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Cidades do Futuro: caos ou renascimento?

18 de Março de 2024, 10:50 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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 Cidades do futuro

Quando os sinais do aquecimento global se tornam cada vez mais evidentes, quem mora nas cidades sofre ainda mais. O calor insuportável é um dos sinais mais fortes e as pessoas buscam defender-se como podem. O ar-condicionado virou sonho dourado para poucos e quem fica de fora deste privilégio recebe uma cidade ainda mais quente pelo efeito destes. O “salve-se quem puder” é a ação típica do modelo de sociedade individualista em que vivemos. Quando se combinam o aumento do nível do mar em cidades praianas ou ribeirinhas, a ocorrência de eventos climáticos extremos, sobretudo secas e inundações, a carestia dos alimentos por causa de mudança do regime de chuvas e estiagens no campo, a poluição do ar por químicos e microplásticos, a perspectiva de novas pandemias etc.. a perspectiva é o caos, mas um renascimento pode ser possível.

Não faltou aviso nos últimos 40 anos, mas os apelos da ciência foram ignorados. A persistência de cientistas em estudar o fenômeno das mudanças climáticas traz análises cada vez mais sofisticadas, previsões cada vez mais palpáveis e um tempo de mudanças cada vez mais próximo. Muito do que era previsto para 2100 é agora previsto para 2030! As e os profissionais da cidade, em muitos casos, continuam ignorando a questão e os problemas parecem grandes demais para terem solução. Juntam-se aos desafios já conhecidos e para os quais muitas soluções foram propostas e poucas efetivamente implementadas e têm-se um panorama devastador. Com a desigualdade se espraiando pelo mundo, até no Norte global, e com a fragilização dos Estados, cada vez mais endividados, como vislumbrar soluções abrangentes e inclusivas vindas dos Estados nacionais e das municipalidades?

Para citar alguns exemplos, como passar de uma mobilidade urbana atravancada, excludente, cara, perigosa e poluente para outra fluida, barata, segura, cooperativa e não poluente? Como passar de uma gestão de resíduos que enfrente a cultura do desperdício, a poluição e o alto custo de processamento dos resíduos urbanos, para uma situação de consumo sóbrio, reciclagem e produção de insumos a partir da coleta seletiva? Sobre o abastecimento de combustíveis nas cidades, como passar de carestia, insustentabilidade pela emissão de CO2 pelo uso do petróleo e poluição, para um contexto de moderação, cooperação, regeneração e inovação integrada das energias renováveis no quotidiano? Sobre como lidar melhor com os alimentos, como passar da baixa qualidade dos ultraprocessados, da carestia, da contaminação química e emissão de CO2 na agricultura altamente motorizada, para a agroecologia da abundância, da economia solidária, dos produtos orgânicos e da regeneração ecológica? Como passar de um abastecimento de água cada vez mais incerto, com altos custos de despoluição e contínuo desperdício, para soluções baseadas na moderação, na captação de água de chuva, na regeneração de mananciais e na cultura de sacralidade da água, mãe da Vida?

Quando pensamos sobre estas perguntas – e outras afins - vemos que não há respostas em grande escala na visão de mundo hegemônica que produz as estruturas culturais, socioeconômicas e políticas em que vivemos. Albert Einstein já dizia que “Os problemas significativos que enfrentamos, não podem ser resolvidos no mesmo nível de pensamento em que estávamos quando os criamos”. Isto nos leva a pensar que uma mudança de cultura é essencial e isto poderia começar nas Universidades, onde os profissionais da cidade são formados. Enquanto urbanistas, arquitetos, sociólogos e geógrafos acompanham a perplexidade da cidadania em geral em face das mudanças climáticas e suas graves implicações para a vida nas cidades, tudo parece sem solução. Uma nova cultura precisa ser criada para superar a visão de mundo hegemônica que também é majoritária nestas profissões: o paradigma cartesiano e mecanicista, que é descrito aqui. Em uma nova visão de mundo, vislumbram-se caminhos.

Para as pessoas nos pontos de ônibus, ou seja, a maioria da população, é demais preocupar-se e pensar soluções para as mudanças climáticas.  É como uma família pobre que já tinha grandes problemas e enfrenta uma pandemia, perdendo fontes de renda e entes queridos. Para não repetir esta crueldade histórica, cabe aos urbanistas mostrar soluções, ainda que estas sejam apenas de monitoramento, adaptação e mitigação, já que não há mais como retroceder nos processos de mudança do clima. Certamente as cidades precisarão mudar muito e uma parte delas, infelizmente se tornará inviável. Isto é particularmente verdadeiro para cidades que ficam em áreas inundáveis à beira mar ou rios, ou as grandes metrópoles que têm dependência excessiva de insumos vindos de fora sem possibilidades de se reconverterem para mais autonomia.

Olhando o contexto global, é preciso ter em conta também a fase ultra concentradora de renda do capitalismo financeiro que faz com que pessoas como Elon Musk tenham muito mais dinheiro do que a maioria dos Estados do mundo. Isto é tão mais grave pelo fato dos Estados serem devedores destes super ricos e portanto terem se tornado reféns do sistema financeiro. Isto explica em parte a paralisia geral da sociedade humana em face da emergência climática. Esperar soluções apenas via políticas públicas por municipalidades, estados e União seria ingênuo neste contexto. Soluções urbanísticas para as mudanças climáticas têm que ser criativas, colaborativas, regeneradoras, em rede, referenciadas por uma visão de mundo holística e ecológica onde a adultez de cada pessoa é estimulada para fazer face ao caos de modo comunitário. Indivíduos, entidades públicas, coletivos, empresas, movimentos sociais fazem parte da teia de soluções para que as cidades possam renascer.

E então?

Uma esperança pode vir da ideia de que do mesmo jeito que a maioria das pessoas não é suicida, a humanidade também não o será. Ou de que com o fundo do poço se aproximando, daqui a menos tempo que antes, o pior terá passado.  O realismo, que deve ser parceiro do otimismo, nos lembra o peso da cultura do individualismo, da desigualdade, do materialismo e da infantilidade das soluções rasas, fúteis e de curto prazo para problemas que são vistos sempre como sendo causados “por outros”. Este realismo nos lembra que vivemos numa sociedade que achou que os recursos da Terra eram inesgotáveis e que ainda não arregaçou as mangas pra ajudar a Natureza a se recuperar. Nos lembra que o lucro ainda é o indicador central da economia e que a propriedade individual de bens é ainda associada fortemente ao bem-estar – como no caso dos ar-condicionados. Ou, ainda mais amplo, que uma sociedade patriarcal baseada na dominância masculina, que é competitiva e hierárquica e dificilmente saberá ter uma visão suficientemente larga da democracia para convocar todas as pessoas para que juntas, salvem as cidades.

É de se concluir, portanto, que as possibilidades do caos se instalar são grandes. Que as soluções políticas de extrema direita com líderes fortes (e mentirosos) que se dizem capazes de mudar uma realidade cada vez mais atroz (e que por isto são chamados de “mitos”) tendem a se espraiar. Que as guerras tendem a se acirrar até pelo medo que se espalha. O chamado à paz, à ação conjunta, a mudanças de visão de mundo em direção à ecologia, à sobriedade, à participação cidadã corresponsável pelas soluções para todes, à igualdade de gênero e de oportunidades ainda é ouvido por uma minoria, infelizmente. Mas se haverá caos, e ele já é observado em larga escala, é histórico que haverá também o pós-caos, o pós- capitalismo, o pós-tudo. E o renascimento virá exatamente das pessoas que estão encarando os problemas e imaginando e praticando soluções. Estas revoluções tranquilas ainda têm pequena escala, mas vão se mostrar cada vez mais essenciais como sementes plantadas por quem vê que o mundo muda porque o vemos de forma diferente e agimos em acordo.

Quem hoje produz soluções como as ecovilas, a agroecologia, a permacultura, a economia solidária, a educação para a igualdade, a comunicação não violenta, o vegetarianismo e veganismo e as muitas formas de sobriedade feliz, estão plantando sementes. Assim como, nas cidades, os que focam nas energias renováveis como a solar, na agricultura urbana, na captação de água de chuva, na coleta seletiva com compostagem, reciclagem e reuso, nos sistemas alternativos de saneamento, nos orçamentos participativos, na participação cidadã para o pensar e agir nas cidade, nas caronas solidárias, na troca ou compra coletiva de bens, nos sistemas monetários alternativos, na propriedade coletiva de insumos não cotidianos (como ferramentas, impressoras, veículos), os ecobairros e as cidades em transição e tantas soluções mais, são sementes do futuro urbano.

Para que os profissionais da cidade saiam da negação e do sentimento de impotência, é necessário lhes conceder o direito de sonhar, o dever de estudar soluções práticas, reais, cotidianas que enfrentem os problemas das cidades. E que as pratiquem eles mesmos e elas mesmas. Que saiam do paradigma de que o Estado é solução para tudo e pensem em soluções nas quais a cidadania seja ativa e, colaborativamente, co-responsavelmente, enfrente os problemas. Ao mesmo tempo, e complementarmente, que não abandonem a exigência de que o Estado cumpra seu papel para solucionar problemas urbanos. Que estes profissionais criem soluções inovadoras de políticas públicas e sejam incansáveis batalhadoras e batalhadores pela sua implementação.

E para ir mais longe, porque não aprender a projetar eco-cidades participativas e solidárias? E imaginar a cultura alternativa que estaria dando suporte a estas mudanças de modos de viver urbanos? A utopia como horizonte é mais do que nunca necessária, como diria Eduardo Galeano, pra nos dar direção para onde ir. A autotransformação como base para novos mundos é um potente meio de mudar a cultura, enquanto o contexto cultural hegemônico ainda negar a necessidade urgente de mudar de paradigma, de valores e jeito de viver. Cedo ou tarde o óbvio será reconhecido. Cada pessoa que sai do modo de vida hegemônico, dos modos de pensamento e ação tradicionais, deixa de ser parte do problema e torna-se parte da solução. Cada pessoa que muda seu jeito de viver em direção a um modo sustentável, democrático e justo é uma semente para outro amanhã, e uma impulsora das mudanças nas instâncias coletivas, nas prefeituras das cidades, nos Estados. Enfrentar o caos para poder renascer é tarefa de muitos, inclusive minha e sua. Aqui e agora.

 


Tags deste artigo: Ecourbanismo economia solidária democracia participativa Paradigma Ecológico

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