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Cidades do Futuro: incorporando o espírito feminino

1 de Maio de 2015, 7:27 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Em post anterior discuti a emergência de um novo paradigma de pensar e viver e adiantei que esse paradigma se aproxima de um modo feminino de estar no mundo.  Essas divisões entre formas masculinas e femininas de existir estão vinculadas à longa história humana, e particularmente aos cerca de 200 mil anos em que vivemos em meio à Natureza, antes da invenção das cidades. Nosso mundo urbano tem menos de 10 mil anos e portanto nossos comportamentos estão muito vinculados ao nosso passado anterior de caçadores e coletores nômades. Dos condicionantes biológicos dos dois gêneros humanos decorrem diferentes habilidades intelectuais, comportamentos, particularidades emocionais, assim como uma relação diversa com o mistério da vida e com a espiritualidade.

Nos tempos pré-urbanos, antes da propriedade privada e da dominância masculina, as tarefas do existir construíram habilidades que definiram os papéis culturais que se consolidaram posteriormente. As mulheres, por esse longo passado, são mais aptas à uma percepção multidimensional do mundo e a um foco nos relacionamentos, mais atentas à distribuição equitativa dos recursos pela sua condição de cuidadora da família e da comunidade,  mais compassivas e focadas nas necessidades de cada um pelo convívio com pessoas em situação de fragilidade; mais relacionadas ao cuidado dos espaços de vida e mais habilitadas para uma inteligência intuitiva e um agir inspirado na emoção e na negociação. Os homens, por sua vez, estão mais habilitados para uma percepção focada, lógica e objetiva do mundo, para um agir mais agressivo, incluindo a competição, e  são mais aptos à abstração e ao raciocínio espacial que os habilita para a conquista de novos espaços. Essas características de gênero são uma média e podem se revelar tanto em homens como em mulheres, mas são, claro, mais comuns em cada sexo, por condicionantes biológicos e culturais discutidos a seguir.

O aparato hormonal e físico das mulheres às destinaram à geração e à manutenção da prole. O período gestacional final diminui a mobilidade feminina, assim como o aleitamento e o cuidado com as crianças pequenas. Como as  mulheres na pré-história engravidavam quase a cada ano, era normal que suas vidas decorressem majoritariamente no território de repouso de povos nômades, onde estavam também os mais velhos, os incapacitados e os doentes. Já o aparato hormonal e físico dos homens lhes dá mais força física e também mais agressividade, pela presença da testosterona. A atividade da caça, importantíssima para a alimentação da tribo antes da invenção da agricultura e do pastoreio,  implicava na conquista de territórios e também na sua proteção, evitando que os mais fracos da tribo ficassem expostos à agressão de animais selvagens. 

Para ilustrar essas diferenças a partir de inúmeros estudos que comparam padrões masculinos e femininos, usarei a diferenciação feita por David BAKAN, na qual os homens, pela sua força física, tenderiam à uma “ação enérgica”, enquanto que as mulheres tenderiam a uma “ação relacional”, advinda de sua capacidade reprodutiva. LECOMPTE, em seu livro “A bondade humana” (2012), traz os estudos de EAGLY e CROWLY, que testam, em situações reais, as diferenças estabelecidas por Bakan: a ação generosa de homens e mulheres se distinguiriam em: os homens estariam mais aptos à ação generosa em situações de urgência e de perigo e as mulheres mais aptas ao apoio emocional e cuidados concretos continuados para pessoas em situação de sofrimento.

Assim, as mulheres historicamente ocuparam-se da colheita de plantas comestíveis das redondezas do local de pouso, escolhendo os grãos maiores, as raízes mais saborosas, as frutas mais doces e os alimentos mais digestivos. É a elas e às suas observações, que devemos a descoberta da agricultura.  Do mesmo modo, elas caçavam e depois domesticaram pequenos animais, e os mais dóceis, abrindo caminho para o pastoreio. Os homens assumiram outros papéis que exigiam maior força física e estão intimamente ligados às tecnologias de transformação: o corte de árvores e a construção de abrigos, a fabricação de ferramentas para caça e para tratamento de couro, ossos, etc. e posteriormente também a metalurgia. Essas tecnologias, favorecidas pela força, exigem cálculos abstratos, de cunho lógico e matemático, também desenvolvidos por eles.   

Do funcionamento hormonal também se pode deduzir motivações para diferenças de  habilidades e comportamentos: as mulheres têm uma biologia cíclica, com grandes altos e baixos hormonais e uma grande flexibilidade para lidar com modificações físicas, seja do ciclo hormonal mensal, seja da gravidez. Ambos provocam transformações expressivas no corpo que volta mais ao menos ao mesmo ponto, passada a menstruação ou o parto. Essas modificações são provocadas por fatores internos, misteriosos, o que faz as mulheres mais perceptivas das mudanças invisíveis, mais resilientes fisicamente e mais atentas às alterações emocionais. Os homens têm uma biologia simples, contínua, com alterações hormonais provocados apenas por fatores externos, visíveis: principalmente perigo ou excitação sexual. Se um homem devesse passar pelas mudanças hormonais colossais pelas quais passam as mulheres todos os meses, teriam muita dificuldade de adaptação, pois não são biologicamente capacitados para isto.

Várias habilidades femininas são advindas do fato das mulheres terem historicamente passado a maior parte do tempo em meio às crianças, velhos e doentes, no espaço restrito do entorno da tribo, acampada ou em movimento, enquanto os homens deslocam-se em áreas mais longínquas e vivem em situação de perigo. Pesquisas comprovam que o cérebro feminino é mais perceptivo de detalhes e emoções, mais capacitado para multitarefas simultâneas, assim como focados nos relacionamentos e na comunicação. Do mesmo modo, identificam uma grande capacidade de foco na tarefa nos homens, assim como maior capacidade de identificação espacial e de abstração, advindas das longas horas na atividade da caça, implicando em espera e observação silenciosa, projetando o comportamento da caça, para agir em seguida, de modo rápido e agressivo.

É também em função de sua presença doméstica que as mulheres se envolveram na culinária e na distribuição equitativa dos alimentos. A força física e a testosterona destinaram aos homens atividades mais agressivas e extenuantes. Essas atribuições, favorecidas pela biologia e continuadas por milênios e milênios, acabam por definir habilidade cerebrais diferentes. O tipo de inteligência de cada sexo adviria desses papeis históricos cotidianos: as mulheres em um mundo restrito que demanda dela muitas tarefas diferentes (cuidar da prole, da comida, da agricultura e de atividades manuais diversas com a cerâmica e a tecelagem), um raciocínio multidimensional, capaz de efetuar diferentes atividades ao mesmo tempo. Esse raciocínio é também muito concreto, relacionado com a experiência do aqui e do agora. Os homens, por sua tarefa prioritária da caça em campo aberto e em sintonia com outros homens (para evitar o perigo, prever o comportamento futuro da presa e abatê-la), teriam desenvolvido uma capacidade de foco, de abstração, de raciocínio espacial e lógico. Tanto para as tarefas das mulheres quanto para as dos homens ao longo desses 200 mil anos, a qualidade do planejamento era importante, sendo que nas tarefas femininas, o planejamento principal era de longo prazo, no que diz respeito a sobrevivência e educação da prole, e para os homens o planejamento de curto prazo, na realização das tarefas imediatas, como a proteção da prole dos perigos do entorno.

Seja por herança genética modelada pela longa história, portanto por fatores objetivos biológicos e culturais, seja por uma tendência cosmológica, imaterial e intemporal, definida por uma tendência à construção do movimento harmônico a partir de polos opostos (yin e yang), homens e mulheres são muito diferentes. Vê-se hoje uma aproximação dos papeis sexuais, ou seja, os homens desenvolvendo mais suas habilidades femininas e vice-versa, sem que, entretanto, percam suas características intrínsecas. Esse movimento é doméstico, pessoal, mas também coletivo e global e irá  influenciar os modos de pensar, de agir e de construir cidades mais justas, democráticas e sustentáveis.

Os atributos masculinos, sem a contraposição e a complementaridade dos atributos femininos, se esgotaram para nos fazer avançar em relação ao que até aqui evoluímos como humanidade. A masculinidade exacerbada modelou uma sociedade predadora e competitiva, focada nas coisas e no seu funcionamento e interessada principalmente na conquista e na acumulação.  Esse desequilíbrio se torna hoje uma ameaça. A emergência do espírito feminino integra valores historicamente desenvolvidos pelas mulheres e vão trazer a masculinidade para seus atributos positivos das forças de ancoramento, de proteção e de maravilhamento do homem diante da potência criativa e de gestação do feminino. A combinação da força física e da intensidade de ação masculinas com a resistência e a flexibilidade femininas; a capacidade de foco masculina com a natural interdisciplinaridade feminina; a objetividade e lógica com a intuição e a emoção; a exploração de territórios com sua manutenção, e, sobretudo, a combinação de uma política baseada na liderança individual com outra baseada na coordenação de talentos dentro de uma gestão coletiva, irão construir sociedades mais equilibradas, nas quais as complementaridades entre os dois gêneros humanos promovem harmonia e desenvolvimento pessoal e coletivo.

 


Categorias

Política, Povos e Comunidades Tradicionais, Mulheres, Cultura

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