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Economia Solidária: breve aproximações do conceito e história

8 de Março de 2024, 14:45 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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 Por Débora Nunes

O conceito de Economia Solidária surgiu na França nos anos 1990, dentro de uma discussão maior acerca das transformações econômicas do final do século XX, em que, ao crescimento econômico vertiginoso não correspondeu um aumento generalizado do bem-estar dos homens e mulheres, mas, ao contrário, um aumento do desemprego e da exclusão social. Outros conceitos, mais conhecidos que Economia Solidária, se desenvolveram dentro de uma lógica de questionamento da economia liberal (século XIX) e neoliberal (século XX), mas também de interação com ambas, a exemplo de Terceiro Setor, Economia Social e Economia Popular. Como esses quatro conceitos são muito próximos e podem ser confundidos na prática, utilizaremos as definições de França (2001) para avançarmos em seguida na conceituação de Economia Solidária.

Segundo França, o Terceiro Setor seria o “universo do privado, porém público”, que aparece  num contexto anglo-saxão, onde predomina a idéia da filantropia para fazer face aos problemas sociais e onde, particularmente nos EUA, a ação redistributiva das organizações sem fins lucrativos é paralela à ação estatal nesse campo. A Economia Social é formulada em um contexto europeu, no qual o Estado-Providência é a base do enfrentamento dos problemas sociais e onde se desenvolve uma economia com fins sociais baseada em grandes fundações, associações e cooperativas, que atuam hoje, segundo França, como ‘‘apêndice do Estado”. Já a Economia Popular seria oriunda do contexto latino-americano, tendo tênue fronteira com a economia informal e se constituindo em “formas de sobrevivência da população mais pobre”, em que o registro da solidariedade está na base das atividades econômicas, praticamente como um prolongamento da solidariedade familiar ou comunitária.

A Economia Solidária tem afinidades com os conceitos anteriores, mas também particularidades que a afirmam como conceito e prática particulares. Consistiria, ainda segundo o mesmo autor, em “iniciativas apoiando-se sobre atividades econômicas para a realização de objetivos sociais que concorrem a ideais de cidadania”. Ela tem herança histórica comum com a Economia Social, ou seja, européia, e dá ênfase especial ao aspecto democrático da organização do trabalho, em que predominam o estatuto associativista e, em alguns casos, o cooperativista. As iniciativas de Economia Solidária articulam a dimensão econômica, social e política em uma só ação coletiva e são experiências que se abrem para o espaço público, no sentido da busca de transformações sociais amplas.

Nessa busca de transformações sociais gerais baseadas em iniciativas particulares, o movimento sindical brasileiro produziu uma visão particular e esclarecedora sobre a Economia Solidária ao  afirmar: “Não se trata somente de gerar oportunidades de trabalho e renda. Trata-se de construir novas relações sociais baseadas nos valores da solidariedade e da cooperação, que fortalecem a participação do cidadão na sociedade” (Revista Debate Internacional – CUT, 2000).  Nesta idéia de construção de “novas relações sociais” está embutida a reorganização de um projeto de transformação social através da mobilização da sociedade civil, que se traduz tanto do ponto de vista da mudança do modelo político, visando à superação da democracia representativa em busca da democracia direta/participativa, quanto da mudança do modelo econômico visando reverter prioridades do Estado e incorporar critérios sociais à  idéia de eficácia econômica.

Com o intuito de contribuir para uma compreensão mais precisa do que diferenciaria a Economia Solidária de outras iniciativas no mesmo campo econômico e social, foram  levantados (consultando-se materiais de divulgação de inúmeras experiências que reivindicam o conceito) alguns princípios que podem ser observados como norteadores dessas iniciativas e que ajudam a caracterizá-las, mesmo que não estejam presentes em todas elas:

  • motivações de justiça e solidariedade em todas as atividades implementadas e vividas coletivamente, tanto nas de produzir e consumir  bens e serviços, como nas de distribuí-los  e comercializá-los;
  • referências de êxito distintas daquelas do capitalismo, já que a reciprocidade e a fraternidade nas relações interpessoais são almejadas;
  • processos de autogestão e autonomia, implicando lógicas de participação e estímulo ao engajamento;
  • criatividade e soluções alternativas  face aos problemas e negócios implementados, visando à inovação tecnológica, gerencial e de relações humanas;
  • preocupação com o meio ambiente e com um progresso sustentável para a geração seguinte, preservando os meios naturais hoje existentes.

 

Economia Solidária: apreendendo seu contexto

 

A partir desses referenciais gerais e antes de abordar a experiência concreta que tentaremos descrever e analisar, passaremos a discutir o contexto em que surgiu este conceito. Por que a expressão “Economia Solidária” surgiu no final do século XX, fazendo renascer antigas utopias? Há aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais a serem observados, que, mesmo sendo imbricados, podem ser desdobrados com o intuito de propor um melhor entendimento do fenômeno. Do ponto de vista econômico, observa-se uma vinculação com o aumento do desemprego; do ponto de vista político, com o enfraquecimento da idéia de um Estado do Bem-Estar Social; do ponto de vista social, com a intranqüilidade que representa a junção dos dois problemas citados, e do ponto de vista cultural, com pretendidas modificações identitárias que estariam em gestação no momento.

 

Grande parte dos países do mundo — como é o caso brasileiro — passaram a apresentar altas taxas de desemprego ao longo da década de 90[ii].  Tais índices são contemporâneos de uma economia globalizada, gerida numa ótica de livre comércio  radical. A globalização liberal, mesmo não sendo uma novidade, foi atualizada na última década pelas operações on-line, que multiplicaram o alcance dos contatos internacionais, favorecendo o mundo das finanças e a deslocalização das empresas, fatores que, por sua vez, realimentam as origens do desemprego. Há uma certa convicção, entre muitos autores que se debruçam sobre o tema, de que os empregos eliminados ao longo do processo de reestruturação produtiva e de crise econômica das últimas décadas do século XX dificilmente retornarão, a menos que ocorra um expressivo crescimento da atividade industrial e dos serviços. Por isso, tem surgido com alguma expressão a idéia de que se deve buscar ocupação e não necessariamente emprego, trazendo à tona a discussão sobre alternativas de organização dos trabalhadores por uma via autônoma e solidária como as iniciativas de Economia Solidária, capazes de melhorar as condições de vida da população envolvida.

 

           Concomitante a isso, tem-se a crise do Estado de Bem-Estar que veio aprofundar o difícil quadro social da nossa época. Esta crise é advinda da situação falimentar de muitos estados nacionais, mas também da intensa campanha ideológica feitas nas duas últimas décadas pelos arautos do neoliberalismo. O esvaziamento do modelo de políticas sociais intensivas de caráter público desmonta uma das soluções antes vistas como possíveis para as crises periódicas do capitalismo. Certamente o esvaziamento desta alternativa, a falta de perspectiva de retomada de políticas de pleno emprego ou de redução do desemprego no curto prazo teriam permitido o fortalecimento de uma certa tendência, em particular de solidariedade. Junta-se a isso a importância cada vez maior que a organização da sociedade civil, de forma autônoma — nem via Estado, nem via mercado —,  vem tendo, e vê-se o surgimento de práticas de solidariedade civil, que, mesmo não sendo novas na história, tomam outro significado e dimensão neste momento.

         

A essas questões econômicas, políticas e sociais junta-se uma dimensão cultural que poderia ser entendida como pano de fundo de todos os fatores citados anteriormente. Desse ponto de vista, a Economia  Solidária seria um renascer de utopias e de práticas que vêm dos  primórdios da humanidade e atravessam toda a história humana: o que Marx e Engels chamaram de “comunismo primitivo”; as corporações profissionais da idade média; as organizações  pré-sindicais do tipo guildas; as experiências ditas de “socialismo utópico”, de Saint Simon, Owen e Fourier; os diversos tipos de cooperativas de produtores, chegando às comunidades hippies de “paz e amor” e às comunidades esotéricas da atualidade. Em todas essas experiências, que embora tão diferentes procuram estabelecer uma produção coletiva com base na solidariedade, podem-se identificar elementos do que estamos chamando hoje de Economia Solidária.

 

Dentro dessas experiências que podem ser consideradas “antepassadas” da idéia atual de Economia Solidária,  os ideais socialistas — de propriedade coletiva e emancipação humana dos valores de competição e exploração ­— são, sem dúvida, uma contribuição das mais importantes. A diferença principal entre a prática real do socialismo vivido no século XX e as demais experiências citadas é que no campo socialista se tentou estipular uma tática e uma estratégia para generalizar a proposta numa escala nacional (e mesmo internacional), enquanto as outras experiências foram implementadas de forma pontual. Esse processo de generalização se baseou na tomada do poder político liderada por um partido e na manutenção desse poder via um Estado socialista. Na tentativa de generalização de uma prática, feita de forma impositiva, o socialismo real deixou subjacente a idéia de que os fins justificam os meios. O fracasso das experiências do socialismo real significou uma fragilização dos meios utilizados e, também, dos fins, levando aqueles que lutaram por essa idéia de volta a uma encruzilhada, a partir da qual é necessário reconstruir o caminho.

 

O ressurgimento, na atualidade, dessa idéia antiga de uma Economia Solidária parece estar vinculado também ao processo de hiperdesenvolvimento dos valores capitalistas: a propriedade, o individualismo e a competitividade. Ao chegar ao paroxismo do consumo e ao reino da propaganda, da mercantilização de todos os aspectos da vida humana, da competição exacerbada, da corrida contra o relógio, a sociedade demonstra a vacuidade desses valores como fundadores das personalidades através das doenças ditas “modernas”: stress, depressão, síndrome do pânico, anorexias, etc. Para muitos, este sentimento de  inadequação se manifesta também sob a forma de um vazio existencial angustiante.

 

A reação social a esse estado de coisas vem se dando pelo ressurgimento do ideal de solidariedade, retomando-se bandeiras históricas. Resgatam-se valores da Revolução  Francesa, liberdade, igualdade e fraternidade, e o ideário socialista do homem como capital mais precioso, mas com uma compreensão nova. A idéia de uma nova espiritualidade, que implica a busca de uma harmonização pessoal com o universo e com os outros,  é a novidade. Todos os rebeldes de antes precisaram romper com a espiritualidade porque ela era manipulada pela religião como instrumento de poder. Num momento em que na maior parte dos países do mundo  já se completou a desvinculação Igreja-poder, via Estado laico, a espiritualidade toma um aspecto de escolha pessoal, que não precisa mais ser contestada quando se questiona o status quo. Dessa forma, ela pode revelar todo seu potencial revolucionário de busca de uma existência plena, já que é impossível haver harmonização pessoal junto com miséria, violência, desigualdade e injustiça.

Certamente a idéia de um “homem novo” não é privilégio dos tempos atuais. Os ideais republicanos e socialistas falavam de um  homem novo, solidário, que seria forjado, socialmente, pela razão. O “homem novo” de hoje seria forjado, ao mesmo tempo, por arranjos sociais novos, mas também por uma espiritualidade revalorizada, definidora da “Era de Aquários”. Certamente, no mundo hipermercantilizado em que vivemos, esta “espiritualidade revalorizada” é vendida na lojinha da esquina, mas é também acalentada com sinceridade e vigor por muitos dos novos rebeldes, adeptos da busca de um mundo novo, gerido participativamente e baseado numa Economia Solidária (BOFF, 2001).

Tudo isso soa romântico diante da força do capital, dos interesses financeiros, da política manipulada, da corrupção, da ignorância e da miséria que se perpetua para grande parte dos humanos. Talvez, diante da magnitude da tarefa de transformação social, apareça a consciência de que, para os que se opõem a este estado de coisas, resta a velha e boa guerra de guerrilhas: pequenas ações — locais e globais — que vão minando o grande exército. A diferença é que esta imagem “guerreira” vem também incorporando, pouco a pouco, a busca da vivência da amorosidade, da vinculação dos ideais globais de solidariedade à prática cotidiana de compartilhar, e de novas lógicas que vão além da racionalidade instrumental analítica. Nesta luta, ou neste desafio, melhor dizendo, ao mesmo tempo em que cada desafiante se contrapõe a um estado de coisas de forma firme, racional, inteligente, se propõe também a mudar a sociedade de forma doce, relacional e espiritual. 

É neste contexto que entram a idéia e as práticas da Economia Solidária, que têm se mostrado uma das  contestações mais interessantes ao modelo econômico atualmente vigente, pois questionam, na sua própria existência cotidiana, as bases do modelo excludente que deu origem à pobreza e exclusão. Sua principal força talvez seja o exemplo "subversivo" de atuar na economia sem submeter-se aos princípios capitalistas de competitividade exacerbada e lucro privado, dentro de uma lógica de cooperação.  Busca-se a origem grega da palavra “economia”, que não está na idéia de negócios, como hoje, mas de resolução de problemas domésticos (oikonomia de oikos, casa), o que remete a um entendimento da economia mais voltado para a sobrevivência  e para o bem-estar da humanidade (ARRUDA, 2000). Por outro lado, a literatura aponta também que até hoje essas práticas têm pequeno alcance e são carregados de voluntarismo. Algumas polêmicas são encontradas na literatura acerca da origem e destino das práticas de Economia Solidária. Para alguns elas são vistas como uma alternativa objetiva (SINGER, 1999) de estruturação socioeconômica para a humanidade. Outros questionam se elas seriam uma tentativa de  "controle político dos miseráveis"  ou, ao contrário, uma "utopia experimental" (VAINER, 2000).

 

É pensando que essas experiências podem gerar sobretudo outras formas de relações econômicas e humanas, marcadas pela solidariedade, e que elas possam significar “sementes (que) começam a se impor quando ainda o velho é quantitativamente dominante”  como diz Milton Santos (2000) em um texto-testamento —, que propomos estudá-las em profundidade — tanto as de cunho micro com as macro — para compreender melhor sua dinâmica interna e seu alcance socioeconômico.

 

[i] Para maior aprofundamento desses conceitos ver texto de FRANÇA, Genauto: “Esclarecendo terminologias: as noções de terceiro setor, economia social, economia solidária e economia popular em perspectiva”, na publicação acima indicada.

[ii] Nas categorias desemprego e subemprego, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou, em seu relatório de 1999, uma cifra de aproximadamente um bilhão de pessoas no mundo, um número que vem crescendo a uma média anual de cem milhões de pessoas.


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