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Transição para novos sistemas políticos

12 de Junho de 2016, 11:20 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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A crise brasileira, a candidatura de Donald Trump nos EUA, o crescimento da extrema direita na Europa, entre outros fatos políticos atuais, colocam a Democracia em foco. Esse texto busca contribuir nessa reflexão, pensando a transição a ser empreendida para a reinvenção da democracia, fazendo-a reencontrar seu objetivo original de ser o governo do povo, pelo povo e para o povo. Se o sistema representativo que materializa hoje esse lema  democrático trai sua origem, seja pelos poderosos interesses financeiros que dirigem a política, seja pela corrupção, pela intolerância ou pela manipulação midiática, o caminho não pode ser outro que aprofundar ainda mais a democracia.

Mas como? Como transitar de um momento criticamente desafiador para algo que seja desejável e legítimo para a sociedade e que honre a história da democracia? A evolução histórica da civilização humana vem generalizando o acesso à cidadania, que implica em condições sociais dignas de existência e possibilidade de participação de cada pessoa nas decisões coletivas. É assim que os países assinaram a Declaração dos Direitos Humanos, os Objetivos do Milênio e mais recentemente a Declaração de Paris, na COP 21, no final do ano passado (para citar apenas documentos mais recentes e conhecidos). O como avançar está ligado à continuidade desses avanços.

Os sistemas políticos devem servir a atingir os objetivos de organização das sociedades de modo a que os seres humanos possam desenvolver seus talentos e ter uma vida feliz em meio a uma coletividade mais igualitária e integrada de forma respeitosa com a Natureza. Esses objetivos vêm sendo construídos ao longo dos séculos e por eles se superou pouco a pouco o absolutismo, o escravismo, as desigualdades entre sexos, raças, crenças, etc. Chega-se a um Estado Democrático de Direito na atualidade que, embora largamente imperfeito, defende a Vida e o desenvolvimento humano mais que em qualquer época histórica. Mas não se pode negar também que o sistema político que o sustenta foi gradualmente distorcido no mundo todo. A concentração de renda nas mãos dos super ricos, a concentração da informação na mão de alguns conglomerados e a concentração em curso da produção de alimentos (que vem se tornando veneno) na mão de poucas empresas expressam isso.

Para sair do impasse das distorções do sistema democrático é necessário enxergar que florescem pelo mundo iniciativas de democracia direta, de novos coletivos cidadãos, de “revoluções tranquilas” que buscam a coerência entre o discurso e a prática, de conquistas de direitos e de inovações na política. As inovações são ainda isoladas e restritas, mas já trouxeram novidades palpitantes que precisam ser mais e mais estudadas, como o exemplo da queda do governo na Islândia pela pressão popular, dos movimentos de jovens “Indignados”,  do surgimento do Partido do Homem Comum na India, do partido “Podemos” na Espanha, do movimento Nuit Debout na França, das ocupações da juventude que começaram com o Occupy Wall Street, nos EUA e outras e outras novidades que trazem esperança para o quadro atual.

Há claramente no mundo, de um lado, um movimento descendente, e mesmo decadente, de modelos políticos hierárquicos e concentradores de poder e o Brasil expressa isso hoje de forma espetacular. Do outro, há um movimento ascendente, protagonizado pela sociedade civil na maior parte das vezes afastada dos partidos políticos tradicionais. Esse movimento ascendente ainda não se coloca como alternativa política na maior parte dos países, mas traz várias novidades inspiradoras. Está em ascendência outros modos de vida, mais colaborativos, mais horizontais, mais conectado pelas redes sociais e que colocam a questão da evolução das partes (do indivíduo e dos coletivos engajados) como base essencial para a transformação do todo.

Essa ascendência está conectada com outra visão de mundo, com outro paradigma cultural e científico, inspirado  na física quântica, no pensamento sistêmico e no holismo, que entra em choque frontal  com as bases dos sistemas políticos atuais. A interdisciplinaridade, a interconexão, a valorização das relações sutis, energéticas  e “não locais” substituem o reducionismo do materialismo, do conhecimento compartimentado, da hierarquização de saberes. Para muitos, essa nova visão de mundo, com reflexos evidentes nos modos de organização das sociedades são a manifestação da nova era de Aquários, em ascensão.

Como favorecer que os movimentos de maior amorosidade e interconexão humana global que ora emergem se acelerem trazendo sua contribuição a essa fase da evolução da humanidade, antes que o movimento decadente nos arraste nas crises ambientais, financeiras e políticas que acompanham sua queda? Como evitar que o movimento de emergência e o movimento de descendência não criem uma colisão dolorosa para a humanidade, motivada pelo medo do status quo de perder sua hegemonia e da revolta dos perdedores com a injustiça do sistema? Como pensar uma transição, em etapas, da passagem de um modelo que vem se tornando cada vez mais concentrador de renda e de poder, para um modelo coerente com os princípios democráticos no qual os interesses coletivos prevalecem?  

A transição para novos sistemas políticos é um desafio que exigirá a criatividade e a coragem daqueles/as que se motivam a contribuir pensando, sentindo e agindo na direção do futuro. Nesse sistema, certamente, o exercício de um mandato político será inteiramente diferente: ele não será uma profissão, mas um serviço, ele não será um privilégio, mas uma honra. Pode-se pensar que, se o foco da política é o interesse coletivo, só as pessoas que se sentem profundamente motivadas aspirarão a essa função. Como exemplo se pode pensar que elas poderiam assim serem remuneradas com base na renda média do país e que seus mandatos públicos implicariam na obrigatoriedade de que os mandatários e suas famílias fossem usuárias, como o cidadão e a cidadã comum, do sistema público de saúde, de educação, de transportes...

Em um novo sistema político, o bem estar da cidadania não seria simplesmente o foco da política, mas cada cidadão e cidadã seria corresponsável pelas decisões e se implicaria ativamente. Poderia ser obrigação cidadã não apenas votar, mas controlar continuamente o sistema. Do mesmo jeito que pagar impostos é uma obrigação em face das demandas coletivas que o Estado precisa arcar, opinar e fiscalizar o exercício governamental de suprimento dessas demandas seria parte dos deveres (e dos direitos) de cada  um/a para com a Nação. Aqueles que exercessem cargos públicos, tanto funcionários, como parlamentares ou membros dos governos seriam avaliados anualmente por seus “empregadores”, o povo.

Nessa lógica, o Estado tornar-se-ia cada vez mais profissionalizado, como na experiência europeia e americana, avançando para ser formado por estruturas executivas permanentes, e de alto nível profissional, com confiabilidade crescente. O Brasil já conta com estruturas exemplares, como o IBGE, a Receita Federal, entre outras. A ação do Estado seria planejada participativamente a longo prazo, pela população e por organizações profissionais correlacionadas com as ações estatais. A política como a vemos hoje, a ação do parlamento, seria menos decisória e mais executiva na organização da participação e controle social.

Talvez alguns leitores e a leitoras estejam com pulgas atrás da orelha em face dessas poucas ideias sobre como “poderia ser” um sistema político que substitua o que se tem hoje. Como assim? Com a trajetória que tem o Brasil de jeitinhos e lei de Gérson, quantos não tentariam burlar obrigações? Com a força da grana mandando em tudo, quantos não assumiriam mandatos não por grandeza humana mas para estarem próximos das obras públicas e das possibilidades de obter vantagens? No caso brasileiro, mais uma vez, como profissionalizar o Estado com milhões de cargos públicos que se renovam a cada eleição? Qual parlamentar deixaria passar essa lei? E nos casos de países mais avançados em termos de estruturação de um Estado mais profissional, como evitar que as verdadeiras decisões se dessem nos bastidores?

Ao avançar em ideias de transição, como propostas simples e nem tão novas, mostra-se que a execução dessa necessita de etapas, pois a própria cultura precisaria mudar, e não se muda cultura por decreto. Belas ideias podem se tornar autoritárias se não são coconstruídas. Por isso mesmo está-se falando em transição. A solução pronta, o modelo, é completamente contrário à lógica orgânica dos novos coletivos cidadãos, dos novos paradigmas científicos (que pleiteiam a incorporação da incerteza como fato incontornável da Vida) e dos novos modelos de vida, que aspiram inspirar novos modelos políticos. As resistências criativas ao modelo decadente, a experimentação antecipadora dos novos modos de ser e fazer e a visão transformadora de futuro são os caminhos para uma construção paulatina e coletiva de novos modelos.

É a visão partilhada do que se quer e do que não se quer, são os valores humanistas, democráticos e solidários que se tem em comum, que orientam a construção do caminho. A política até poderia ser exercida por mandatos oriundos de um sorteio, como se faz para construir um júri popular ou para compor as mesas eleitorais, quando a visão e os valores partilhados estiverem estabelecidos. Seria um dever cívico do qual só por razões muito fortes alguém poderia evitar de cumprir, se sorteados. Dificilmente, por sorteio na cidadania, ter-se-ia uma concentração tão grande de pessoas desqualificadas moralmente como se tem hoje no parlamento brasileiro e em muitos parlamentos pelo mundo. Os políticos tomariam menos decisões e sua atividade seria mais e mais a fazer viver um sistema participativo de decisões democráticas, por eleição, por consulta pública, por plebiscito, referendo, etc, inclusive com voto pela internet.  

Veja-se que até aqui não se falou em partidos políticos como base na organização do sistema político. Eles podem não ser eliminados, mas certamente não seriam a única base de representação de agrupamentos de visões e interesses, até porque, no mundo todo suas marcas ideológicas estão se perdendo nas práticas tristemente parecidas. Assim, os sistemas de representação de interesse poderiam ser outros, sempre de baixo para cima e sempre em função do tipo de decisão a ser tomada coletivamente. O sistema de decisões com base no voto a voto de indivíduos pode se complementar pelo voto a partir das comunidades locais, das organizações profissionais,  das bacias hidrográficas, etc. Haveriam tantos colégios eleitorais nos países quanto os tipos de problemas que a coletividade demande que sejam resolvidos. 

A renovação dos sistemas políticos, como foi dito, exige criatividade e coragem. O imaginário político precisa se abrir para se reinventar e uma boa inspiração são as formas práticas que a sociedade civil já usa para organizar suas intervenções no espaço público.

 


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