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Por um mundo melhor: superando a dominância masculina

7 de Junho de 2015, 7:55 , por Débora Nunes - 0sem comentários ainda | Ninguém está seguindo este artigo ainda.
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Para avançarmos em direção a uma sociedade melhor, na qual o espírito feminino seja incorporado, como foi defendido em postagem anterior (ver aqui), é necessário investigar mais profundamente porque os homens dominaram o mundo até aqui. A pergunta chave pode ser: “Como passamos de uma sociedade nômade e coletora, que durou cerca de 200 mil anos, com tarefas definidas por aptidão biológica e divisão igualitária de poder entre homens e mulheres, para uma sociedade com predominância masculina nos últimos 10 mil anos? ”. Essa questão se torna ainda mais importante se nos damos conta de que a dominação dos homens sobre as mulheres é a forma primária de dominação, a mais universal, e talvez a mãe de todas as outras.

Esse texto fará considerações gerais sobre as razões que levaram à dominação dos homens na civilização humana, elencando ideias relativamente bem conhecidas, assim como, mais audaciosamente, fazer uma tentativa de investigar essa dominação sobre o prisma da insegurança masculina no campo sexual e psicológico, temas menos explorados. Sua segunda parte discute a possibilidade de ter havido certa aceitação feminina a essa dominação. Além da literatura, de entrevistas a alguns homens interessados no tema e de minha experiência pessoal, entrevistei o antropólogo Ordep Serra, que trouxe observações relevantes sobre o tema.

A revolução neolítica, que implicou na sedentarização, na agricultura e no estabelecimento das primeiras civilizações e primeiras cidades, trouxe as bases para dominância masculina. A primeira é a instituição da propriedade privada e a generalização da prática da guerra entre territórios na sociedade humana. Para assegurar o domínio territorial e defender a propriedade, assim como para a própria defesa e sobrevivência do grupo familiar e social, instituiu-se a exaltação da força e da agressividade masculinas. A divisão de poder anterior, no qual as mulheres tinham o poder simbólico de geração da vida e os homens o poder da força, ficou então desequilibrada.

A instituição da herança, a transferência da propriedade privada por laços de sangue, foi outra causa do uso da força e da construção de regras morais para manter as mulheres sob o controle dos homens. Do ponto de vista desses, para garantir a certeza da paternidade sobre os beneficiários da herança familiar, era necessário evitar que relações extraconjugais trouxessem para a linhagem de sucessão filhos de outro sangue.  Como a força física não garante domínio contínuo e suficiente, machos humanos criaram mecanismos persuasivos e regras morais de submissão das mulheres para manter o controle e sentirem-se mais seguros, compelindo a mulher a um lugar secundário na sociedade. A força delas ficou guardada por longo tempo no âmbito privado, familiar e na esfera do mistério.

Uma terceira razão diz respeito ao conforto que a situação de dominação aufere aos dominadores. No caso das mulheres, a imposição dos trabalhos domésticos cotidianos e outros serviços, inclusive sexuais, que tornaram a vida masculina mais fácil. Essa imposição a outros de tarefas consideradas menores, desonrosas ou desconfortáveis é uma das raízes dos sistemas de desigualdade criados pelos humanos, e as mulheres podem ter sido as primeiras vítimas. Estabelecer relações igualitárias entre homens e mulheres é certamente um meio de melhorar o mundo já, mas, principalmente, de desnaturalizar a desigualdade na cultura das futuras gerações, a partir do âmbito doméstico.

O conjunto desses aspectos parece explicar as razões da dominância masculina, mas colocam os homens como vilões da história humana. Superar esse olhar maniqueísta é buscar a complexidade e, portanto, aproximar-se mais da realidade dos fatos. Se olharmos de outro ponto de vista, apenas um ser masculino descompensado pode basear sua existência na força e na agressividade para domínio sobre outros, ou mesmo na competitividade. Porque outros atributos masculinos, que poderiam ter levado a sociedades menos agressivas e menos competitivas não prevaleceram?  Também são qualidades ancestrais dos homens o enfrentamento do perigo para proteção dos mais fracos, o encantamento com a beleza do universo e o mistério feminin, particularmente em relação à gestação, assim como um forte espírito de equipe, entre outras.

As motivações para o desejo de domínio podem ser examinadas a partir de outro aspecto, pois a dominação serve para mascarar o medo de relações entre iguais, nas quais cada um vale pelo que é e é responsável por sua própria existência, sem uso da opressão. O domínio pode esconder assim uma grande fragilidade, falta de autonomia e mesmo de autoestima. Quais poderiam ser os motivos dessa insegurança masculina? O primeiro pode ser o sentimento de desamparo dos homens sem a presença feminina ao seu lado.  É o que o professor Ordep Serra, comentando um conceito de outro antropólogo, Victor Turner, comenta como sendo a secreta inveja dos “poderes dos fracos” que atinge os poderosos. Algumas qualidades femininas podem não lhes auferir poder de mando, mas lhes empoderam no âmbito privado, lhes dão status simbólico e lhes tornam imprescindíveis.

As mulheres, em geral, amadurecem mais cedo, têm maior resistência à dor e grande adaptabilidade inerentes à sua biologia, maior empatia nas relações sociais e uma intuição mais desenvolvida. Sem entrar em detalhes psicológicos das relações dos homens com suas mães, mulheres, filhas e mesmo irmãs, o espírito feminino pode ter surgido como uma força que amedronta os homens. Em suas pesquisas entre os povos do Parque Nacional do Xingu, assim como em seus estudos sobre a mitologia grega, Ordep Serra considera que os mitos, ritos e atitudes de povos tão diferentes revelam uma espantosa recorrência do tema da inveja masculina que tempera o discurso “justificador” da dominação sobre as mulheres.

Outro aspecto importante a ser observado no entendimento da dominância masculina sob o ângulo de sua fragilidade, é a sexualidade. Os condicionantes biológicos, evocados no post anterior, já nos ajudaram a entender atributos masculinos e femininos e os comportamentos induzidos pela própria Natureza. Relembrando alguns desses condicionantes e as diferenças entre gêneros a partir da forma dos órgãos sexuais e mesmo do ato sexual em si, temos: acolhimento feminino à semente masculina que dá a capacidade de gestar a vida nas mulheres e que distancia os homens no processo; maior passividade nas mulheres, exposição do órgão sexual e penetração ativa nos homens; obtenção do prazer de modo evidentemente localizado e visível (pênis) nos homens e de modo mais disperso, em todo o corpo, e com ápice em local escondido (clitóris) nas mulheres.    

De certo modo, os homens experimentam no campo sexual uma situação de fragilidade e exposição. O desejo masculino é evidente pela ereção, enquanto o desejo feminino é misterioso e só ela pode identificá-lo plenamente. Os clássicos relatórios Kinsey e Hite sobre sexualidade humana, entre outros, trazem informações importantes: O desejo masculino é muito difuso, suscitado prioritariamente pela visão, enquanto na mulher o toque, portanto a intimidade, é o meio preferencial para suscitar o desejo. Essas características fazem uma disposição sexual mais geral para os homens e mais específica e aproximada para as mulheres. Os medos de traição são também muito diferentes e esse talvez seja o motivo pelo qual, segundo os mesmos relatórios, os homens teriam mais ciúme do ato sexual da mulher com outros homens e as mulheres mais ciúmes das manifestações de carinho. Do mesmo modo, em termos de fantasias sexuais, as mais comuns para ambos os sexos, tratam de situações de dominação nos homens e de submissão nas mulheres.

Esses dados se relacionam com os papeis sexuais históricos dos gêneros para garantir a própria sobrevivência da raça humana. O princípio comum dos condicionamentos biológicos para todos os animais é o instinto de sobrevivência, garantido pela existência da prole e pela procriação posterior dessa prole. No caso dos humanos, um condicionamento cultural - o medo da morte, e sua “superação” pela descendência - reforça ainda mais os comportamentos sexuais biológicos. Assim, os homens - como outros machos - para garantir sua continuidade histórica, tenderiam à agressividade em relação a outros homens e a proteção do território de vida para conquistar ou manter sua mulher, garantidora da procriação. As mulheres – assim como outras fêmeas – pelo mesmo motivo, tenderiam a cuidar atenciosamente dos bebês, provendo-lhes aquilo que necessitam com atenção e intuição às suas demandas cotidianas, afetivas e materiais. Para manterem seus machos, parceiros da manutenção dos filhos, perto de si, tenderiam a buscar afastar as concorrentes por meios não físicos, ou simplesmente aceitá-las como cúmplices. Entre os meios não físicos de competição pelos machos, pode-se especular em torno das intrigas comunicativas (fofocas) ou dos diversos meios de sedução.

Como foi feito no post anterior, para entendermos melhor o condicionamento de milhares de anos, vamos voltar ao tempo e observar algumas situações da relação homem/mulher nas sociedades nômades e coletoras, nas quais as mulheres ficavam no “acampamento” do grupo com crianças e idosos, enquanto os homens iam em busca da caça ou estavam em vigília para a proteção do grupo. Quando um homem se interessava por uma mulher, e vice-versa, isto podia, para ser simples, acabar em uma aceitação que gerava uma relação e talvez filhos, ou em uma rejeição, que gerava dor. Pode-se dizer que o mesmo acontecia para uma mulher, realização ou dor, porém, em meio à Natureza e com base na conformação física natural dos machos e das fêmeas e em suas tarefas cotidianas, as consequências da dor da rejeição são bem diferentes. 

Mulheres em disputa pelo mesmo homem no ambiente comunal de cuidado dos filhos e da sobrevivência do grupo, podem ter provocado muitos gritos e arranhões entre elas; homens em disputa em meio à uma caçada pode ter fragilizado o grupo no enfrentamento do predador ou na perda da presa, com consequências coletivas maiores. Talvez as reações dos machos para evitar as consequências de suas disputas tenham modelado, muito tempo depois, os dois mandamentos bíblicos mais estranhos aos nossos olhos de hoje: “Não pecarás contra a castidade” e “Não desejarás a mulher do próximo”. Talvez as reações masculinas para evitar a dor da rejeição tenham modelado também muitos dos comportamentos de agressividade em face de outros homens e de dominação em relação às mulheres, que perduram até hoje.

Para evitar a fragilidade da exposição do seu desejo, e mesmo de seu amor, assim como o medo de ser traído e o medo de ficar só, o dominador domina pela força e por uma cultura patriarcal imposta, mas para ele o dominado pode ser traiçoeiro, fonte de dissimulação, e mesmo de ódio. Dominar quase nunca é desfrutar e não traz paz, mas desconfiança.  Ao longo da história, tantos homens se perguntaram no íntimo, sobre suas mulheres: “Ela me ama, ou se adequa à mim porque sou mais forte?”, “Ela concorda comigo ou apenas se submete a mim?", “Ela tem prazer comigo, ou finge para me agradar?”, “Ela é fiel ou tem outros amores?”; essas e outras  questões irrespondidas, pela ausência de uma relação igualitária, podem ter atormentado os homens ao longo da história. Muitos aproximaram-se de suas mulheres tentando entendê-las; outros, mais frágeis, e talvez por isso mesmo compelidos a buscar mais poder e riqueza – usaram a força, o dinheiro e o poder patriarcal para submeter suas mulheres e filhas.

 

A aceitação pelas mulheres do domínio masculino

É preciso lembrar que o estabelecimento da dominância dos homens teve alguma aceitação das mulheres, já que historicamente elas têm tido papel preponderante na educação dos filhos e filhas. Se pelo menos parte significativa delas não tivesse acatado o modelo androcêntrico em sua relação com a prole, o machismo não poderia ter se expandido tanto de uma geração para outra. De um lado, nos primeiros tempos da civilização humana sedentária, as mulheres podem ter aceitado que os homens, mais fortes e agressivos, deveriam dominar a sociedade em contrapartida de proverem comida e segurança para a prole em face das guerras. O medo de perder a propriedade da terra, pode também ter sido uma importante alavanca, que fez com as mulheres educassem seus filhos homens para temerem sua própria feminilidade e reprimi-la.

Em outras situações, nas quais a dominância se estabeleceu mais pela força do macho do que pela aquiescência da fêmea, um segundo aspecto, a tendência natural das mulheres ao evitamento de conflitos, à não violência e à negociação, pode tê-las levado a evitar o afrontamento, submetendo-se, para pacificar a família. No espaço público, na coletividade, talvez predomine outro tipo de submissão, derivada da introjeção do estigma do oprimido. Paulo Freire, tratando dos pobres no nordeste brasileiro e de sua relação com os ricos coronéis, explicou esse conceito: a dominância toma tal relevância na cultura de uma sociedade que o próprio oprimido introjeta em si o sistema e o vê como a ordem natural das coisas. Assim, na maior parte dos casos, ele sequer percebe isso como opressão, embora sofra duramente seus efeitos. O fenômeno da introjeção da opressão pode ter sido um dos fatores que levaram à aceitação da dominância e da educação diferenciada de meninos e meninas por suas mães.

Freire explica outro aspecto da introjeção da opressão, que é a “aderência ao opressor”: ele exemplifica a passagem de um trabalhador braçal que se torna capataz e, por ter “aderido” ao modelo dominante, reforça o sistema, oprimindo os que antes eram seus iguais. No caso da história da submissão das mulheres, esse fator pode ter sido muito importante, e as mães, irmãs e sogras controlam elas mesmas o sistema que oprime outras mulheres, sob dominância masculina.

Há ainda outro aspecto a ser observado nas relações entre homens e mulheres: normalmente se trata mais da relação amorosa de tipo conjugal e da relação dos homens com suas filhas, mas muito pouco da relação dos homens com suas mães. Essa, de modo algum, pode ser caracterizada como uma relação de dominância, muito pelo contrário: a devoção dos homens às suas mães é fato psíquico e cultural amplamente conhecido. A complexidade humana faz com que formas sutis de poder tenham sido desenvolvidas pelas mulheres e que elas sejam parte ativa no jogo das relações.  Logicamente essas relações são diferentes em cada época e em cada família e dependem muito das características pessoais de cada mulher: algumas têm real poder, mesmo que invisível, sobre os homens de suas famílias e outras, mais tímidas e pacíficas, não têm quase poder nenhum.

O certo é que a força e a fragilidade masculinas que levaram à dominação não foram contrabalançadas por um feminino ativo, que desse limite ao poder masculino descompensado. É fato também que a dominação implica em responsabilidade de dar a direção e a submissão exime os dominados desse peso. Se o feminino tende ao trabalho nos bastidores, às decisões compartilhadas e se as mulheres são menos tentadas pelo risco, como foi discutido anteriormente nesse blog, elas podem ter evitado tomar a frente sozinhas da responsabilidade do grupo ou da família, o que tornou a dominação masculina mais fácil.

A superação da dominância masculina exigirá de homens e mulheres um profundo autoconhecimento e uma compreensão e aceitação da existência do espírito masculino e feminino em cada um. A harmonização dos indivíduos e da sociedade necessita do reconhecimento e valorização do Yin e do Yang, e provavelmente é no campo das relações pessoais que se está se construindo a superação da dominação, mais ainda do que no campo das leis e das políticas sociais. Quando as mulheres se empoderam, elas ajudam os homens a “descansar” dos seus atributos de comando e do mundo excessivamente másculo e sem aconchego que eles construíram dominando. Quando os homens se feminizam, eles ajudam as mulheres a encontrar saídas negociadas e a fazer um mundo mais acolhedor. Quando homens e mulheres dividem tarefas e partilham responsabilidades na casa, no trabalho, etc. eles constroem um mundo mais feminino porque menos descompensado pela supremacia masculina. O espírito feminino pode se desenvolver na experiência de cada pessoa, de cada casal, de cada família. As novas gerações serão beneficiadas e sem as travas da dominância poderão construir um mundo mais igual, não somente para homens e mulheres, mas para brancos e pretos, ricos e pobres e todas as outras vítimas das desigualdades que se espalharam pelo mundo.

 


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Comunicação, Mulheres, Política

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