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E o futuro, a Deus pertence? Sri Aurobindo e Teilhard de Chardin

16 de Maio de 2015, 2:19 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Dois sábios, um indiano e um francês, escrevendo no início do século XX, deram respostas muito parecidas sobre o que pode vir a ser o futuro da humanidade. Essas respostas são animadoras, embora saibamos, com Toquinho, que “o futuro é uma astronave que tentamos pilotar” e que sobre ele “não se sabe ao certo onde vai dar”. Examinar a proposta evolutiva desses sábios e buscar entender como podemos contribuir, pessoal e coletivamente, pode ser inspirador. Vejamos:

Sri Aurobindo (1872 – 1950), foi um líder independentista indiano que viveu sua juventude na Inglaterra. Ao voltar à Índia e iniciar a luta que envolveu Gandhi, Nehru e outros, foi preso pelos britânicos que perseguiam os anticolonialistas. Durante a prisão, teve visões sobre a evolução humana e resolveu ampliar sua ação política para um trabalho mais universal. Exilou-se em seguida em Pondicherry -  domínio francês na Índia, aonde poderia estar seguro - e desenvolveu uma forma inovadora de Yoga, chamada de Integral. Com apoio de Mirra Alfassa, também conhecida como Mother, Aurobindo fundou uma comunidade espiritual (Ashram) e um inovador colégio em Pondicherry. Após sua morte, seus ensinamentos inspiraram a fundação da cidade futurística de Auroville, em 1968.

Teilhard de Chardin (1881 à 1955) foi um padre jesuíta francês, ao mesmo tempo teólogo, filósofo e Doutor em paleontologia, que estudou profundamente a evolução do Homo Sapiens. Por seu trabalho missionário ele viveu em vários países, inclusive na China, e por suas pesquisas em paleontologia esteve presente em sítios arqueológicos no mundo inteiro. Seu pensamento multidisciplinar, integrando noções recém descobertas de termodinâmica e física quântica, e suas experiências práticas, o levaram a um pensamento inovador. A Igreja, em princípio, condenou sua linha de pensamento e impediu a publicação de seus livros enquanto ele esteve vivo. Hoje, Teilhard de Chardin é um nome reverenciado na ciência e na religião.

Embora sem jamais se conhecerem e participando de universos culturais muito diferentes, Sri Aurobindo e Teilhard de Chardin têm em comum análises muito próximas sobre as etapas de evolução do cosmos, sobre o entendimento do papel humano nesse processo e a descrição da próxima etapa evolutiva. Estas abordagens foram possíveis pela visão inspiradora que tiveram sobre a relação entre matéria e espírito. Tanto na espiritualidade indiana, quanto na tradição religiosa cristã, o espírito é mais importante que a matéria, que costuma ser desprezada. Aurobindo e Teilhard de Chardin romperam com essas tradições encontrando uma harmonização no processo evolutivo da matéria e do espírito.

Em seus estudos sobre as espécies, Teilhard identificou uma evolução ao mesmo tempo biológica e moral: os mamíferos demonstram uma afeição pelos filhotes que não é vista nos répteis, que apareceram antes. A espécie humana, embora tenha acessos de violência esporádica, desenvolve redes de solidariedade que se manifestam na sociedade, por exemplo, no cuidado com os mais fracos, que na Natureza tendem a ser eliminados. Para Teilhard existem duas evoluções paralelas: a que levou a “hominização”, à espécie humana biológica, e a que está levando à “humanização”, ou a elevação espiritual dos humanos.

A complexidade crescente dos sistemas biológicos é acompanhada pelo crescimento da consciência até seu ápice nos humanos. O sistema nervoso humano é muito mais complexo que o de outros mamíferos, que por sua vez é mais complexo que o das aves, e assim sucessivamente com os repteis, peixes e micro-organismos. Para Teilhard de Chardin, toda a evolução da vida se deu e continua a se dar em direção à a uma maior espiritualidade, e, portanto, a mais amorosidade.  Mas essa complexificação em direção à espiritualidade ainda está em andamento: “A humanidade ainda é embrionária” dizia Teilhard.

Sri Aurobindo foi grande conhecedor das tradições indianas que entendem que por trás das aparências do Universo (Maya) existe a realidade da Consciência, o Ser de todas as coisas, uno e eterno. Ele observa que as espécies não conscientes percebem vivamente essa Unidade e vivem entregues ao presente, intimamente conectadas com outros de sua espécie e a todos os seres da Natureza. Essa percepção é dificultada para os humanos pela separatividade do Ego, que prioriza o eu, e pelo funcionamento limitado da mente que, a partir de certo ponto de consciência, deixa de evoluir, funcionando em círculos. A passagem para uma etapa posterior de consciência, na tradição indiana, é feita quando o indivíduo se desliga definitivamente do mundo para conectar-se com o divino pela prática de Yoga. Contrariamente ao ascetismo dos Yoguis eremitas tradicionais, Aurobindo propunha divinizar a vida e não renunciar a vida em busca do divino.

A proposta de Sri Aurobindo com a Yoga Integral é alcançar um estágio superior de consciência sem se afastar do mundo, permitindo que a percepção da Unidade desça até nós, através de uma prática contínua, disciplinada e longa de abrir-se e deixar-se penetrar pelo poder da Consciência Una. Essa evolução pode acontecer com a disciplina psicológica da Yoga Integral, que não é um processo mental, nem físico, mas uma interiorização meditativa com concentração no coração. Os humanos podem ir além de sua natureza limitada e encontrar o divino em si mesmos e remover o véu que esconde a união e a divindade que existe em tudo. Para Aurobindo, a busca humana, espontânea, pelo belo, pelo harmônico e pelo verdadeiro é um sinal de que somos guiados pela consciência universal, e de que fagulhas do fogo divino tocam constantemente nossa alma, mesmo que tenhamos pouca consciência disso.

Na proposta de Aurobindo, encontrar a consciência divina é uma busca existencial pessoal, mas também um processo coletivo pelo qual a “unidade humana” poderá ser vivida e assim superar a monstruosidade das guerras e das demais mazelas sociais. A proposta da cidade universal de Auroville é viabilizar esse processo de unidade numa escala protótipo, dentro de um coletivo que represente a humanidade, na medida em que muitos indivíduos de culturas diferentes vivem juntos. Reinventar a sociedade, evoluindo pessoal e coletivamente na prática de Yoga Integral é o desafio em curso para os Aurovilianos... e para o resto da humanidade.

Como Sri Aurobindo, Teilhard entendia a matéria e espírito como dois lados de uma mesma realidade e não como contraditórios. Ambos foram certamente inspirados pela teoria da evolução de Darwin, com a qual concordavam, mas que achavam insuficiente. À proposta darwiniana de seleção natural de espécies, eles incorporaram o aspecto da evolução espiritual como tendência natural da existência cósmica. Eles viram a evolução do Universo em três estágios: Matéria, Vida e Mente, para Aurobindo a Geosfera, Biosfera e a Tecnosfera, para Teilhard, com o mesmo significado: da matéria inerte para o aparecimento da vida e dessa para o aparecimento do Homem. Ambos imaginaram a etapa evolutiva posterior, chamada de Noosfera, por Teillhard e de Supermente, por Aurobindo.

Tanto a Noosfera quanto a Supermente são estágios nos quais as inteligências humanas conectadas e em cooperação constroem uma realidade espiritual superior. A Noosfera é explicada por Teilhard como “Uma película de pensamento envolvendo a Terra, formada de comunicações humanas”, muito próxima do papel que a internet, de forma incipiente, desempenha hoje.  A Supermente é como uma mente coletiva que superou os limites da mente e tornou-se espiritualizada, em conexão com a Unidade maior, uma alma coletiva.

Fiel às tradições indianas, Aurobindo desenvolveu na Yoga Integral uma proposta para aproximar-se dessa Unidade, que Chardin chamava também de “Cristo Cósmico” ou de “Ponto Ômega”. Enquanto Chardin, coerente com a tradição ocidental, usou um raciocínio científico e priorizou explicar o processo evolutivo espiritual, Aurobindo, coerente com a tradição mística oriental, buscou vivenciar esse processo e descrevê-lo. A Yoga Integral não é uma técnica com ássanas e exercícios respiratórios, mas uma prática perceptiva dos vários níveis de consciência a partir do nosso corpo material, de sua dimensão vital e do domínio da mente, até que, passo-a-passo, se chegue a conexão com a Supermente. Embora Sri Aurobindo proponha um processo de aperfeiçoamento pessoal que não precisa ser feito fora do mundo, é necessária uma grande disciplina para o domínio do corpo, suas necessidades, voracidades e desejos, assim como um trabalho meditativo em busca da própria alma. Para Aurobindo a presença de um mestre é essencial, alguém que tenha feito o caminho de devoção, amor e entrega e que possa comunicar sua força espiritual para a pessoa que busca evolução.

Teilhard chama de “Ponto Ômega” o ponto de convergência da evolução material e espiritual, no qual o homem encontra Deus, em perfeita espiritualidade. Esse ponto se manifesta em uma era de harmonização das consciências, fundada sobre o princípio de “coalescência dos centros”. Cada centro, ou consciência individual, é levada a entrar em colaboração cada vez mais profunda com as consciências com as quais ela comunica e essa convergência se transforma em um todo “noosférico”. A identificação não homogeneizante do Todo ao sujeito que percebe, provoca um crescimento de consciência e o Ponto Ômega é o polo de atração, tanto para a escala individual, como na coletiva. A multiplicação dos centros como imagens relativas do conjunto de centros harmonizados participa à construção do “Cristo Cósmico”. Ao se comunicarem as consciências criam um “super-ser”, dão um salto qualitativo, do mesmo modo que as moléculas ao se associarem deram um salto do inerte ao vivo.

 


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Cultura, Software, cultura e conhecimentos livres, Articulações internacionais

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