos desafios imensos que seus pais e mães enfrentaram.  Desafios esses que fizeram com que os 12 km de distância entre Auroville e a cidade indiana mais próxima, Pondicherry, parecessem a distância entre a terra e a lua.

Por mais de 50 anos elas e eles mantiveram seu compromisso de construir a cidade-protótipo da humanidade sonhada por Aurobindo e pela Mãe. Esses seres humanos cheios de defeitos, como qualquer pessoa, abraçaram um compromisso de evolução, e são perseverantes pois transformaram uma terra árida em uma floresta exuberante plantando árvores e cavando cisternas. Enfrentaram uma Índia conservadora e fizeram crescer uma terra libertária de homens e mulheres que trabalham de igual para igual e se dão o direito de amarem-se como quiserem. Construíram choupanas quando só isso era possível e com o tempo fizeram maravilhas de arquitetura, com técnicas inovadoras e materiais locais, honrando pela beleza as maiores paixões da Mãe: as artes e as flores. Fundaram escolas com pedagogias revolucionárias e integrativas que acolhem gratuitamente não só estudantes de Auroville, mas pessoas da região. Criaram um ambiente cultural riquíssimo com as artes mais vanguardistas em equipamentos de alto nível abertos ao público sem cobrar ingresso. Pois inventaram uma economia com parâmetros novos e cooperativos, com uma forma nova de produzir e consumir. Viabilizaram medicinas alternativas para seus habitantes e tecnologias próprias para cuidar da saúde. Promovem uma criatividade tecnológica impressionante, sempre adaptada ao território e amigável com a Natureza. Inventaram técnicas e práticas de autoconhecimento as mais variadas e até construíram um modo de fazer política sem políticos profissionais ...Enfim, muitos aspectos de uma utopia realizada, que além de criar um modo de vida próprio de alta qualidade, se abre para a população das comunidades vizinhas.

Esses visionários e visionárias e sua descendência criaram o futuro no presente, e é por isso que Auroville atrai tantos turistas que querem ver para crer. O turismo ajuda a sustentar o projeto pois permite que cheguem rúpias para sustentar os negócios criados pela comunidade e por pessoas empreendedoras que se dispõem a partilhar o lucro para manter a estrutura da cidade. Porém, passar alguns dias em Auroville é muito mais simples do que viver lá e por isso o projeto urbanístico que visava atingir 50 mil pessoas atraiu até hoje apenas cerca de três mil. Para ser aceita pela comunidade é preciso que a pessoa passe dois anos bancando seus custos e sendo testada em sua capacidade de servir à unidade humana. Depois, é preciso renunciar a ter propriedades; é preciso aceitar um salário muito modesto ainda que seja pra fazer o que gosta (14 mil rupias, ou 200 dólares, podendo chegar a 18 mil); é preciso renunciar ao consumismo...Mesmo sendo um lugar paradisíaco, a população de Auroville cresce pouco. As renúncias esperadas e as obrigações dificultam que pessoas que vivem o mundo “normal” escolham viver ali pra sempre.

 

Uma cidade espiritual

Quem de fato empreende a aventura de viver em Auroville são pessoas adeptas da proposta espiritual de Aurobindo e da Mãe. Pessoas que creem que a espécie humana está evoluindo em direção a uma raça mais consciente, “supramental”, mais integrada ao divino e assim se dispõe a viver pessoalmente esse desafio. Na Carta de Auroville, uma espécie de constituição da cidade escrita de próprio punho pela Mãe, é dito: “1. Auroville não pertence a ninguém em particular. Auroville pertence à humanidade como um todo. Mas para viver em Auroville é necessário ser o servidor voluntário da Consciência Divina. 2. Auroville será o lugar de uma educação sem fim, de um progresso constante e de uma juventude que nunca envelhece. 3. Auroville quer ser a ponte entre o passado e o futuro. Aproveitando todas as descobertas interiores e exteriores, Auroville dará um salto decisivo em direção a realizações futuras. 4. Auroville será um lugar de pesquisas materiais e espirituais para uma manifestação concreta e viva de uma Unidade Humana real.”

O ideal expresso na Carta da cidade é praticado com dedicação, mas com muitas falhas, claro. Para uma população que enfrentou tudo para construir o plano urbano do arquiteto francês Roger Anger, que propunha uma espiral representando a evolução humana na forma de uma galáxia, é difícil não se sentir “dona” da cidade, ao contrário do que prega o princípio 1. O plano desenvolve-se em torno de um ponto, uma velha e imensa árvore Banyan e de uma construção, o Matrimandir, o templo da mãe divina. Por três décadas a população trabalhou duramente para erigir a alma de Auroville, o Matrimandir, uma esfera magnífica de 36 metros, recoberta com parabólicas revestidas em ouro e pousada delicadamente sobre uma espécie de lótus de mármore branco onde uma água límpida corre perpetuamente. Essa é uma realização ciclópica para uma comunidade pobre, como era Auroville em seus começos.

No centro da cidade, arrodeado de jardins magníficos e silenciosos, o Matrimandir testemunha um mundo diferente, em que o espírito é central para a vida, onde a espiritualidade não divide as populações, por ser ecumênica, em que a beleza une a todos/as, em sua construção e manutenção. No salão circular central do Matrimandir, inteiramente branco, apenas o silêncio e um raio de sol captado engenhosamente no centro da esfera representam o caminho para o mundo espiritual. O templo é uma obra prima que ainda conta com 12 salas externas de meditação com base nas qualidades da humanidade, atribuídas pela “Mãe”: receptividade, progresso, coragem, bondade, generosidade, equanimidade, paz, sinceridade, humildade, gratidão, perseverança e aspiração. Milhares de visitantes têm 20 minutos para meditar no grande salão, gratuitamente e sob inscrição prévia. Sim, o Matrimandir é um presente para a humanidade, mas como não entender que a comunidade o proteja como sendo seu?

A ideia de servir à consciência divina, contida na carta acima, é muito comum para pessoas que se dedicam a uma religião, mas Mirra Alfassa tinha horror à ideia de que Auroville se tornasse uma religião e dividisse mais do que unisse a humanidade. Como então, não sendo parte de uma estrutura religiosa dogmática e tendo liberdade de percorrer o caminho espiritual que lhe for conveniente, manter-se firme na determinação de servir ao divino? Seriam os aurovilianos e as aurovilianas seres especiais, de alma elevada, capazes de tanto altruísmo? Não e sim.

Ao terem que se envolver e manter todas as estruturas físicas e sociais e respeitar as regras morais que criou, a população acaba por ter uma vida muito diferente, que favorece certa elevação. Se trabalham na educação, ela é libertadora; se na agricultura, ela é regenerativa; se nas infraestruturas, elas são ecológicas e pertencem a todos/as; se em um comércio, indústria ou serviço, pagam 30% do seu lucro à cidade e lidam com clientes - se não são turistas - que são quase coproprietários. Ou seja, o próprio trabalho em Auroville, seja ele qual for, tem algo do novo mundo que está sendo construído e cobra das pessoas o compromisso de servir a essa causa. Mas o cotidiano cobra seu preço: essa pequena comunidade humana, mesmo com origem cosmopolita e falando várias línguas em seu território, perde privacidade pela convivência contínua em um pequeno espaço geográfico.  Isso impede o anonimato e causa conflitos, como em qualquer cidade pequena do mundo, mas tem também a vantagem de favorecer o espírito de comunidade e a ajuda mútua, sobretudo porque uma sólida base espiritual é compartilhada.

 

Uma cidade igualitária, mas nem tanto.

Para ser aceita como auroviliano/auroviliana, o/a pretendente deve passar dois anos em observação na condição de newcomer que trabalha sem remuneração e deve bancar sua estadia, mesmo usufruindo de algumas maneiras da nutrição no sentido largo que a cidade oferece. Quando uma pessoa adquire a cidadania, ou seja, é acolhida para viver na cidade e ser auroviliana, ela escolhe onde vai trabalhar, oferecendo o melhor de si, lá onde a comunidade mais precisar. A cidadania oferece um lugar para morar, livre acesso a toda a infraestrutura de Auroville e um salário que circula através do cartão Aurocard. O salário de cerca de 200 dólares é o mesmo para qualquer função, diferenciando-se apenas pelas horas trabalhadas. A cidadã ou cidadão passa a ter educação, cultura, saúde e transporte subsidiados e pode fazer suas compras nos mercados sustentados pela cidade, com seu cartão de salário. Têm uma vida boa, em um lugar bonito e ecológico, mas dificilmente pode viajar ao estrangeiro, por exemplo, se não tem alguma renda vinda de fora de Auroville, pois o salário é insuficiente para isso.

Aí está uma das maiores críticas que se faz a Auroville: ser uma colônia de férias de brancos europeus new age. A crítica faz sentido, mas é injusta em muitos aspectos. Primeiro porque mais da metade da população da cidade é indiana, há gente de todas as cores, e que, se há muitos europeus, há gente branca dos mais diversos lugares do mundo, inclusive de lugares que sofreram a colonização europeia. Segundo, porque quando esses europeus, americanos, japoneses, saíram de seus países em 1968 eles não pensavam que poderiam tornar-se herdeiros nas moedas fortes de seus países de origem. O aluguel de um pequeno apartamento em Paris, New York ou Tokio significa uma fortuna em rúpias. Essas pessoas são ricas e é assim que os projetos da comunidade têm muitas doadoras e doadores, é assim que é comum que aurovilianos de origem europeia viajem no verão tórrido de Auroville para visitar a família, enquanto quem não tem herança ou apoio financeiro familiar fica por lá mesmo.

Do mesmo modo, a condição de empreendedor/a em Auroville aufere condições privilegiadas de vida. Se o empreendimento atende turistas, é comum que seja muito bem sucedido e produza muitos lucros. Esses empreendimentos são observados de perto pelo grupo de trabalho responsável por esse tema, garantindo que repassem para a cidade aquilo que não é reinvestido ou que garante o sustento da pessoa proprietária. Entrevistas e observação do comportamento de importantes empreendedores/as de Auroville mostram um comportamento comumente muito diferente dos capitalistas em geral: orgulho de repassar recursos para o sustento da cidade, vidas simples, mesmo que em condições materiais geralmente superiores que a média da população. É assim que o patrimônio imobiliário da cidade recebe investimentos de pessoas que constroem ou reformam as residências onde moram, sabendo que o que foi investido não lhes pertence, mas à cidade.

Outra crítica que se faz a Auroville é sua situação privilegiada em meio a dezenas de vilarejos indianos muito pobres. Ao fato de que muitas pessoas fazem trabalhos domésticos para as famílias aurovilianas e têm salários muito baixos. É difícil concordar ou discordar. Sim, a condição de vida das pessoas em Auroville no geral é bem melhor que a dos camponeses pobres do entorno, mas a cidade oferece cerca de 5 mil empregos para essas pessoas em seus empreendimentos e residências. Sim, o luxo de ter uma doméstica é algo comum na elite indiana e não é muito compreensível em uma cidade que se propõe igualitária e humanista, sobretudo se a condição de doméstica é informal e sem direitos trabalhistas, como no resto da Índia. Por outro lado, a extensão do trabalho humanitário realizado por pessoas, instituições e movimentos cidadãos em Auroville junto às aldeias do entorno é imenso, contam-se dezenas de projetos (Britto, 20xx). Em meio às suas contradições, Auroville segue buscando seu caminho.

 

Uma cidade autossuficiente? Não

Autossuficiência seria a capacidade de sustentar-se em energia, água, alimentos e moradia, serviços essenciais como saúde, educação e cultura, renda para sustentar sua população, e assim por diante. Nenhuma cidade do mundo vive a autossuficiência, mas Auroville tem avanços importantes nesse campo. A começar pela energia, que ela exporta para outros lugares pois seu conjunto de produção eólica é suficiente para seu uso e ainda sobra, usando também a energia solar e biomassa. A água é um problema particular da cidade, pois seu lençol freático, mesmo tendo acumulado milhões de metros cúbicos desde que a cidade foi fundada, pelo reflorestamento empreendido, vem sendo invadido pela água do mar. Assim, Auroville inova criando tecnologias de reciclagem de água através de vórtices purificadores, produz uma água dinamizada puríssima que cura e é orgulho dos e das habitantes, mas gere o tempo todo a possibilidade de escassez.

Sobre os alimentos, Auroville possui um conjunto de fazendas de propriedade da cidade que produzem uma gama variada de produtos, de cereais a queijos, de vegetais e frutas a algas hiper nutritivas, porém essa produção está longe de ser suficiente para alimentar completamente a cidade, embora uma parte também seja exportada. Um destaque da cidade é a Solar Kitchen, uma cozinha comunitária com um imenso fogão solar, que serve mais de duas mil refeições por dia e onde a comunidade se encontra cotidianamente. Uma comida de altíssima qualidade, com alimentos frescos e orgânicos oriundos das fazendas da cidade, cardápio variado, instalações de excelência... tudo isso vendida a preços módicos. Os cafés e restaurantes de Auroville, como em qualquer cidade turística, são de ótima qualidade e preços comparáveis ao resto da Índia, mas há restaurantes e cafés que só transacionam com o Aurocard e por isso são inacessíveis aos turistas, entre eles outra instituição auroviliana, como a Solar Kitchen: o La Terrace Café.

Em termos de moradia, a criatividade da população nas tecnologias ecológicas é muito grande, trabalhando o bambu, a terra em várias metodologias, assim como as formas tradicionais de construção dessa região da Índia. Se as habitações fazem falta esse problema é pequeno em relação a maior parte das cidades do mundo e Auroville tem um conjunto arquitetônico de impressionante beleza e criatividade. Instalações ecológicas nas moradias como energia solar, reciclagem e compostagem de lixo, captação de água de chuva, entre outros, são comuns.

Sobre o autossustento em serviços essenciais como saúde, cultura e educação, já foi expresso mais acima seus avanços e pode-se dizer que apenas os serviços de maior complexidade, como atendimento especializado em hospitais, acesso a universidades, ou instalações culturais complexas, não existem em Auroville. Para uma cidade de apenas três mil habitantes, é uma capacidade de serviços completamente fora do comum. No campo artístico chama a atenção a presença de cinemas, vários auditórios de excelente qualidade, teatros, galerias de arte e ateliers privados e públicos de muitas técnicas. A prática da reciclagem, e sobretudo da reciclagem artística, é um dos destaques da criatividade da população.

O comércio variado necessário para uma vida dos tempos modernos não está presente em Auroville. A priorização de padarias e mercados de pequeno e médio porte em que não circula dinheiro local, já que tudo é transacionado com o Aurocard, faz com que o atendimento às necessidades mais amplas da população seja feito em Kullapalayam, vilarejo vizinho, ou Pondicherry, para onde passam linhas regulares de ônibus. As instalações comerciais de atendimento ao turismo são de alta qualidade e viabilizam a venda da produção artesanal e industrial de Auroville. A criativa indústria da cidade, onde se destacam a moda, alguns itens alimentícios, artigos medicinais com plantas da tradição ayurvédica indiana e outros como incensos, produtos de higiene pessoal, instrumentos musicais, cerâmica – é completamente insuficiente para suprir necessidades do dia-a-dia, porém, como em outros itens, é uma produção impressionantemente dinâmica para uma cidade tão pequena.

A questão da produção local de renda para os habitantes é, como para a maioria esmagadora das pequenas cidades do mundo, um desafio, já que parte importante da renda da cidade vem de fora, seja de contribuições do governo da Índia, seja de instituições internacionais. É importante relembrar que Auroville tem um estatuto muito particular na Índia: a influência de Sri Aurobindo e da Mãe e a persistência dos fundadores conseguiram que o governo doasse parte da terra onde se erigiria Auroville e permitisse que o estatuto da cidade laboratório humano lhe desse certa autonomia em relação ao contexto legal do país. Ao mesmo tempo, o estatuto de um território à parte faz com que o governo indiano contribua com a manutenção da cidade. A outra grande fonte de renda é o turismo, principal base econômica da cidade com oferta variada de hotéis, pousadas e restaurantes.

 

A anarquia divina como regime de governo

O imaginário político da população de Auroville criou uma forma para o conceito vago de “anarquia divina” proposto pela Mãe durante o processo de fundação. Nela governa-se por meio de grupos de trabalho eleitos por uma assembleia de habitantes, com uma espécie de coordenação geral da qual faz parte uma representante do governo da Índia. Para os temas em que em geral nas cidades ao redor do mundo se vê políticos comandando a vida da população, encontram-se grupos de trabalho dos próprios habitantes: de água, energia, planejamento, economia, etc. A Prefeitura não tem um ou uma prefeita, é apenas a sede do governo, de seus arquivos, órgão centrais e das reuniões dos grupos de trabalho.

As grandes decisões da comunidade são tomadas nas Assembleias de Habitantes. No silêncio com o qual se inicia ou as vezes se interrompe a assembleia em momentos de conflito, expressa-se com um pouco mais de clareza a “anarquia divina”. Nesses momentos, convida-se os e as participantes a se conectarem com uma inteligência maior do que aquela do seu próprio ego. Permite-se abrir o coração para conectar-se com a divindade em si mesmo/a e assim espera-se encontrar a chave para o bem governar. O que se assiste é uma grande lentidão para tomada de decisões, pois busca-se formar consensos. Observa-se certa divisão entre pessoas mais apegadas aos princípios originais da criação de Auroville e outras que pensam ser necessário atualizar esses princípios. Essa divisão, entretanto, pode depender dos temas: pessoas que querem manter os princípios originais do projeto urbano da cidade podem ser as que querem atualizar os modos econômicos. Nada é simples.

Os muitos desafios de Auroville para se manter fiel aos princípios de ser um testemunho da ideia de unidade humana universal e, ao mesmo tempo, de integrar-se à realidade circundante, desde o entorno rural dos vilarejos indianos até a dependência do consumo dos turistas (e de seu voyerismo), exigem uma visão não linear de mundo. A complexidade, a integração de desafios contraditórios, a busca da não dualidade são caminhos de futuro testemunhados cotidianamente na cidade. E assim a experiência segue, com seus avanços e recuos, momentos de euforia e outros de desânimo. E já dura 50 anos.

 

Bibliografia:

 

https://auroville.org/

DECOUSTE, Michèle (2002). Auroville, Le Lien D´Or. Vers l´Unité Humaine. Video, 52 min.

Mother and Sri Auroville Plans for Founding Auroville (brochura, sem data)

L´Agenda de Mère.  https://agendamother.wordpress.com/category/language/french/

NUNES, Débora (2018). Auroville, 2046. Après la fin d'un monde" https://cirandas.net/articles/0039/8829/LIVRO%20%20Auroville_2046_FRANCES%2002-09.pdf

NUNES, Débora (2018). Pós-materialismo: por uma política não-cartesiana. https://outraspalavras.net/eurocentrismoemxeque/pos-materialismo-por-uma-politica-nao-cartesiana/

The Auroville Handbook (2018). Edição comemorativa dos 50 anos de Auroville.

The Auroville Experience (2006). Selections from 202 issues of Auroville Today, November 1988 to November 2005, realizado  pela equipe  do jornal Auroville Today.

Towards a Sustainable Future (2004). Auroville Centre Scientific Research. Video, 52 min.

SRI AUROBINDO (2018). A Vida Divina: Uma Visão da Evolução Espiritual da Humanidade (Tradução: Aryamane). São Paulo: Editora Pensamento.

  

[1] A autora desse artigo é pós doutora em Urbanismo, professora da Universidade do Estado da Bahia e fundou a Escola da Sustentabilidade Integral, que funciona em português, francês e inglês e tem como base a ideia de “transformar-se para transformar o mundo”. Débora Nunes visitou três vezes Auroville e na última visita, que durou sete meses, foi professora visitante da Universidade de Pondichery e realizou pesquisas em Auroville como exemplo de cidade do futuro. Os resultados de suas pesquisas são em parte relatados nesse artigo e basearam o livro “Auroville, 2046. Depois do fim de um mundo”, traduzido em sete idiomas e acessível pelo link https://cirandas.net/articles/0038/3353/Auroville%202046%20Por.pdf

[2]   Esta comunidade de cerca de 400 pessoas está localizada à volta da Baía de Findhorn, no norte da Escócia. Fundada em 1962 por Peter e Eileen Caddy e Dorothy Maclean, essa ecovila foi inicialmente conhecida pelo seu trabalho com plantas e comunicação com a natureza. Atualmente, a Fundação Findhorn é um centro internacional de educação espiritual e holística que trabalha em estreita colaboração com outras organizações e indivíduos da comunidade. Partilha com a comunidade de Auroville a convicção de que a humanidade está envolvida num processo de expansão evolutiva da consciência, gerando novos comportamentos civilizacionais e uma cultura planetária imbuída de valores espirituais. Para mais informações: https://www.findhorn.org

 


Categorias

Política, Articulações internacionais, Desenvolvimento territorial, Produção, comercialização e consumo, Meio-ambiente

0sem comentários ainda

    Enviar um comentário

    Os campos são obrigatórios.

    Se você é um usuário registrado, pode se identificar e ser reconhecido automaticamente.

    Cancelar