E o futuro, a Deus pertence? Sri Aurobindo e Teilhard de Chardin
мая 16, 2015 2:19 - no comments yetDois sábios, um indiano e um francês, escrevendo no início do século XX, deram respostas muito parecidas sobre o que pode vir a ser o futuro da humanidade. Essas respostas são animadoras, embora saibamos, com Toquinho, que “o futuro é uma astronave que tentamos pilotar” e que sobre ele “não se sabe ao certo onde vai dar”. Examinar a proposta evolutiva desses sábios e buscar entender como podemos contribuir, pessoal e coletivamente, pode ser inspirador. Vejamos:
Sri Aurobindo (1872 – 1950), foi um líder independentista indiano que viveu sua juventude na Inglaterra. Ao voltar à Índia e iniciar a luta que envolveu Gandhi, Nehru e outros, foi preso pelos britânicos que perseguiam os anticolonialistas. Durante a prisão, teve visões sobre a evolução humana e resolveu ampliar sua ação política para um trabalho mais universal. Exilou-se em seguida em Pondicherry - domínio francês na Índia, aonde poderia estar seguro - e desenvolveu uma forma inovadora de Yoga, chamada de Integral. Com apoio de Mirra Alfassa, também conhecida como Mother, Aurobindo fundou uma comunidade espiritual (Ashram) e um inovador colégio em Pondicherry. Após sua morte, seus ensinamentos inspiraram a fundação da cidade futurística de Auroville, em 1968.
Teilhard de Chardin (1881 à 1955) foi um padre jesuíta francês, ao mesmo tempo teólogo, filósofo e Doutor em paleontologia, que estudou profundamente a evolução do Homo Sapiens. Por seu trabalho missionário ele viveu em vários países, inclusive na China, e por suas pesquisas em paleontologia esteve presente em sítios arqueológicos no mundo inteiro. Seu pensamento multidisciplinar, integrando noções recém descobertas de termodinâmica e física quântica, e suas experiências práticas, o levaram a um pensamento inovador. A Igreja, em princípio, condenou sua linha de pensamento e impediu a publicação de seus livros enquanto ele esteve vivo. Hoje, Teilhard de Chardin é um nome reverenciado na ciência e na religião.
Embora sem jamais se conhecerem e participando de universos culturais muito diferentes, Sri Aurobindo e Teilhard de Chardin têm em comum análises muito próximas sobre as etapas de evolução do cosmos, sobre o entendimento do papel humano nesse processo e a descrição da próxima etapa evolutiva. Estas abordagens foram possíveis pela visão inspiradora que tiveram sobre a relação entre matéria e espírito. Tanto na espiritualidade indiana, quanto na tradição religiosa cristã, o espírito é mais importante que a matéria, que costuma ser desprezada. Aurobindo e Teilhard de Chardin romperam com essas tradições encontrando uma harmonização no processo evolutivo da matéria e do espírito.
Em seus estudos sobre as espécies, Teilhard identificou uma evolução ao mesmo tempo biológica e moral: os mamíferos demonstram uma afeição pelos filhotes que não é vista nos répteis, que apareceram antes. A espécie humana, embora tenha acessos de violência esporádica, desenvolve redes de solidariedade que se manifestam na sociedade, por exemplo, no cuidado com os mais fracos, que na Natureza tendem a ser eliminados. Para Teilhard existem duas evoluções paralelas: a que levou a “hominização”, à espécie humana biológica, e a que está levando à “humanização”, ou a elevação espiritual dos humanos.
A complexidade crescente dos sistemas biológicos é acompanhada pelo crescimento da consciência até seu ápice nos humanos. O sistema nervoso humano é muito mais complexo que o de outros mamíferos, que por sua vez é mais complexo que o das aves, e assim sucessivamente com os repteis, peixes e micro-organismos. Para Teilhard de Chardin, toda a evolução da vida se deu e continua a se dar em direção à a uma maior espiritualidade, e, portanto, a mais amorosidade. Mas essa complexificação em direção à espiritualidade ainda está em andamento: “A humanidade ainda é embrionária” dizia Teilhard.
Sri Aurobindo foi grande conhecedor das tradições indianas que entendem que por trás das aparências do Universo (Maya) existe a realidade da Consciência, o Ser de todas as coisas, uno e eterno. Ele observa que as espécies não conscientes percebem vivamente essa Unidade e vivem entregues ao presente, intimamente conectadas com outros de sua espécie e a todos os seres da Natureza. Essa percepção é dificultada para os humanos pela separatividade do Ego, que prioriza o eu, e pelo funcionamento limitado da mente que, a partir de certo ponto de consciência, deixa de evoluir, funcionando em círculos. A passagem para uma etapa posterior de consciência, na tradição indiana, é feita quando o indivíduo se desliga definitivamente do mundo para conectar-se com o divino pela prática de Yoga. Contrariamente ao ascetismo dos Yoguis eremitas tradicionais, Aurobindo propunha divinizar a vida e não renunciar a vida em busca do divino.
A proposta de Sri Aurobindo com a Yoga Integral é alcançar um estágio superior de consciência sem se afastar do mundo, permitindo que a percepção da Unidade desça até nós, através de uma prática contínua, disciplinada e longa de abrir-se e deixar-se penetrar pelo poder da Consciência Una. Essa evolução pode acontecer com a disciplina psicológica da Yoga Integral, que não é um processo mental, nem físico, mas uma interiorização meditativa com concentração no coração. Os humanos podem ir além de sua natureza limitada e encontrar o divino em si mesmos e remover o véu que esconde a união e a divindade que existe em tudo. Para Aurobindo, a busca humana, espontânea, pelo belo, pelo harmônico e pelo verdadeiro é um sinal de que somos guiados pela consciência universal, e de que fagulhas do fogo divino tocam constantemente nossa alma, mesmo que tenhamos pouca consciência disso.
Na proposta de Aurobindo, encontrar a consciência divina é uma busca existencial pessoal, mas também um processo coletivo pelo qual a “unidade humana” poderá ser vivida e assim superar a monstruosidade das guerras e das demais mazelas sociais. A proposta da cidade universal de Auroville é viabilizar esse processo de unidade numa escala protótipo, dentro de um coletivo que represente a humanidade, na medida em que muitos indivíduos de culturas diferentes vivem juntos. Reinventar a sociedade, evoluindo pessoal e coletivamente na prática de Yoga Integral é o desafio em curso para os Aurovilianos... e para o resto da humanidade.
Como Sri Aurobindo, Teilhard entendia a matéria e espírito como dois lados de uma mesma realidade e não como contraditórios. Ambos foram certamente inspirados pela teoria da evolução de Darwin, com a qual concordavam, mas que achavam insuficiente. À proposta darwiniana de seleção natural de espécies, eles incorporaram o aspecto da evolução espiritual como tendência natural da existência cósmica. Eles viram a evolução do Universo em três estágios: Matéria, Vida e Mente, para Aurobindo a Geosfera, Biosfera e a Tecnosfera, para Teilhard, com o mesmo significado: da matéria inerte para o aparecimento da vida e dessa para o aparecimento do Homem. Ambos imaginaram a etapa evolutiva posterior, chamada de Noosfera, por Teillhard e de Supermente, por Aurobindo.
Tanto a Noosfera quanto a Supermente são estágios nos quais as inteligências humanas conectadas e em cooperação constroem uma realidade espiritual superior. A Noosfera é explicada por Teilhard como “Uma película de pensamento envolvendo a Terra, formada de comunicações humanas”, muito próxima do papel que a internet, de forma incipiente, desempenha hoje. A Supermente é como uma mente coletiva que superou os limites da mente e tornou-se espiritualizada, em conexão com a Unidade maior, uma alma coletiva.
Fiel às tradições indianas, Aurobindo desenvolveu na Yoga Integral uma proposta para aproximar-se dessa Unidade, que Chardin chamava também de “Cristo Cósmico” ou de “Ponto Ômega”. Enquanto Chardin, coerente com a tradição ocidental, usou um raciocínio científico e priorizou explicar o processo evolutivo espiritual, Aurobindo, coerente com a tradição mística oriental, buscou vivenciar esse processo e descrevê-lo. A Yoga Integral não é uma técnica com ássanas e exercícios respiratórios, mas uma prática perceptiva dos vários níveis de consciência a partir do nosso corpo material, de sua dimensão vital e do domínio da mente, até que, passo-a-passo, se chegue a conexão com a Supermente. Embora Sri Aurobindo proponha um processo de aperfeiçoamento pessoal que não precisa ser feito fora do mundo, é necessária uma grande disciplina para o domínio do corpo, suas necessidades, voracidades e desejos, assim como um trabalho meditativo em busca da própria alma. Para Aurobindo a presença de um mestre é essencial, alguém que tenha feito o caminho de devoção, amor e entrega e que possa comunicar sua força espiritual para a pessoa que busca evolução.
Teilhard chama de “Ponto Ômega” o ponto de convergência da evolução material e espiritual, no qual o homem encontra Deus, em perfeita espiritualidade. Esse ponto se manifesta em uma era de harmonização das consciências, fundada sobre o princípio de “coalescência dos centros”. Cada centro, ou consciência individual, é levada a entrar em colaboração cada vez mais profunda com as consciências com as quais ela comunica e essa convergência se transforma em um todo “noosférico”. A identificação não homogeneizante do Todo ao sujeito que percebe, provoca um crescimento de consciência e o Ponto Ômega é o polo de atração, tanto para a escala individual, como na coletiva. A multiplicação dos centros como imagens relativas do conjunto de centros harmonizados participa à construção do “Cristo Cósmico”. Ao se comunicarem as consciências criam um “super-ser”, dão um salto qualitativo, do mesmo modo que as moléculas ao se associarem deram um salto do inerte ao vivo.
Future cities: incorporating the feminine spirit
мая 10, 2015 5:19 - no comments yetIn a previous post, I discussed the emergence of a new paradigm of thinking and living and I advanced that this paradigm approaches a feminine way of being in the world. These divisions between masculine and feminine forms of existence are linked to the long human history. About 200,000 years ago we lived in the midst of Nature, before the invention of cities. Our urban world is less than 10,000 years old and therefore our behaviour is closely linked to our previous history of nomadic hunters and gatherers. Biological conditions of the two human genders stem from different intellectual abilities, behaviour, emotional particulars as well as a diverse relationship with the mystery of life and spirituality.
In pre-urban times, before private property and male dominance became the norm, the daily journeys built skills that defined the cultural roles that were consolidated later. Women, on account of this long history are more suited for a multi-dimensional perception of the world- with a focus on relationships, more attentive to the equitable distribution of resources for their caregiver status in the family and community; more compassionate and focused on the needs of each one, particularly those in fragile situations; more concerned with the care of living spaces and more qualified for intuitive intelligence and action, inspired by emotion and negotiation. Men, on the other hand, are better attuned to focusing their thoughts on the logical and objective world and hence are more aggressive in their actions, including being extremely competitive. They are more apt to abstraction and spatial reasoning that enables them to conquer new spaces. These gender characteristics operate on an average and may be present in both men and women, but they are, of course, more visible in one sex, for biological and cultural constraints that are discussed below.
The hormonal and physical structure of women is tuned towards creation and the care of offspring. The final period of pregnancy reduces women's mobility, as does feeding and caring for small children. As women in prehistoric times became pregnant almost every year, it was normal for them to be homebound and also provide care to the older, disabled and sick people in the family. However, the hormonal and physical apparatus of men gives them more physical strength and also more aggressiveness on account of the presence of testosterone. The hunting activity, important for feeding their tribes, before the invention of agriculture and grazing, implied the conquest of territories and also their protection including preventing the weakest of the tribe from being exposed to the aggression of wild animals.
To illustrate these differences, from the numerous studies that compare male and female patterns, I will use the distinction made by David Bakan, in which men, on account of their physical strength, tend towards “strong action”, while women tend to a “relational action” arising from their reproductive capacity. LECOMPTE, in his book "Human Kindness" (2012), brings the study of Eagly and Crowly, testing them in real-life situations as well as the differences established by Bakan: the generous actions of men and women are as follows: Men are more capable of generous action in emergency situations and danger whilst women tend towards emotional support and practical care to people in distress situations.
From their presence in communities, women are historically known to harvest edible plants near their habitat, by selecting the larger grains, the tastiest roots, the sweetest fruits and more digestible food. It is to them and to their observations that we owe the discovery of agriculture. Likewise, they hunted and then domesticated small animals, and the more docile ones, paving the way for grazing. Men took on other roles requiring greater physical strength and are closely linked to processing technologies: the cutting of trees and the construction of shelters, the manufacture of tools for hunting and for leather treatment, bones, etc. and later, also metallurgy. These technologies, which involve force, require abstract calculations, from logical and mathematical fields, also developed by men.
Hormonal functions can also deduce reasons for the differences in skills and behaviours: women have a cyclical biology, with major hormonal ups and downs and a lot of flexibility to deal with physical changes as with the monthly hormonal cycle as well as pregnancy. Both cause significant changes in the body that comes back at least to the same state, post- menstruation or childbirth. These changes are caused by internal mysterious factors, which make women most perceptive of invisible changes; more physically resilient and more attentive to emotional shifts. Men have a simple, continuous biology, with hormonal changes j caused just by external, visible factors: particularly danger or sexual arousal. If a man should go through the colossal hormonal changes that women undergo every month, they would have a hard time adapting because they are not biologically capable of it.
Several female skills arise from the fact that women have historically spent most of the time amongst children, old and the infirm and the restricted space within the tribe whilst camping or moving. Men, on the other hand are habituated to moving in more remote areas and encountering danger situations. Research has shown that the female brain is more perceptive of details and emotions and is better able to multitask as well as focus on relationships and communication. Similarly, men have a greater ability to focus on tasks as well as higher spatial identification ability and capacity for abstractions, resulting from long hours in hunting activities involving waiting and silent observation- to study the behaviour of the prey and then act quickly and aggressively.
It is also due to their domestic presence that women involved themselves in cooking and the equitable distribution of food. Physical strength and testosterone resulted in men being more aggressive and also having the ability to handle strenuous activities. These allocations, favoured by biology and in existence since millennia ultimately define different brain abilities.
The kind of intelligence of each sex stems from their daily historical roles: women in a restricted world that demands many different tasks (taking care of offspring, food, agriculture and several manual activities like pottery and weaving), multidimensional reasoning and the capacity to perform different activities simultaneously. This reasoning is also very concrete and related to the experience of the here and now. Men, with the primary task of hunting in the open and being in the company of other men, have developed the ability to focus as well as comprehend abstract concepts and spatial reasoning and logic. For both men and women with regard to the tasks performed over those 200,000 years, the quality of planning was important. In women's tasks, the main planning was long-term with respect to survival and education of offspring, and for men it was short-term planning in carrying out immediate tasks, like the protection of offspring from the dangers posed by the surroundings.
Either by genetic inheritance, shaped by long history, or on account of biological and cultural factors, or perhaps cosmological reasons like opposite poles (yin and yang), men and women are very different. We see today an approximation of sex roles, in others words, more men developing their feminine skills and vice versa, without, however, losing their intrinsic characteristics. This movement is domestic and personal, but also collective and global and will influence the thinking, acting and building of more just, democratic and sustainable cities.
Male attributes without the opposition and the complement of feminine attributes lose out. The exaggerated masculine model of a predatory and competitive society focuses on things and in its operation is mainly interested in winning and accumulation. This imbalance becomes a threat today. The emergence of the feminine spirit integrates values historically developed by women and will help men in nurturing their positive attributes of anchoring and protection forces and also appreciating creative female power and pregnancy. The combination of physical strength and the intensity of male action with female resistance and flexibility; the male ability to focus, with the natural female ability to be interdisciplinary; objectivity and logic combined with intuition and emotion; the expansion of territories with their maintenance, and above all, the combination of a policy based on individual leadership combined with one based on the coordination of talent within a collective management, will build more balanced societies in which complementarities between the two genders will result in harmony in personal and collective development.
Cidades do Futuro: incorporando o espírito feminino
мая 1, 2015 7:27 - no comments yetEm post anterior discuti a emergência de um novo paradigma de pensar e viver e adiantei que esse paradigma se aproxima de um modo feminino de estar no mundo. Essas divisões entre formas masculinas e femininas de existir estão vinculadas à longa história humana, e particularmente aos cerca de 200 mil anos em que vivemos em meio à Natureza, antes da invenção das cidades. Nosso mundo urbano tem menos de 10 mil anos e portanto nossos comportamentos estão muito vinculados ao nosso passado anterior de caçadores e coletores nômades. Dos condicionantes biológicos dos dois gêneros humanos decorrem diferentes habilidades intelectuais, comportamentos, particularidades emocionais, assim como uma relação diversa com o mistério da vida e com a espiritualidade.
Nos tempos pré-urbanos, antes da propriedade privada e da dominância masculina, as tarefas do existir construíram habilidades que definiram os papéis culturais que se consolidaram posteriormente. As mulheres, por esse longo passado, são mais aptas à uma percepção multidimensional do mundo e a um foco nos relacionamentos, mais atentas à distribuição equitativa dos recursos pela sua condição de cuidadora da família e da comunidade, mais compassivas e focadas nas necessidades de cada um pelo convívio com pessoas em situação de fragilidade; mais relacionadas ao cuidado dos espaços de vida e mais habilitadas para uma inteligência intuitiva e um agir inspirado na emoção e na negociação. Os homens, por sua vez, estão mais habilitados para uma percepção focada, lógica e objetiva do mundo, para um agir mais agressivo, incluindo a competição, e são mais aptos à abstração e ao raciocínio espacial que os habilita para a conquista de novos espaços. Essas características de gênero são uma média e podem se revelar tanto em homens como em mulheres, mas são, claro, mais comuns em cada sexo, por condicionantes biológicos e culturais discutidos a seguir.
O aparato hormonal e físico das mulheres às destinaram à geração e à manutenção da prole. O período gestacional final diminui a mobilidade feminina, assim como o aleitamento e o cuidado com as crianças pequenas. Como as mulheres na pré-história engravidavam quase a cada ano, era normal que suas vidas decorressem majoritariamente no território de repouso de povos nômades, onde estavam também os mais velhos, os incapacitados e os doentes. Já o aparato hormonal e físico dos homens lhes dá mais força física e também mais agressividade, pela presença da testosterona. A atividade da caça, importantíssima para a alimentação da tribo antes da invenção da agricultura e do pastoreio, implicava na conquista de territórios e também na sua proteção, evitando que os mais fracos da tribo ficassem expostos à agressão de animais selvagens.
Para ilustrar essas diferenças a partir de inúmeros estudos que comparam padrões masculinos e femininos, usarei a diferenciação feita por David BAKAN, na qual os homens, pela sua força física, tenderiam à uma “ação enérgica”, enquanto que as mulheres tenderiam a uma “ação relacional”, advinda de sua capacidade reprodutiva. LECOMPTE, em seu livro “A bondade humana” (2012), traz os estudos de EAGLY e CROWLY, que testam, em situações reais, as diferenças estabelecidas por Bakan: a ação generosa de homens e mulheres se distinguiriam em: os homens estariam mais aptos à ação generosa em situações de urgência e de perigo e as mulheres mais aptas ao apoio emocional e cuidados concretos continuados para pessoas em situação de sofrimento.
Assim, as mulheres historicamente ocuparam-se da colheita de plantas comestíveis das redondezas do local de pouso, escolhendo os grãos maiores, as raízes mais saborosas, as frutas mais doces e os alimentos mais digestivos. É a elas e às suas observações, que devemos a descoberta da agricultura. Do mesmo modo, elas caçavam e depois domesticaram pequenos animais, e os mais dóceis, abrindo caminho para o pastoreio. Os homens assumiram outros papéis que exigiam maior força física e estão intimamente ligados às tecnologias de transformação: o corte de árvores e a construção de abrigos, a fabricação de ferramentas para caça e para tratamento de couro, ossos, etc. e posteriormente também a metalurgia. Essas tecnologias, favorecidas pela força, exigem cálculos abstratos, de cunho lógico e matemático, também desenvolvidos por eles.
Do funcionamento hormonal também se pode deduzir motivações para diferenças de habilidades e comportamentos: as mulheres têm uma biologia cíclica, com grandes altos e baixos hormonais e uma grande flexibilidade para lidar com modificações físicas, seja do ciclo hormonal mensal, seja da gravidez. Ambos provocam transformações expressivas no corpo que volta mais ao menos ao mesmo ponto, passada a menstruação ou o parto. Essas modificações são provocadas por fatores internos, misteriosos, o que faz as mulheres mais perceptivas das mudanças invisíveis, mais resilientes fisicamente e mais atentas às alterações emocionais. Os homens têm uma biologia simples, contínua, com alterações hormonais provocados apenas por fatores externos, visíveis: principalmente perigo ou excitação sexual. Se um homem devesse passar pelas mudanças hormonais colossais pelas quais passam as mulheres todos os meses, teriam muita dificuldade de adaptação, pois não são biologicamente capacitados para isto.
Várias habilidades femininas são advindas do fato das mulheres terem historicamente passado a maior parte do tempo em meio às crianças, velhos e doentes, no espaço restrito do entorno da tribo, acampada ou em movimento, enquanto os homens deslocam-se em áreas mais longínquas e vivem em situação de perigo. Pesquisas comprovam que o cérebro feminino é mais perceptivo de detalhes e emoções, mais capacitado para multitarefas simultâneas, assim como focados nos relacionamentos e na comunicação. Do mesmo modo, identificam uma grande capacidade de foco na tarefa nos homens, assim como maior capacidade de identificação espacial e de abstração, advindas das longas horas na atividade da caça, implicando em espera e observação silenciosa, projetando o comportamento da caça, para agir em seguida, de modo rápido e agressivo.
É também em função de sua presença doméstica que as mulheres se envolveram na culinária e na distribuição equitativa dos alimentos. A força física e a testosterona destinaram aos homens atividades mais agressivas e extenuantes. Essas atribuições, favorecidas pela biologia e continuadas por milênios e milênios, acabam por definir habilidade cerebrais diferentes. O tipo de inteligência de cada sexo adviria desses papeis históricos cotidianos: as mulheres em um mundo restrito que demanda dela muitas tarefas diferentes (cuidar da prole, da comida, da agricultura e de atividades manuais diversas com a cerâmica e a tecelagem), um raciocínio multidimensional, capaz de efetuar diferentes atividades ao mesmo tempo. Esse raciocínio é também muito concreto, relacionado com a experiência do aqui e do agora. Os homens, por sua tarefa prioritária da caça em campo aberto e em sintonia com outros homens (para evitar o perigo, prever o comportamento futuro da presa e abatê-la), teriam desenvolvido uma capacidade de foco, de abstração, de raciocínio espacial e lógico. Tanto para as tarefas das mulheres quanto para as dos homens ao longo desses 200 mil anos, a qualidade do planejamento era importante, sendo que nas tarefas femininas, o planejamento principal era de longo prazo, no que diz respeito a sobrevivência e educação da prole, e para os homens o planejamento de curto prazo, na realização das tarefas imediatas, como a proteção da prole dos perigos do entorno.
Seja por herança genética modelada pela longa história, portanto por fatores objetivos biológicos e culturais, seja por uma tendência cosmológica, imaterial e intemporal, definida por uma tendência à construção do movimento harmônico a partir de polos opostos (yin e yang), homens e mulheres são muito diferentes. Vê-se hoje uma aproximação dos papeis sexuais, ou seja, os homens desenvolvendo mais suas habilidades femininas e vice-versa, sem que, entretanto, percam suas características intrínsecas. Esse movimento é doméstico, pessoal, mas também coletivo e global e irá influenciar os modos de pensar, de agir e de construir cidades mais justas, democráticas e sustentáveis.
Os atributos masculinos, sem a contraposição e a complementaridade dos atributos femininos, se esgotaram para nos fazer avançar em relação ao que até aqui evoluímos como humanidade. A masculinidade exacerbada modelou uma sociedade predadora e competitiva, focada nas coisas e no seu funcionamento e interessada principalmente na conquista e na acumulação. Esse desequilíbrio se torna hoje uma ameaça. A emergência do espírito feminino integra valores historicamente desenvolvidos pelas mulheres e vão trazer a masculinidade para seus atributos positivos das forças de ancoramento, de proteção e de maravilhamento do homem diante da potência criativa e de gestação do feminino. A combinação da força física e da intensidade de ação masculinas com a resistência e a flexibilidade femininas; a capacidade de foco masculina com a natural interdisciplinaridade feminina; a objetividade e lógica com a intuição e a emoção; a exploração de territórios com sua manutenção, e, sobretudo, a combinação de uma política baseada na liderança individual com outra baseada na coordenação de talentos dentro de uma gestão coletiva, irão construir sociedades mais equilibradas, nas quais as complementaridades entre os dois gêneros humanos promovem harmonia e desenvolvimento pessoal e coletivo.
Cidades do futuro: quais os efeitos do crash ambiental?
апреля 24, 2015 3:03 - no comments yetImaginar que Roma, a maior cidade do mundo na época do nascimento de Jesus, tenha diminuído sua população de um milhão de habitantes para apenas 15 ou 20 mil depois da decadência do império romano é ilustrativo. Após mil anos de poder sobre grande parte do mundo, o fim da civilização romana já inspirou filmes e livros que fazem alusão a essa derrocada como ilustrativa da crise que vivemos hoje. Há décadas, antes que as implicações da questão ambiental ficassem mais evidentes, o filme “As invasões bárbaras”, já tratavado assunto.
Será que nossas cidades hiper-engarrafadas, estressantes, poluídas, caras e violentas irão pelo mesmo caminho na medida em que os efeitos das mudanças climáticas se tornarem mais e mais severos? Alguns indícios, ainda muito pequenos e de crescimento lento, podem apontar para o decrescimento futuro: O movimento de retorno de migrantes nordestinos de São Paulo para as calmas pequenas cidades de onde migraram décadas antes; a saída de populações das metrópoles para cidades menores próximas em busca de qualidade de vida e aproveitando as possibilidades do trabalho pela internet; a proliferação de projetos de ecovilas, nas quais pessoas insatisfeitas com o mundo consumista, organizam-se para construírem modelos alternativos... Assim como Roma foi aos poucos desertada por seus habitantes, a crise da civilização ocidental, apontada em inúmeras pesquisas, podem indicar que o decrescimento das metrópoles e uma descentralização urbana serão uma tendência.
Os dados de um estudo de publicado por Safa Motesharri e colegas em 2014, financiado em parte pela NASA, dão mais concretude ao que muitos percebem também no seu dia a dia nas cidades: a insustentabilidade da civilização capitalista de consumo (ver sumário em inglês abaixo). Usando uma nova metodologia, denominada HANDY (Human And Nature DYnamical), que incorpora dados históricos, ambientais e de desigualdade, a pesquisa mostra que nas próximas décadas (20, 30 anos, ou seja, ainda em nosso tempo de vida), os efeitos do modelo civilizatório no clima, na água, na agricultura, na energia e na população já imporão mudanças profundas, levando ao colapso da civilização. A diminuição da população prevista pelo estudo, se dará tanto pela fome quanto por desastres climáticos e começará pelos pobres, menos protegidos, mas alcançará inevitavelmente os ricos.
Para além de tentarmos frear as tendências de crash ambiental com o crescimento de movimentos locais e globais, é importante que nos preparemos para uma transição mais sensata para outra etapa civilizatória. Cada pessoa e cada comunidade que mudar seu comportamento geral de consumo, de mobilidade, etc. estará em transição. Cada pessoa que começar a compensar sua pegada ecológica com plantio de árvores e alimentos, por exemplo, estará contribuindo para a transição coletiva. Diminuir o consumo material e compensar os efeitos de nossa própria existência na Terra é um caminho necessário, mas restabelecer uma vida mais calma e um ritmo mais sereno, indo na contracorrente do modelo atual, é outro desafio importante, uma verdadeira revolução tranquila. A matéria e energia estão interligadas profundamente como os novos paradigmas do conhecimento evidenciam. Nós somos ao mesmo tempo parte dessa matéria e dessa energia universal e está em nossas mãos fazer nossa parte, enquanto o resto do mundo não acorda.
Human And Nature Dynamics (HANDY): Modeling Inequality and use of resources in the collapse or sustenability of societies
(Safa Motesharri, Jorge Rivas, Eugenia Kalnay)
SUMMARY
Collapses of even advanced civilizations have occurred many times in the past five thousand years, and they were frequently followed by centuries of population and cultural decline and economic regression. Although many different causes have been offered to explain individual collapses, it is still necessary to develop a more general explanation. In this paper we attempt to build a simple mathematical model to explore the essential dynamics of interaction between population and natural resources. It allows for the two features that seem to appear across societies that have collapsed: the stretching of resources due to strain placed on the ecological carrying capacity, and the division of society into Elites (rich) and Commoners (poor).
The Human And Nature DYnamical model (HANDY) was inspired by the Predator and Prey model, with the human population acting as the predator and nature being the prey. When small, Nature grows exponentially with a regeneration coefficient γ, but it saturates at a maximum value λ. As a result, the maximum regeneration of nature takes place at λ/2, not at the saturation level λ. The Commoners produce wealth at a per capita depletion rate δ, and the depletion is also proportional to the amount of nature available. This production is saved as accumulated wealth, which is used by the Elites to pay the Commoners a subsistence salary, s, and pay themselves κs, where κ is the inequality coefficient. The populations of Elites and Commoners grow with a birth rate β and die with a death rate α which remains at a healthy low level when there is enough accumulated food (wealth). However, when the population increases and the wealth declines, the death rate increases up to a famine level, leading to population decline.
We show how the carrying capacity —the population that can be indefinitely supported by a given environment [Catton, 1980]— can be defined within HANDY, as the population whose total consumption is at a level that equals what nature can regenerate. Since the regrowth of Nature is maximum when y = λ/2, we can find the optimal level of depletion (production) per capita, δ∗ in an egalitarian society where xE ≡ 0, δ∗∗(≥ δ∗) in an equitable society where κ ≡ 1, and δ∗∗∗ in an unequal society where xE ≥ 0 and κ > 1.
In sum, the results of our experiments, discussed in section 6, indicate that either one of the two features apparent in historical societal collapses —over-exploitation of natural resources and strong economic stratification— can independently result in a complete collapse. Given economic stratification, collapse is very difficult to avoid and requires major policy changes, including major reductions in inequality and population growth rates. Even in the absence of economic stratification, collapse can still occur if depletion per capita is too high. However, collapse can be avoided and population can reach equilibrium if the per capita rate of depletion of nature is reduced to a sustainable level, and if resources are distributed in a reasonably equitable fashion.
In the upcoming generations of HANDY, we plan to develop several extensions including: (1) disaggregation of Nature into nonrenewable stocks, regenerating stocks, and renewable flows, as well as the introduction of an investment mechanism in accessibility of natural resources, in order to study the effects of investment in technology on resource choice and production efficiency; (2) making inequality (κ) endogenous to the model structure; (3) introduction of “policies” that can modify parameters such as depletion, the coefficient of inequality, and the birth regions to represent countries with different policies, trade of carrying capacity, and resource wars.
Aprofundando os novos paradigmas
апреля 16, 2015 2:55 - no comments yetEm post anterior escrevi brevemente sobre a história do paradigma dito “cartesiano-mecanicista”, hoje dominante nas Universidades, na mídia e no senso comum. Tratei do seu o papel positivo que esse teve na história humana e apontei também seu esgotamento. Essa forma de ser e estar no mundo privilegia a racionalidade, a objetividade e a medição para chegar ao conhecimento. Do mesmo modo, para afrontar a complexidade do mundo, esse paradigma divide os conhecimentos em partes desconectadas umas das outras, para se tornarem passíveis de análise objetiva. Para evitar confusões no entendimento, ele cultiva a certeza e evita respostas múltiplas, assumindo que apenas uma é a verdade. Por fim, para entender e agir sobre o mundo, esse paradigma prevê uma hierarquia que organiza o pensamento e a ação.
Observe como essas maneiras de pensar lhe parecem de modo geral bem naturais...na medicina, por exemplo, esse é o paradigma dominante e todos somos “tratados” segundo esse ponto de vista, item por item. Nos consultórios não há muita conversa, só se acredita nos números dos exames; dividem cada parte de nós em especialidades e as causas profundas e integradas de nossos males não são buscados; procura-se um diagnóstico/certeza para ter uma única prescrição e no final quem tem o poder é o médico e não nós, que somos desaconselhados até a abrir os resultados dos nossos próprios exames.
Se observarmos com atenção, veremos que as consequências de organizarmos o mundo a partir do paradigma cartesiano-mecanicista são: tornar naturais a dominação e a desigualdade; ter foco na quantidade e na análise fria dos fatos, excluindo ou deixando em segundo plano as razões do coração e da intuição; fazer da competição pela verdade única, por posições sociais, pela atenção dos outros, etc., a norma do agir pessoal e coletivo, e, por fim, é ver a exploração dos recursos naturais e humanos como absolutamente convenientes, sem se questionar de fato sobre o desperdício de recursos ou o sofrimento no trabalho, ou pensar na cooperação, na reciclagem e na restauração de recursos.
A necessidade de construir um mundo mais justo, democrático, cooperativo e sustentável exige, politicamente, outro tipo de paradigma. Porém, é da ciência mesma, em diferentes abordagens, que chegam os questionamentos mais firmes à validade do paradigma instaurado por Descartes e Newton séculos atrás. Desde o início do século XX, a física, a biologia, a psicologia, a filosofia, a sociologia etc. identificam as fragilidades do paradigma anterior para explicar e viver o mundo e propõem um paradigma emergente, com diferentes denominações: quântico, holístico, sistêmico, complexo, orgânico ou ecológico. Esse novo paradigma, como se verá, favorece a interdependência, a intuição e a síntese, a cooperação, a qualidade, a conservação dos recursos e o poder compartilhado.
A física foi a primeira a insurgir-se contra o determinismo mecanicista, pois, no microcosmo do átomo, não há certezas, apenas possibilidades. Um dos marcos dessa reação foi o Princípio da Incerteza estabelecido em 1927 por Heisenberg, pelo qual aceita-se que, sendo os elétrons ao mesmo tempo ondas (energia) e partículas (massa), não é possível afirmar categoricamente sua localização (massa), em dado momento, ou sua velocidade (energia). Para entender o átomo, o pesquisador precisa lidar com estimações e não com certezas; ele precisa fazer escolhas de observação assumindo naquele momento que o átomo comporta-se como onda ou como partícula. Mais desafiador ainda: saber que o próprio pesquisador interfere nos resultados de suas pesquisas pela simples proximidade que seus instrumentos têm do átomo.
Então, se os resultados de uma pesquisa são determinados pelo observador, pelo Princípio da Incerteza, como aceitar verdades absolutas? Como não entender que cada ponto de vista humano depende de sua história, cultura e posição social?. A academia insiste ainda hoje, quase cem anos depois das descobertas de Heisenberg, que existe uma neutralidade científica, e que é possível ao pesquisador não enviesar os resultados de seu trabalho pelo seu próprio olhar... A antropologia ensina que o máximo que podemos fazer é estarmos atentos e entendermos qual é o nosso próprio ponto de vista e integrá-lo à pesquisa. Só assim seremos capazes de ver o outro, os outros e entendê-los.
A física quântica trouxe ainda outro questionamento ao paradigma racionalista ao descobrir o que é chamado de “não localidade quântica”. No momento em que um elétron, por exemplo, passa de um nível energético a outro no interior do átomo, não se consegue identificar sua localização. Objetos quânticos deixam de existir “aqui” e simultaneamente passam a existir “lá” e não podemos dizer que passaram pelo espaço interveniente. É como se eles “não estivessem nesse mundo”, fazendo com que se possa supor a existência de outra dimensão, que não está no aqui e agora. Na verdade, a ciência já descobriu a existência de diversas dimensões, dessas primeiras descobertas quânticas até hoje, e nosso aparato racional é limitado para entender o funcionamento dessas outras dimensões. É a intuição, segundo o próprio Einstein, que nos ajuda a entender o mundo, inexplicável apenas com o uso da racionalidade.
A física quântica é tão cheia de exemplos desconcertantes para o paradigma cartesiano-mecanicista, que o novo paradigma emergente é chamado de quântico por muitos estudiosos. Um dos mais renomados entre eles é Amit Goswami e, no Brasil, Wallace Liimaa, é um dos divulgadores mais conhecidos e inspirados do paradigma emergente. Seu livro, “Princípios quânticos no cotidiano: a dimensão científica da consciência, espiritualidade, transdisciplinaridade e transpessoalidade” é uma boa leitura. Ali ele trata de outros fenômenos que a física quântica explica bem, como a conexão e a interdependência entre todas as coisas (“Bootstrap”) e o “salto quântico”, no qual um acúmulo de mudanças quantitativas favorece uma mudança qualitativa, em saltos.
Tenho usado esses princípios em meu blog para tratar das diferentes “revoluções tranquilas” que estão acontecendo hoje no mundo e que podem estar prenunciando um salto qualitativo de dimensões políticas enormes que é o advento de uma cidadania planetária engajada e conectada pela internet.
Outro pensador que vem contribuindo destacadamente para o desenvolvimento do novo paradigma é Edgar Morin, com sua “Teoria da Complexidade”. Ciente dos avanços das descobertas das ciências exatas, como a física, Morin traz essas novas percepções para o campo das ciências humanas e explica que complexo é diferente do complicado: Enquanto o complicado tende ao ininteligível, incompreensível, o complexo tende ao indeterminado, às respostas múltiplas e à conexão e interdependência entre todas as coisas e seres. A Teoria da Complexidade propõe a superação da dualidade, e sugere a lógica do “terceiro incluído”, ou seja, convida-nos a imaginar outras possibilidades, o caminho do meio budista. Posso dar alguns exemplos: entre o capitalismo e o socialismo, trazer a concepção de uma “economia plural”, como propõe Jean Louis Laville; entre democracia representativa e democracia participativa, inovar com a concepção de uma liderança compartilhada, que sugiro no meu livro “os novos coletivos cidadãos”; entre desigualdade e igualitarismo, a possibilidade de uma equanimidade, na qual os diferentes são tratados diferentemente, mas sempre buscando a justiça para o todo.
Outra contribuição excepcional para a superação do paradigma racionalista vem das descobertas do biólogo Rupert Sheldrake, com sua “Teoria dos Campos Mórficos” e a ideia da “ressonância mórfica”. Para entender melhor a teoria, o próprio Rupert conta a história do “centésimo macaco”: em um conjunto de ilhas habitadas por macacos de uma determinada espécie, um macaco descobre por acaso o prazer de comer raízes lavadas na água do rio. Outros macacos observam e fazem o mesmo, mas ao chegar ao macaco de número 99, a mudança alcançaria um patamar no qual não é mais necessário o contato direto para aprender a nova maneira de fazer. Assim macacos de outras ilhas, sem qualquer contato, começam a fazer o mesmo, pelo mecanismo de ressonância mórfica.
Para Sheldrake, os campos mórficos são estruturas que se estendem no espaço-tempo e moldam a forma e o comportamento de todos os sistemas do mundo material. Assim, quando uma mudança necessária (que harmoniza um processo) se dá em pequena escala, ela se propaga de forma linear, causal (um macaco que aprende vendo o outro fazer) mas também dentro da não localidade quântica, independente de contato direto, através da ressonância mórfica. Esse seria o motivo que explicaria porque um conjunto suficientemente grande de pessoas meditando juntas pela paz seria capaz de fazer decrescer o número de crimes cometidos nas imediações de Washington, como nos conta Gregg Braden.
A psicologia é um dos campos de estudos mais contributivos para a emergência de um novo paradigma. Desde o início do século XX, quando Gustav Jung propôs o conceito de “Inconsciente Coletivo”, ele estava muito próximo dos campos mórficos de Rupert Sheldrake, descobertos no final do século. Jung descobriu que se pode encontrar em diferentes culturas símbolos muito próximos, independente de terem tido contato. Um exemplo é o mito bíblico da vida que nasce do barro, como o qual Deus fez o corpo do homem, ou a ideia de que o bem mora no céu, no alto, e o mal nas profundezas. Essas simbologias estão presentes em muitas e muitas culturas espalhadas pelo mundo e constituem, segundo Jung, “arquétipos” que os humanos partilham. O conjunto dos arquétipos constitui uma inteligência compartilhada, que não precisa de contato direto, e seria explicada, hoje se sabe, também pela “não localidade quântica”.
Outro exemplo da contribuição da psicologia é o trabalho sobre as “constelações familiares”, de Bert Hellinguer. Esse profissional e pesquisador defende que uma situação vivida pela alma de um indivíduo pode ser sentida por outros não presentes. Assim, uma dada relação interpessoal interpretada por outras pessoas em uma sessão de psicoterapia pode revelar o que sente cada uma das partes e também a constelação de sentimentos interdependentes daquela situação. Pode-se assim curar uma relação dolorida nesse processo no qual um interpretante comunica-se com a alma do interpretado e pode lhe transferir, por exemplo, a compreensão e o perdão para dada situação. Numa interessante entrevista a uma jornalista que perguntava como era possível entender o funcionamento da terapia, Bert Hellinguer responde algo como “tenho 40 anos vendo o processo funcionar; sei que não é possível compreendê-lo pela forma atual de pensar, portanto, não quero explicar, convido-a a viver isso”.
As mudanças de paradigmas, explicadas por Thomas Kuhn em seu livro “A estrutura das revoluções científicas” e muito interessantemente mostradas em um pequeno vídeo, podem ser lentas, mas são, geralmente, largas. Gente de várias áreas, em diversos países, trabalham na direção de um novo modo de ver o mundo, de compreendê-lo e de agir sobre ele, e de repente, num salto quântico, elas passam a ser mais e mais escutadas e compreendidas. Mudar de paradigma não significa enterrar completamente o anterior, que pode continuar a ser válido em aspectos da existência e complementado pelo novo.
Os novos paradigmas propiciam novas formas de pensar, novos valores e novas práticas. Coerente com o que se disse até aqui em relação ao paradigma emergente da complexidade, não se quer negar a lei da gravidade de Newton, nem o princípio da dúvida racional de Descartes, nem o papel da racionalidade para vivermos melhor no mundo, nem a utilidade dos números e das especialidades no saber. Defende-se a integração de novas formas de entender o mundo, válidas em muitos e muitos campos e que inspirem outros modos de conhecimento e organização da vida comum.
Para tentar resumir o que foi dito até aqui, pode-se dizer que a passagem do paradigma cartesiano-mecanicista para o paradigma holístico ecológico, significará passar da lógica auto afirmativa para a integrativa ou do pensamento único para diversidade, ou do “ou” para o “e”; de uma inteligência apenas racional para uma inteligência múltipla, incluindo a intuição, a inteligência do corpo e a do coração; do privilégio da análise para as tentativas de síntese que suscitam ação e nova análise; da forma reducionista e compartimentada de conhecimento para uma abordagem holística e sistêmica; da ação linear, que explora recursos e pessoas, para a não linear, que foca na conservação da riqueza humana e natural.
Do mesmo modo, os valores predominantes nos dois paradigmas são diferentes e passa-se da dominação para parceria e para a liderança partilhada; da expansão, (seja ela territorial, de mercados, de riqueza, implicadas numa visão quantitativa) para a conservação, a manutenção; da competição para a cooperação; do curto para o longo prazo, dos fins justificam os meios para a valorização do processo, do caminho se faz ao andar... Essas formas de pensar e de valorar as coisas e os processos são próximas da energia feminina... mas isso é tema de outro post.
Cidades do Futuro: sustentabilidade ecológica
апреля 15, 2015 1:04 - no comments yetComo ter bases seguras para saber o que é e o que não é sustentável e como construir cidades mais ecológicas? O conceito de sustentabilidade é tão comentado que parece difícil apreendê-lo em profundidade. Nas discussões sobre cidades sustentáveis ele acaba por se reduzir a questões tecnológicas do tipo reciclagem de lixo, reuso de água, tetos verdes, etc. Essas práticas, embora importantes, são apenas instrumentos de sustentabilidade, mas quais os critérios para defini-la em cada campo da intricada questão urbana? Fritjof Capra, em seu incansável trabalho para difundir novos paradigmas, trouxe um conjunto de conceitos que se inspiram no próprio modo como a Natureza sustenta a vida incansavelmente.
Assim, a partir da observação e do estudo dos sistemas vivos oriundos de autores diversos (Ilya Prigogine, Humberto Maturana, Francisco Varela, Gregory Bateson, etc. ) ele chama de sustentabilidade ecológica o conjunto de práticas da Teia da Vida: os ciclos, as redes, as parcerias, a diversidade e a resiliência, sustentadas pela energia solar. Examinar cada uma dessas práticas é nossa tarefa a seguir, pois buscar um funcionamento das cidades o mais próximo possível de como a Natureza funciona significa ser sustentável. A própria longevidade do planeta Terra, com seus 4,56 bilhões de anos de existência e centenas de mutações dramáticas que transformaram completamente sua superfície e sua dinâmica, mostra que ela se sabe se auto sustentar. Se a espécie humana continuar a existir sem se inspirar nos processos naturais, é ela que vai se extinguir. Acesse aqui um interessante filme mostra a Terra depois de nós.
Parâmetros da sustentabilidade ecológica, para ajudar a pensar os serviços, equipamentos e modos de vida urbanos:
- Redes
Em todas as escalas da natureza, encontramos sistemas vivos alojados dentro de outros sistemas vivos, de modo interdependente. Cada folha, cada célula, cada rio, cada animal é constituído de redes e se encontra dentro de redes maiores. Os limites entre esses sistemas não são limites de separação, mas limites de identidade, pois todos os sistemas vivos comunicam-se uns com os outros e partilham seus recursos, transpondo seus limites. A saúde de cada um, sua harmonia e seu desenvolvimento melhora o sistema geral, assim como esse interfere no bem estar de cada um/a.
Como organizar o abastecimento alimentar, o trânsito, a comunicação, etc. em redes?
Ciclos
Todos os organismos vivos, para permanecer vivos, têm de alimentar-se de fluxos contínuos de matéria e energia tiradas do ambiente em que vivem; e todos os organismos vivos produzem resíduos continuamente. Entretanto, um ecossistema, considerado em seu todo, não gera resíduo nenhum, pois os resíduos de uma espécie são os alimentos de outra. Assim, a matéria recicla-se continuamente dentro da teia da vida.
Como organizar o abastecimento de energia, o lixo, os esgotos, etc. em ciclos nas cidades?
- Alianças
As trocas de energia e de recursos materiais num ecossistema são sustentadas por uma cooperação generalizada. A vida não tomou conta do planeta pela violência, mas pela cooperação. Nenhum ser é capaz de viver sem o apoio de outros.
Como organizar a economia, a política, a educação, etc. através de parcerias?
- Diversidade
Os ecossistemas alcançam a estabilidade e a capacidade de recuperar-se dos desequilíbrios por meio da riqueza e da complexidade de suas teias ecológicas. Quanto maior a biodiversidade de um ecossistema, maior a sua resistência e capacidade de recuperação.
Como organizar a habitação, a socialização, a paisagem etc. de modo diversificado?
- Flexibilidade
Um ecossistema é uma rede em equilíbrio dinâmico, em permanente flutuação. Sua flexibilidade é uma consequência dos múltiplos elos e anéis de realimentação que mantêm o sistema sadio. Nenhuma variável chega sozinha a um valor máximo; todas as variáveis flutuam em torno do seu valor ótimo.
Como organizar a saúde, as leis urbanísticas, o consumo etc. com flexibilidade?
- Energia Solar
É a energia solar, transformada em energia química pela fotossíntese das plantas verdes, que move todos os ciclos ecológicos.
Como utilizar melhor essa imensa força de vida no dia a dia das cidades?
Cidades do Futuro: Auroville
апреля 13, 2015 13:09 - 2 commentsEscrever sobre esse vasto tema exige referências, para que possamos penetrar o desconhecido futuro com luzes que nos ajudem a caminhar. A cidade de Aurovile será a primeira referência com sua proposta de conectar o desenvolvimento do indivíduo ao do coletivo para construir um mundo melhor; a sustentabilidade ecológica de Fritjof Capra, será a segunda referência, e a percepção quântica e complexa do mundo, a terceira, em posts a seguir. Comecemos por Auroville, cidade fundada há quase 50 anos no sul da India, com a proposta de ser uma cidade universal da família humana na qual “homens e mulheres de todos os países possam viver em paz e em progressiva harmonia, a despeito de suas diferentes crenças, ideologias e nacionalidades”.
Auroville conta hoje com cerca de 2500 habitantes, vindos de 50 países, que continuam a buscar a realização do sonho dos seus idealizadores: Sri Aurobindo e sua discípula, Mirra Alfassa, chamada por todos de “Mãe”. Sri Aurobindo foi um filósofo e místico indiano que criou a Yoga Integral - que integra evolução individual e evolução do entorno pelo trabalho - e a noção da evolução humana em busca do estágio “supramental”, ou de integração com o divino. A Mãe teve uma visão de construir uma cidade que favorecesse o processo evolutivo humano descrito por Sri Aurobindo e conseguiu mobilizar apoios no mundo inteiro para a realização de seu projeto. O chamado da Mãe, apoiado pela Unesco, trouxe para a Índia jovens de vários países que começaram a construir uma cidade onde o comunitarismo, a íntima relação com a Natureza e a tecnologia aplicada deram materialidade à inspiração espiritual.
A primeira tarefa dos habitantes de Auroville foi começar a restauração de uma área de cerca de dois mil hectares, completamente desertificada e tirar daí seu sustento. O trabalho árduo de construir diques e plantar mais de dois milhões de árvores deu frutos e hoje se vê uma extensa floresta em todo o perímetro rural/urbano. Enquanto moravam em cabanas e plantavam árvores, os habitantes de Auroville aprendiam a grande tarefa de viver juntos e se autogovernar. Em meio a muitas línguas, culturas, religiões e visões pessoais de mundo, partilhavam o trabalho e a luta pela sobrevivência, exatamente como as primeiras tribos humanas. A primeira grande diferença é que Auroville nunca foi isolada, mantendo laços com os países de origem de seus habitantes, com instituições de peso como a Unesco e o governo da India e com as comunidades do entorno. A segunda diferença é que eles tinham um projeto para si mesmos.
Ao tempo em que construíam a base de seu sustento, os aurovilianos trabalhavam na construção da cidade, a partir do plano urbano do arquiteto francês Roger Anger. Esse plano, que propunha uma espiral representando a evolução humana na forma de uma galáxia, desenvolve-se em torno de um ponto, uma velha e imensa árvore Banyan e de uma construção, o Matrimandir, o templo da mãe divina. Fiel à ideia de uma espiritualidade sem religiões, no Matrimandir apenas o silêncio e raio de sol no centro de um salão circular inteiramente branco representam o caminho para o mundo espiritual. O templo levou cerca de 40 anos para ser construído, mas é uma obra prima (ver fotos), que conta ainda com 12 salas de meditação sobre os atributos da mãe divina: receptividade, progresso, coragem, bondade, generosidade, equanimidade, paz, sinceridade, humildade, gratidão, perseverança e aspiração. O templo é frequentado hoje por milhares de visitantes que têm 20 minutos para meditar no grande salão.
As necessidades de sobrevivência e a relação íntima dos aurovilianos com a Natureza foram a base para o desenvolvimento de muitas tecnologias sustentáveis desde os anos 70: energia solar, eólica e de biomassa; agricultura orgânica e cultivo de plantas medicinais da tradição ayurvédica indiana; construções ecológicas com materiais locais de baixo uso energético; tratamento de águas servidas para reaproveitamento nos jardins e reflorestamento; reciclagem do lixo; cozinha comunitária a vapor usando o calor do sol... e tantas outras pesquisas aplicadas. Ao mesmo tempo, a comunidade desenvolveu um sistema educacional e de saúde inovadores, respeitando os princípios fundadores, assim como foram organizados um sistema econômico de partilha e uma governança horizontal.
Hoje Aurovile prepara-se para festejar seus 50 anos em 2018 e tem no turismo sua principal base econômica. Pessoas de todos os lugares, atraídas por esse imenso projeto e seus desdobramentos visitam a cidade, que ainda é, contraditoriamente, uma grande floresta. Os desafios de Auroville, de se manter fiel aos princípios do projeto de unidade humana universal e de integrar-se ao entorno rural dos vilarejos indianos; de desenvolver-se sem sucumbir à lógica capitalista que é sua principal fonte de financiamento através do turistas, exigem uma visão não linear de mundo. A complexidade, ou não dualidade, a integração de desafios contraditórios e a conexão quântica do indivíduo com o todo, podem ser caminhos para enfrentar esses desafios. Em Auroville, mas também talvez em cada um/a e no mundo inteiro.
Notícias do 12o Fórum Social Mundial que está acontecendo em Túnis
марта 26, 2015 7:17 - no comments yetQuais desafios para uma cidadania dos povos da Terra?
A marcha de abertura do FSM teve como tema “Povos do Mundo Unidos contra o Terrorismo” e terminou simbolicamente em frente ao Museu do Bardo, atingido recentemente por um ataque que causou a morte de 22 pessoas. Esse ato demonstra a constituição em andamento de uma consciência mundial para enfrentar desafios que são comuns, como a violência, mas que atingem diferentemente os povos da Terra. O Fórum Social Mundial é hoje o maior encontro da cidadania planetária e permite assim esse tipo de encontro de muitas e muitas redes que estão se tecendo internacionalmente para construir um mundo melhor.
A relação do Brasil com esse evento é profunda já que das suas 12 edições, cinco ocorreram no Brasil. O primeiro Fórum Social Mundial encontro aconteceu em Porto Alegre, em 2001 e inaugurou o lema “Um outro mundo possível”, em contraponto ao Fórum Econômico Mundial, que reúne grandes empresários e políticos em Davos, na Suíça. Outros eventos FSM, que aos poucos incorporou a ideia de que esse outro mundo possível “está em construção”, se passaram em países tão diferentes quanto a Índia, a Venezuela, o Mali, o Paquistão, o Quênia e por duas vezes na Tunísia, em 2013, após a Primavera Árabe, e agora.
O FSM da Tunísia conta com cerca de 60 mil participantes e envolve mais de mil atividades promovidas por instituições engajadas em questões políticas, ambientais e sociais vindas do mundo inteiro. Todas acreditam que o desafio de construir uma civilização mais humana passa pela união dos povos da Terra e buscam se encontrar atualmente a cada dois anos para aprofundar esses laços e discutir soluções. A rede internacional Diálogos em humanidade é uma dessas instituições e propõe um texto de Patrick Viveret, que traduzi a seguir, sobre linhas de ação concreta para essa cidadania planetária. É importante começar a pensar sobre isso.
Contribuição à discussão sobre o futuro do FSM - Patrick Viveret
Essa nota se funda em duas hipóteses:
1) Temos de parar de deixar que o capitalismo financeiro se apresente como motor da mundialização, pois esse não só não está interessado em resolver os desafios globais que a humanidade enfrenta, como, ao contrário, agrava-os pelas práticas da oligarquia financeira. Precisamos construir os elementos de uma consciência global dos "povos da Terra." Ao invés de uma globalização financeira destrutiva dos vínculos ecológicas sociais e culturais precisamos de uma "mundialidade" (no sentido de Edouard Glissant) que alimente estratégias de vínculo do econômico e do financeiro (solidário) ao tecido ecológico, social e cultural dos territórios e dos povos;
2) Neste contexto, é necessário propor uma alternativa ao duplo retrocesso que está ocorrendo devido à relação simétrica entre, de um lado, o fundamentalismo de mercado (destruidor de identidades, culturas, laços sociais) e, de outro, o fundamentalismo identitário. Uma forma do fundamentalismo identitário é o terrorismo, que responde de modo mortal ao fundamentalismo de mercado e exclui outras identidades, com pretextos religiosos. A alternativa necessária é o surgimento de uma consciência cidadã mundial que evite o risco de caos e de guerra que o confronto entre estes dois fundamentalismos pode crescentemente provocar. Para tanto, é necessário demonstrar a pertinência programática e estratégica desta via.
Três campos de trabalho devem ser prioritários e eles são portadores de três características:
*Eles são mundiais e correspondem a desafios cruciais que colocam a questão não só dos bens comuns da humanidade (como o clima) mas também da capacidade de que a humanidade se constitua ela mesma em um bem comum;
*Eles são objeto de intensas atividades, proposições e experimentações da sociedade civil que frequentemente é mais avançada que os Estados e as multinacionais em sua capacidade de propor soluções a esses desafios;
*Eles podem ser objeto de alianças dinâmicas pois dispõem de forte apelo junto à opinião pública mundial e a oligarquia financeira está numa situação de fragilidade para se opor ao seu crescimento;
É o caso, por exemplo, do desafio do clima através da Conferência que acontecerá em dezembro de 2015 em Paris, a COP 21, para a qual a mobilização cidadã está muito forte e pode se aliar ao encontro mundial de cidades e territórios que acontecerá também na França, em Lyon, no início de julho 2015.
É o caso de alternativas à lógica de guerra de civilizações nas quais se opõe à ideia de que existam bárbaros em certos grupos humanos. Essa alternativa é a perspectiva de aprofundamento da fraternidade humana contida no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se barbárie existe, ela é possível em qualquer lugar e para vencê-la é preciso crescer em humanidade e não em armas e militarização. Trata-se, de fato, de um movimento ante guerra mundial que precisa ser construído.
É o caso também, e se tratará com mais detalhe nesse ponto, da luta mundial contra a evasão fiscal que se constitui na melhor alternativa à lógica do fundamentalismo de mercado e à oligarquia financeira, e o melhor antídoto contra o fundamentalismo identitário e o terrorismo.
Nesse terreno os montantes são substanciais. O ex-chefe da Mc Kinsey estima que o dinheiro que circula em paraísos fiscais está no intervalo entre 26 e 32 trilhões de dólares. Observa-se que a oligarquia financeira está perdendo a batalha da legitimidade desses paraísos fiscais, por longo tempo apresentados como justificáveis, e deve retirar-se gradualmente, embora seu enorme lobby permite retardar ou reduzir a pressão cidadã.
Comecemos pelo exemplo da Europa, mas seria interessante ver se este é o caso em outros continentes. Vimos assim que:
a) o Comissário europeu Michel Barnier, ainda que de família política conservadora, reconhece que a evasão fiscal anual representa quase um trilhão de euros, b) O Parlamento Europeu e a Comissão, também liderados por forças conservadoras estão sendo obrigados a considerar medidas eficazes contra a evasão fiscal, sob a pressão da opinião pública que tem sido alertada por iniciativas cidadãs; c) até mesmo o novo presidente da comissão, o ex-primeiro-ministro de Luxemburgo, notório paraíso fiscal, tem que limpar-se da suspeita que paira sobre ele e avançar nessa direção.
É óbvio que estes pontos fracos são relativos e se a pressão cidadã diminuir os lobbies financeiros rapidamente recuperarão o terreno perdido. Mas, no caso oposto, há potenciais vitórias parciais reais transformando os recuos temporários da oligarquia financeira em vitórias reais para forças cidadãs do mundo. Seria uma pena não usar tais oportunidades. Isto significa usar meios lúdicos e formas populares de ação, como o exemplo dado pela requisição cidadã de cadeiras e poltronas em uma agência bancária HSBC na qual a imprensa demonstrou a existência de uma evasão fiscal maciça. O objetivo da ação é simples: entregaremos novamente as cadeiras quando o banco reembolsar as quantias! Isso ajuda a construir uma forte alternativa simbólica sobre o tema: bancos ajudam empresas multinacionais e os membros da oligarquia financeira a realocar seus ativos em paraísos fiscais. Nós, cidadãos e cidadãs, procederemos à “deslocalização” desses ativos/assentos e os usaremos como um meio de troca na luta contra a evasão fiscal. Tais ações são facilmente reproduzíveis (este já é o caso de ações visando o BNP) e obrigará a oligarquia financeira a reagir. Se ela não se movimentar, abrirá o caminho de uma repetição em massa do movimento. Se ela iniciar processos judiciais contra este, os julgamentos sobre a evasão fiscal podem desempenhar um grande papel no uso de alavancas legais na luta da sociedade civil global.
A importância dos mecanismos jurídicos:
A alavancagem legal é realmente uma boa base comum para uso nos três exemplos a seguir:
- No campo do clima e mais amplamente no reconhecimento dos crimes ecológicos (ecocidas) em conexão com as discussões da Cúpula dos Povos no Rio em 2012;
- Em matéria de reconhecimento de crimes contra a humanidade que não podem ser reduzidos apenas aos ataques terroristas atuais, mas incluir, por exemplo, o uso da tortura pelos Estados Unidos durante o governo Bush. Nesta perspectiva, a organização de sessões cidadãs no Tribunal Penal Internacional poderia ser considerada. A batalha pela sua admissibilidade seria um primeiro desafio para preparar o caminho, em caso de bloqueio, à iniciativa de criar um Tribunal Internacional da Cidadania.
No que diz respeito à alavanca legal na luta contra a evasão fiscal, ela permitiria antecipar, se houver bloqueios na sua implementação, um início de fiscalização global dos cidadãos sobre os impostos, primeiros nos impostos nacionais sobre as atividades perigosas para a humanidade (por exemplo, armas). Uma quota desses impostos poderia ser atribuída a um fundo global cidadão a ser usado, por exemplo, na luta contra as mudanças climáticas e no financiamento dos objetivos vitais, como a luta contra a fome, o acesso a água potável, aos cuidados básicos de saúde, etc. ...
Pequenos belos detalhes da Índia
марта 23, 2015 12:54 - no comments yetEsse imenso e variado país, com suas centenas de deuses e de línguas, milhares de comunidades étnicas distintas e tantas religiões diferentes é quase um planeta inteiro. É difícil falar sobre ele como um todo para além da yoga, de Gandhi e das mandalas, sobre os quais publicarei posts mais adiante.
Começarei por mostrar apenas alguns belos detalhes:
Como as mulheres se enfeitam e perfumam usando flores no cabelo:
Como protegem as casas com desenhos para enfeitar e trazer sorte (rongoli) e como ninguém entra em casa com sapatos:
Como sacralizam os animais, vaca, cobra, elefante, macaco...
Multidões nas ruas...qual sinal dos tempos?
марта 17, 2015 2:20 - no comments yet
Essa década tem sido provavelmente a que mostra o maior número de pessoas manifestando-se nas ruas em todo a história: a Primavera Árabe, que começou na Tunísia, passou pelo Egito e se espalhou pelo mundo muçulmano; os americanos do Occupy Wall Street que ocuparam na verdade praças em todo o país e não só em Nova York; os jovens espanhóis, franceses e outros europeus do movimento “Los indignados” contra a decadência que lhes rouba o futuro; os brasileiros das jornadas de junho de 2013 por um melhor serviço público e contra os desmandos na política; os indianos do movimento contra a corrupção que acabou por formar o AAP Party, “Partido do Homem Comum”; os jovens acampados por meses em Hong Kong lutando pela democracia ...isso só para falar de alguns. Agora, de novo, os brasileiros tomaram as ruas.
Para além das explorações partidárias conjunturais desses movimentos, como se faz no Brasil hoje, vê-se uma tendência exponencial de engajamentos políticos da cidadania planetária por uma nova política. O descontentamento com a política pode ser identificado em qualquer conversa com cidadãos comuns de qualquer parte do mundo. A indignação com a condução da política no sistema de democracia representativa (ou de ditaduras remanescentes) é geral e evidencia a busca de novos sistemas. As populações ao redor do planeta estão cada vez mais educadas, informadas e têm meios de mobilização autônomos, através das redes sociais, para denunciar a estreiteza de uma organização política baseada no dinheiro.
Os rumos que esses movimentos têm tomado são muito diferenciados e refletem seu estágio inicial. Há os que foram parcialmente ou totalmente derrotados (por enquanto), como em Hong Kong, no Egito e em outros países do mundo árabe; os que aparentemente se desmobilizaram (por enquanto), como o Occupy e os Indignados; há os que ganharam eleições com propostas de uma política mais participativa, como em Nova Delhi, capital da India e os que ainda estão por demais misturados com a política comezinha e contextual, como no Brasil, para mostrarem toda sua força transformadora. Tudo isso que se vê, olhando no largo movimento da história, conduzirá, com muito trabalho, a uma política melhor, com mais democracia, mais controle social e mais limitações na influência do poder econômico sobre os governos dos povos. Mais promissor ainda: estamos construindo um movimento planetário, que ainda não se dá conta da sua internacionalização, mas isso é uma questão de tempo. Os povos da terra, unidos, jamais serão vencidos!