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12 de Janeiro de 2009, 22:00 , por Desconhecido - | 1 pessoa seguindo este artigo.

Aprofundando os novos paradigmas

16 de Abril de 2015, 2:55, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Em post anterior escrevi brevemente sobre a história do paradigma dito “cartesiano-mecanicista”, hoje dominante nas Universidades, na mídia e no senso comum. Tratei do seu o papel positivo que esse teve na história humana e apontei também seu esgotamento. Essa forma de ser e estar no mundo privilegia a racionalidade, a objetividade e a medição para chegar ao conhecimento. Do mesmo modo, para afrontar a complexidade do mundo, esse paradigma divide os conhecimentos em partes desconectadas umas das outras, para se tornarem passíveis de análise objetiva. Para evitar confusões no entendimento, ele cultiva a certeza e evita respostas múltiplas, assumindo que apenas uma é a verdade. Por fim, para entender e agir sobre o mundo, esse paradigma prevê uma hierarquia que organiza o pensamento e a ação.

Observe como essas maneiras de pensar lhe parecem de modo geral bem naturais...na medicina, por exemplo, esse é o paradigma dominante e todos somos “tratados” segundo esse ponto de vista, item por item. Nos consultórios não há muita conversa, só se acredita nos números dos exames; dividem cada parte de nós em especialidades e as causas profundas e integradas de nossos males não são buscados; procura-se um diagnóstico/certeza para ter uma única prescrição e no final quem tem o poder é o médico e não nós, que somos desaconselhados até a abrir os resultados dos nossos próprios exames.

Se observarmos com atenção, veremos que as consequências de organizarmos o mundo a partir do paradigma cartesiano-mecanicista são: tornar naturais a dominação e a desigualdade; ter foco na quantidade e na análise fria dos fatos, excluindo ou deixando em segundo plano as razões do coração e da intuição; fazer da competição pela verdade única, por posições sociais, pela atenção dos outros, etc., a norma do agir pessoal e coletivo, e, por fim, é ver a exploração dos recursos naturais e humanos como absolutamente convenientes, sem se questionar de fato sobre o desperdício de recursos ou o sofrimento no trabalho, ou pensar na cooperação, na reciclagem e na restauração de recursos.

A necessidade de construir um mundo mais justo, democrático, cooperativo e sustentável exige, politicamente, outro tipo de paradigma. Porém, é da ciência mesma, em diferentes abordagens, que chegam os questionamentos mais firmes à validade do paradigma instaurado por Descartes e Newton séculos atrás. Desde o início do século XX, a física, a biologia, a psicologia, a filosofia, a sociologia etc. identificam as fragilidades do paradigma anterior para explicar e viver o mundo e propõem um paradigma emergente, com diferentes denominações: quântico, holístico, sistêmico, complexo, orgânico ou ecológico. Esse novo paradigma, como se verá, favorece a interdependência, a intuição e a síntese, a cooperação, a qualidade, a conservação dos recursos e o poder compartilhado.

A física foi a primeira a insurgir-se contra o determinismo mecanicista, pois, no microcosmo do átomo, não há certezas, apenas possibilidades. Um dos marcos dessa reação foi o Princípio da Incerteza estabelecido em 1927 por Heisenberg, pelo qual aceita-se que, sendo os elétrons ao mesmo tempo ondas (energia) e partículas (massa), não é possível afirmar categoricamente sua localização (massa), em dado momento, ou sua velocidade (energia). Para entender o átomo, o pesquisador precisa lidar com estimações e não com certezas; ele precisa fazer escolhas de observação assumindo naquele momento que o átomo comporta-se como onda ou como partícula. Mais desafiador ainda: saber que o próprio pesquisador interfere nos resultados de suas pesquisas pela simples proximidade que seus instrumentos têm do átomo.

Então, se os resultados de uma pesquisa são determinados pelo observador, pelo Princípio da Incerteza, como aceitar verdades absolutas? Como não entender que cada ponto de vista humano depende de sua história, cultura e posição social?. A academia insiste ainda hoje, quase cem anos depois das descobertas de Heisenberg, que existe uma neutralidade científica, e que é possível ao pesquisador não enviesar os resultados de seu trabalho pelo seu próprio olhar... A antropologia ensina que o máximo que podemos fazer é estarmos atentos e entendermos qual é o nosso próprio ponto de vista e integrá-lo à pesquisa. Só assim seremos capazes de ver o outro, os outros e entendê-los.

A física quântica trouxe ainda outro questionamento ao paradigma racionalista ao descobrir o que é chamado de “não localidade quântica”. No momento em que um elétron, por exemplo, passa de um nível energético a outro no interior do átomo, não se consegue identificar sua localização. Objetos quânticos deixam de existir “aqui” e simultaneamente passam a existir “lá” e não podemos dizer que passaram pelo espaço interveniente. É como se eles “não estivessem nesse mundo”, fazendo com que se possa supor a existência de outra dimensão, que não está no aqui e agora. Na verdade, a ciência já descobriu a existência de diversas dimensões, dessas primeiras descobertas quânticas até hoje, e nosso aparato racional é limitado para entender o funcionamento dessas outras dimensões. É a intuição, segundo o próprio Einstein, que nos ajuda a entender o mundo, inexplicável apenas com o uso da racionalidade.

A física quântica é tão cheia de exemplos desconcertantes para o paradigma cartesiano-mecanicista, que o novo paradigma emergente é chamado de quântico por muitos estudiosos. Um dos mais renomados entre eles é Amit Goswami e, no Brasil, Wallace Liimaa, é um dos divulgadores mais conhecidos e inspirados do paradigma emergente. Seu livro, “Princípios quânticos no cotidiano: a dimensão científica da consciência, espiritualidade, transdisciplinaridade e transpessoalidade” é uma boa leitura. Ali ele trata de outros fenômenos que a física quântica explica bem, como a conexão e a interdependência entre todas as coisas (“Bootstrap”) e o “salto quântico”, no qual um acúmulo de mudanças quantitativas favorece uma mudança qualitativa, em saltos.

Tenho usado esses princípios em meu blog para tratar das diferentes “revoluções tranquilas” que estão acontecendo hoje no mundo e que podem estar prenunciando um salto qualitativo de dimensões políticas enormes que é o advento de uma cidadania planetária engajada e conectada pela internet.

Outro pensador que vem contribuindo destacadamente para o desenvolvimento do novo paradigma é Edgar Morin, com sua “Teoria da Complexidade”. Ciente dos avanços das descobertas das ciências exatas, como a física, Morin traz essas novas percepções para o campo das ciências humanas e explica que complexo é diferente do complicado: Enquanto o complicado tende ao ininteligível, incompreensível, o complexo tende ao indeterminado, às respostas múltiplas e à conexão e interdependência entre todas as coisas e seres. A Teoria da Complexidade propõe a superação da dualidade, e sugere a lógica do “terceiro incluído”, ou seja, convida-nos a imaginar outras possibilidades, o caminho do meio budista. Posso dar alguns exemplos: entre o capitalismo e o socialismo, trazer a concepção de uma “economia plural”, como propõe Jean Louis Laville; entre democracia representativa e democracia participativa, inovar com a concepção de uma liderança compartilhada, que sugiro no meu livro “os novos coletivos cidadãos”; entre desigualdade e igualitarismo, a possibilidade de uma equanimidade, na qual os diferentes são tratados diferentemente, mas sempre buscando a justiça para o todo. 

Outra contribuição excepcional para a superação do paradigma racionalista vem das descobertas do biólogo Rupert Sheldrake, com sua “Teoria dos Campos Mórficos” e a ideia da “ressonância mórfica”. Para entender melhor a teoria, o próprio Rupert conta a história do “centésimo macaco”: em um conjunto de ilhas habitadas por macacos de uma determinada espécie, um macaco descobre por acaso o prazer de comer raízes lavadas na água do rio. Outros macacos observam e fazem o mesmo, mas ao chegar ao macaco de número 99, a mudança alcançaria um patamar no qual não é mais necessário o contato direto para aprender a nova maneira de fazer. Assim macacos de outras ilhas, sem qualquer contato, começam a fazer o mesmo, pelo mecanismo de ressonância mórfica.

Para Sheldrake, os campos mórficos são estruturas que se estendem no espaço-tempo e moldam a forma e o comportamento de todos os sistemas do mundo material. Assim, quando uma mudança necessária (que harmoniza um processo) se dá em pequena escala, ela se propaga de forma linear, causal (um macaco que aprende vendo o outro fazer) mas também dentro da não localidade quântica, independente de contato direto, através da ressonância mórfica. Esse seria o motivo que explicaria porque um conjunto suficientemente grande de pessoas meditando juntas pela paz seria capaz de fazer decrescer o número de crimes cometidos nas imediações de Washington, como nos conta Gregg Braden.

A psicologia é um dos campos de estudos mais contributivos para a emergência de um novo paradigma. Desde o início do século XX, quando Gustav Jung propôs o conceito de “Inconsciente Coletivo”, ele estava muito próximo dos campos mórficos de Rupert Sheldrake, descobertos no final do século. Jung descobriu que se pode encontrar em diferentes culturas símbolos muito próximos, independente de terem tido contato. Um exemplo é o mito bíblico da vida que nasce do barro, como o qual Deus fez o corpo do homem, ou a ideia de que o bem mora no céu, no alto, e o mal nas profundezas. Essas simbologias estão presentes em muitas e muitas culturas espalhadas pelo mundo e constituem, segundo Jung, “arquétipos” que os humanos partilham. O conjunto dos arquétipos constitui uma inteligência compartilhada, que não precisa de contato direto, e seria explicada, hoje se sabe, também pela “não localidade quântica”.

Outro exemplo da contribuição da psicologia é o trabalho sobre as “constelações familiares”, de Bert Hellinguer. Esse profissional e pesquisador defende que uma situação vivida pela alma de um indivíduo pode ser sentida por outros não presentes. Assim, uma dada relação interpessoal interpretada por outras pessoas em uma sessão de psicoterapia pode revelar o que sente cada uma das partes e também a constelação de sentimentos interdependentes daquela situação. Pode-se assim curar uma relação dolorida nesse processo no qual um interpretante comunica-se com a alma do interpretado e pode lhe transferir, por exemplo, a compreensão e o perdão para dada situação. Numa interessante entrevista a uma jornalista que perguntava como era possível entender o funcionamento da terapia, Bert Hellinguer responde algo como “tenho 40 anos vendo o processo funcionar; sei que não é possível compreendê-lo pela forma atual de pensar, portanto, não quero explicar, convido-a a viver isso”.

As mudanças de paradigmas, explicadas por Thomas Kuhn em seu livro “A estrutura das revoluções científicas” e muito interessantemente mostradas em um pequeno vídeo, podem ser lentas, mas são, geralmente, largas. Gente de várias áreas, em diversos países, trabalham na direção de um novo modo de ver o mundo, de compreendê-lo e de agir sobre ele, e de repente, num salto quântico, elas passam a ser mais e mais escutadas e compreendidas. Mudar de paradigma não significa enterrar completamente o anterior, que pode continuar a ser válido em aspectos da existência e complementado pelo novo.

Os novos paradigmas propiciam novas formas de pensar, novos valores e novas práticas. Coerente com o que se disse até aqui em relação ao paradigma emergente da complexidade, não se quer negar a lei da gravidade de Newton, nem o princípio da dúvida racional de Descartes, nem o papel da racionalidade para vivermos melhor no mundo, nem a utilidade dos números e das especialidades no saber. Defende-se a integração de novas formas de entender o mundo, válidas em muitos e muitos campos e que inspirem outros modos de conhecimento e organização da vida comum.

Para tentar resumir o que foi dito até aqui, pode-se dizer que a passagem do paradigma cartesiano-mecanicista para o paradigma holístico ecológico, significará passar da lógica auto afirmativa para a integrativa ou do pensamento único para diversidade, ou do “ou” para o “e”; de uma inteligência apenas racional para  uma inteligência  múltipla, incluindo a intuição, a inteligência do corpo e a do coração;  do privilégio da análise para as tentativas de síntese que suscitam ação e nova análise; da forma reducionista e compartimentada de conhecimento para uma abordagem holística e sistêmica; da ação linear, que explora recursos e pessoas, para a não linear, que foca na conservação da riqueza humana e natural.

Do mesmo modo, os valores predominantes nos dois paradigmas são diferentes e passa-se da dominação para parceria e para a liderança partilhada; da expansão, (seja ela territorial, de mercados, de riqueza, implicadas numa visão quantitativa) para a conservação, a manutenção; da competição para a cooperação; do curto para o longo prazo, dos fins justificam os meios para a valorização do processo, do caminho se faz ao andar... Essas formas de pensar e de valorar as coisas e os processos são próximas da energia feminina... mas isso é tema de outro post.  

 



Cidades do Futuro: sustentabilidade ecológica

15 de Abril de 2015, 1:04, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Como ter bases seguras para saber o que é e o que não é sustentável e como construir cidades mais ecológicas? O conceito de sustentabilidade é tão comentado que parece difícil apreendê-lo em profundidade. Nas discussões sobre cidades sustentáveis ele acaba por se reduzir a questões tecnológicas do tipo reciclagem de lixo, reuso de água, tetos verdes, etc. Essas práticas, embora importantes, são apenas instrumentos de sustentabilidade, mas quais os critérios para defini-la em cada campo da intricada questão urbana? Fritjof Capra, em seu incansável trabalho para difundir novos paradigmas, trouxe um conjunto de conceitos que se inspiram no próprio modo como a Natureza sustenta a vida incansavelmente.

Assim, a partir da observação e do estudo dos sistemas vivos oriundos de autores diversos (Ilya Prigogine, Humberto Maturana, Francisco Varela, Gregory Bateson, etc. ) ele chama de sustentabilidade ecológica o conjunto de práticas da Teia da Vida: os ciclos, as redes, as parcerias, a diversidade e a resiliência, sustentadas pela energia solar. Examinar cada uma dessas práticas é nossa tarefa a seguir, pois buscar um funcionamento das cidades o mais próximo possível de como a Natureza funciona significa ser sustentável. A própria longevidade do planeta Terra, com seus 4,56 bilhões de anos de existência e centenas de mutações dramáticas que transformaram completamente sua superfície e sua dinâmica, mostra que ela se sabe se auto sustentar. Se a espécie humana continuar a existir sem se inspirar nos processos naturais, é ela que vai se extinguir. Acesse aqui um interessante filme mostra a Terra depois de nós.

Parâmetros da sustentabilidade ecológica, para ajudar a pensar os serviços, equipamentos e modos de vida urbanos:

  • Redes

Em todas as escalas da natureza, encontramos sistemas vivos alojados dentro de outros sistemas vivos, de modo interdependente. Cada folha, cada célula, cada rio, cada animal é constituído de redes e se encontra dentro de redes maiores. Os limites entre esses sistemas não são limites de separação, mas limites de identidade, pois todos os sistemas vivos comunicam-se uns com os outros e partilham seus recursos, transpondo seus limites. A saúde de cada um, sua harmonia e seu desenvolvimento melhora o sistema geral, assim como esse interfere no bem estar de cada um/a.

Como organizar o abastecimento alimentar, o trânsito, a comunicação, etc. em redes?

 Ciclos

Todos os organismos vivos, para permanecer vivos, têm de alimentar-se de fluxos contínuos de matéria e energia tiradas do ambiente em que vivem; e todos os organismos vivos produzem resíduos continuamente. Entretanto, um ecossistema, considerado em seu todo, não gera resíduo nenhum, pois os resíduos de uma espécie são os alimentos de outra. Assim, a matéria recicla-se continuamente dentro da teia da vida.

Como organizar o abastecimento de energia, o lixo,  os esgotos, etc. em ciclos nas cidades?

  • Alianças

As trocas de energia e de recursos materiais num ecossistema são sustentadas por uma cooperação generalizada. A vida não tomou conta do planeta pela violência, mas pela cooperação. Nenhum ser é capaz de viver sem o apoio de outros.

Como organizar a economia, a política, a educação, etc. através de parcerias?

  • Diversidade

Os ecossistemas alcançam a estabilidade e a capacidade de recuperar-se dos desequilíbrios por meio da riqueza e da complexidade de suas teias ecológicas. Quanto maior a biodiversidade de um ecossistema, maior a sua resistência e capacidade de recuperação.

Como organizar a habitação, a socialização, a paisagem etc. de modo diversificado?

  • Flexibilidade

Um ecossistema é uma rede em equilíbrio dinâmico, em permanente flutuação. Sua flexibilidade é uma consequência dos múltiplos elos e anéis de realimentação que mantêm o sistema sadio. Nenhuma variável chega sozinha a um valor máximo; todas as variáveis flutuam em torno do seu valor ótimo.

Como organizar a saúde, as leis urbanísticas, o consumo etc. com flexibilidade?

  • Energia Solar

É a energia solar, transformada em energia química pela fotossíntese das plantas verdes, que move todos os ciclos ecológicos.

Como utilizar melhor essa imensa força de vida no dia a dia das cidades?



Cidades do Futuro: Auroville

13 de Abril de 2015, 13:09, por Débora Nunes - 22 comentários

Escrever sobre esse vasto tema exige referências, para que possamos penetrar o desconhecido futuro com luzes que nos ajudem a caminhar. A cidade de Aurovile será a primeira referência com sua proposta de conectar o desenvolvimento do indivíduo ao do coletivo para construir um mundo melhor; a sustentabilidade ecológica de Fritjof Capra, será a segunda referência, e a percepção quântica e complexa do mundo, a terceira, em posts a seguir. Comecemos por Auroville,  cidade fundada há quase 50 anos no sul da India, com a proposta de ser uma cidade universal da família humana na qual “homens e mulheres de todos os países possam viver em paz e em progressiva harmonia, a despeito de suas diferentes crenças, ideologias e nacionalidades”.

Auroville conta hoje com cerca de 2500 habitantes, vindos de 50 países, que continuam a buscar a realização do sonho dos seus idealizadores: Sri Aurobindo e sua discípula,  Mirra Alfassa, chamada por todos de “Mãe”. Sri Aurobindo foi um filósofo e místico indiano que criou a Yoga Integral - que integra evolução individual e evolução do entorno pelo trabalho - e a noção da evolução humana em busca do estágio “supramental”, ou de integração com  o divino. A Mãe teve uma visão de construir uma cidade que favorecesse o processo evolutivo humano descrito por Sri Aurobindo e conseguiu mobilizar apoios no mundo inteiro para a realização de seu projeto. O chamado da Mãe,  apoiado pela Unesco, trouxe para a Índia jovens de vários países que começaram a construir uma cidade onde o comunitarismo, a íntima relação com a Natureza e a tecnologia aplicada deram materialidade à inspiração espiritual.

A primeira tarefa dos habitantes de Auroville foi começar a restauração de uma área de cerca de dois mil hectares, completamente desertificada e tirar daí seu sustento. O trabalho árduo de construir diques e plantar mais de dois milhões de árvores deu frutos e hoje se vê uma extensa floresta em todo o perímetro rural/urbano. Enquanto moravam em cabanas e plantavam árvores, os habitantes de Auroville aprendiam a grande tarefa de viver juntos e se autogovernar. Em meio a muitas línguas, culturas, religiões e visões pessoais de mundo, partilhavam o trabalho e a luta pela sobrevivência, exatamente como as primeiras tribos humanas. A primeira grande diferença é que Auroville nunca foi isolada, mantendo laços com os países de origem de seus habitantes, com instituições de peso como a Unesco e o governo da India e com as comunidades do entorno. A segunda diferença é que eles tinham um projeto para si mesmos.

Ao tempo em que construíam a base de seu sustento, os aurovilianos trabalhavam na construção da cidade, a partir do plano urbano do arquiteto francês Roger Anger. Esse plano, que propunha uma espiral representando a evolução humana na forma de uma galáxia, desenvolve-se em torno de um ponto, uma velha e imensa árvore Banyan e de uma construção, o Matrimandir, o templo da mãe divina. Fiel à ideia de uma espiritualidade sem religiões, no Matrimandir apenas o silêncio e raio de sol no centro de um salão circular inteiramente branco representam o caminho para o mundo espiritual. O templo levou cerca de 40 anos para ser construído, mas é uma obra prima (ver fotos), que conta ainda com 12 salas de meditação sobre os atributos da mãe divina: receptividade, progresso, coragem, bondade, generosidade, equanimidade, paz, sinceridade, humildade, gratidão, perseverança e aspiração.  O templo é frequentado hoje por milhares de visitantes que têm 20 minutos para meditar no grande salão.

As necessidades de sobrevivência e a relação íntima dos aurovilianos com a Natureza foram a base para o desenvolvimento de muitas tecnologias sustentáveis desde os anos 70: energia solar, eólica e de biomassa; agricultura orgânica e cultivo de plantas medicinais da tradição ayurvédica indiana; construções ecológicas com materiais locais de baixo uso energético; tratamento de águas servidas para reaproveitamento nos jardins e reflorestamento; reciclagem do lixo; cozinha comunitária a vapor usando o calor do sol... e tantas outras pesquisas aplicadas.  Ao mesmo tempo, a comunidade desenvolveu um sistema educacional e de saúde inovadores, respeitando os princípios fundadores, assim como foram organizados um sistema econômico de partilha e uma governança horizontal.

Hoje Aurovile prepara-se para festejar seus 50 anos em 2018 e tem no turismo sua principal base econômica.  Pessoas de todos os lugares, atraídas por esse imenso projeto e seus desdobramentos visitam a cidade, que ainda é, contraditoriamente, uma grande floresta. Os desafios de Auroville, de se manter fiel aos princípios do projeto de unidade humana universal e de integrar-se ao entorno rural dos vilarejos indianos; de desenvolver-se sem sucumbir à lógica capitalista que é sua principal fonte de financiamento através do turistas,  exigem uma visão não linear de mundo. A complexidade, ou não dualidade, a integração de desafios contraditórios e a conexão quântica do indivíduo com o todo, podem ser caminhos para enfrentar esses desafios. Em Auroville, mas também talvez em cada um/a e no mundo inteiro.



Notícias do 12o Fórum Social Mundial que está acontecendo em Túnis

26 de Março de 2015, 7:17, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Quais desafios para uma cidadania dos povos da Terra?

A marcha de abertura do FSM teve como tema “Povos do Mundo Unidos contra o Terrorismo” e terminou simbolicamente em frente ao Museu do Bardo, atingido recentemente por um ataque que causou a morte de 22 pessoas. Esse ato demonstra a constituição em andamento de uma consciência mundial para enfrentar desafios que são comuns, como a violência, mas que atingem diferentemente os povos da Terra. O Fórum Social Mundial é hoje o maior encontro da cidadania planetária e permite assim esse tipo de encontro de muitas e muitas redes que estão se tecendo internacionalmente para construir um mundo melhor.

 A relação do Brasil com esse evento é profunda já que das suas 12 edições, cinco ocorreram no Brasil. O primeiro Fórum Social Mundial encontro aconteceu em Porto Alegre, em 2001 e inaugurou o lema “Um outro mundo possível”, em contraponto ao Fórum Econômico Mundial, que reúne grandes empresários e políticos em Davos, na Suíça. Outros eventos FSM, que aos poucos incorporou a ideia de que esse outro mundo possível “está em construção”, se passaram em países tão diferentes quanto a Índia, a Venezuela, o Mali, o Paquistão, o Quênia e por duas vezes na Tunísia, em 2013, após a Primavera Árabe, e agora.

 O FSM da Tunísia conta com cerca de 60 mil participantes e envolve mais de mil atividades promovidas por instituições engajadas em questões políticas, ambientais e sociais vindas do mundo inteiro. Todas acreditam que o desafio de construir uma civilização mais humana passa pela união dos povos da Terra e buscam se encontrar atualmente a cada dois anos para aprofundar esses laços e discutir soluções. A rede internacional Diálogos em humanidade é uma dessas instituições e propõe um texto de Patrick Viveret, que traduzi a seguir, sobre linhas de ação concreta para essa cidadania planetária. É importante começar a pensar sobre isso.

Contribuição à discussão sobre o futuro do FSM - Patrick Viveret

 Essa nota se funda em duas hipóteses:

 1) Temos de parar de deixar que o capitalismo financeiro se apresente como motor da mundialização, pois esse não só não está interessado em resolver os desafios globais que a humanidade enfrenta, como, ao contrário, agrava-os pelas práticas da oligarquia financeira. Precisamos construir os elementos de uma consciência global dos "povos da Terra." Ao invés de uma globalização financeira destrutiva dos vínculos ecológicas sociais e culturais precisamos de uma "mundialidade" (no sentido de Edouard Glissant) que alimente estratégias de vínculo do econômico e do financeiro (solidário) ao tecido ecológico, social e cultural dos territórios e dos povos;

 2) Neste contexto, é necessário propor uma alternativa ao duplo retrocesso que está ocorrendo devido à relação simétrica entre, de um lado, o fundamentalismo de mercado (destruidor de identidades, culturas, laços sociais) e, de outro, o fundamentalismo identitário. Uma forma do fundamentalismo identitário é o terrorismo, que responde de modo mortal ao fundamentalismo de mercado e exclui outras identidades, com pretextos religiosos. A alternativa necessária é o surgimento de uma consciência cidadã mundial que evite o risco de caos e de guerra que o confronto entre estes dois fundamentalismos pode crescentemente provocar. Para tanto, é necessário demonstrar a pertinência programática e estratégica desta via.

 Três campos de trabalho devem ser prioritários e eles são portadores de três características:

  *Eles são mundiais e correspondem a desafios cruciais que colocam a questão não só dos bens comuns da humanidade (como o clima) mas também da capacidade de que a humanidade se constitua ela mesma em um bem comum;

 *Eles são objeto de intensas atividades, proposições e experimentações da sociedade civil que frequentemente é mais avançada que os Estados e as multinacionais em sua capacidade de propor soluções a esses desafios;

 *Eles podem ser objeto de alianças dinâmicas pois dispõem de forte apelo junto à opinião pública mundial e a oligarquia financeira está numa situação de fragilidade para se opor ao seu crescimento;

 É o caso, por exemplo, do desafio do clima através da Conferência que acontecerá em dezembro de 2015 em Paris, a COP 21, para a qual a mobilização cidadã está muito forte e pode se aliar ao encontro mundial de cidades e territórios que acontecerá também na França, em Lyon, no início de julho 2015.

 É o caso de alternativas à lógica de guerra de civilizações nas quais se opõe à ideia de que existam bárbaros em certos grupos humanos. Essa alternativa é a perspectiva de aprofundamento da fraternidade humana contida no artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Se barbárie existe, ela é possível em qualquer lugar e para vencê-la é preciso crescer em humanidade e não em armas e militarização. Trata-se, de fato, de um movimento ante guerra mundial que precisa ser construído.

 É o caso também, e se tratará com mais detalhe nesse ponto, da luta mundial contra a evasão fiscal que se constitui na melhor alternativa à lógica do fundamentalismo de mercado e à oligarquia financeira, e o melhor antídoto contra o fundamentalismo identitário e o terrorismo. 

 Nesse terreno os montantes são substanciais. O ex-chefe da Mc Kinsey estima que o dinheiro que circula em paraísos fiscais está no intervalo entre 26 e 32 trilhões de dólares. Observa-se que a oligarquia financeira está perdendo a batalha da legitimidade desses paraísos fiscais, por longo tempo apresentados como justificáveis, e deve retirar-se gradualmente, embora seu enorme lobby permite retardar ou reduzir a pressão cidadã.

 Comecemos pelo exemplo da Europa, mas seria interessante ver se este é o caso em outros continentes. Vimos assim que:

 a) o Comissário europeu Michel Barnier, ainda que de família política conservadora, reconhece que a evasão fiscal anual representa quase um trilhão de euros, b) O Parlamento Europeu e a Comissão, também liderados por forças conservadoras estão sendo obrigados a considerar medidas eficazes contra a evasão fiscal, sob a pressão da opinião pública que tem sido alertada por iniciativas cidadãs; c) até mesmo o novo presidente da comissão, o ex-primeiro-ministro de Luxemburgo, notório paraíso fiscal, tem que limpar-se da suspeita que paira sobre ele e avançar nessa direção.

 É óbvio que estes pontos fracos são relativos e se a pressão cidadã diminuir os lobbies financeiros rapidamente recuperarão o terreno perdido. Mas, no caso oposto, há potenciais vitórias parciais reais transformando os recuos temporários da oligarquia financeira em vitórias reais para forças cidadãs do mundo. Seria uma pena não usar tais oportunidades. Isto significa usar meios lúdicos e formas populares de ação, como o exemplo dado pela requisição cidadã de cadeiras e poltronas em uma agência bancária HSBC na qual a imprensa demonstrou a existência de uma evasão fiscal maciça. O objetivo da ação é simples: entregaremos novamente as cadeiras quando o banco reembolsar as quantias! Isso ajuda a construir uma forte alternativa simbólica sobre o tema: bancos ajudam empresas multinacionais e os membros da oligarquia financeira a realocar seus ativos em paraísos fiscais. Nós, cidadãos e cidadãs, procederemos à “deslocalização” desses ativos/assentos e os usaremos como um meio de troca na luta contra a evasão fiscal. Tais ações são facilmente reproduzíveis (este já é o caso de ações visando o BNP) e obrigará a oligarquia financeira a reagir. Se ela não se movimentar, abrirá o caminho de uma repetição em massa do movimento. Se ela iniciar processos judiciais contra este, os julgamentos sobre a evasão fiscal podem desempenhar um grande papel no uso de alavancas legais na luta da sociedade civil global.

 A importância dos mecanismos jurídicos:

 A alavancagem legal é realmente uma boa base comum para uso nos três exemplos a seguir:

 -  No campo do clima e mais amplamente no reconhecimento dos crimes ecológicos (ecocidas) em conexão com as discussões da Cúpula dos Povos no Rio em 2012;

 - Em matéria de reconhecimento de crimes contra a humanidade que não podem ser reduzidos apenas aos ataques terroristas atuais, mas incluir, por exemplo, o uso da tortura pelos Estados Unidos durante o governo Bush. Nesta perspectiva, a organização de sessões cidadãs no Tribunal Penal Internacional poderia ser considerada. A batalha pela sua admissibilidade seria um primeiro desafio para preparar o caminho, em caso de bloqueio, à iniciativa de criar um Tribunal Internacional da Cidadania.

No que diz respeito à alavanca legal na luta contra a evasão fiscal, ela permitiria antecipar, se houver bloqueios na sua implementação, um início de fiscalização global dos cidadãos sobre os impostos,  primeiros nos impostos nacionais sobre as atividades perigosas para a humanidade (por exemplo, armas). Uma quota desses impostos poderia ser atribuída a um fundo global cidadão a ser usado, por exemplo, na luta contra as mudanças climáticas e no financiamento dos objetivos vitais, como a luta contra a fome, o acesso a água potável, aos cuidados básicos de saúde, etc. ...



Pequenos belos detalhes da Índia

23 de Março de 2015, 12:54, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Esse imenso e variado país, com suas centenas de deuses e de línguas, milhares de comunidades étnicas distintas e tantas religiões diferentes é quase um planeta inteiro. É difícil falar sobre ele como um todo para além da yoga, de Gandhi e das mandalas, sobre os quais publicarei posts mais adiante.

Começarei  por mostrar apenas alguns belos detalhes:

Como as mulheres se enfeitam e perfumam usando flores no cabelo:

Como protegem as casas com desenhos para enfeitar e trazer sorte (rongoli) e como ninguém entra em casa com sapatos:

  

Como sacralizam os animais, vaca, cobra, elefante, macaco...

          



Multidões nas ruas...qual sinal dos tempos?

17 de Março de 2015, 2:20, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

 

Essa década tem sido provavelmente a que mostra o maior número de pessoas manifestando-se nas ruas em todo a história: a Primavera Árabe, que começou na Tunísia, passou pelo Egito e se espalhou pelo mundo muçulmano; os americanos do Occupy Wall Street que ocuparam na verdade praças em todo o país e não só em Nova York; os jovens espanhóis, franceses e outros europeus do movimento “Los indignados” contra a decadência que lhes rouba o futuro; os brasileiros das jornadas de junho de 2013 por um melhor serviço público e  contra os desmandos na política; os indianos do movimento contra a corrupção que acabou por formar o AAP Party, “Partido do Homem Comum”; os jovens acampados por meses em Hong Kong lutando pela democracia ...isso só para falar de alguns. Agora, de novo, os brasileiros tomaram as ruas.

Para além das explorações partidárias conjunturais desses movimentos, como se faz no Brasil hoje, vê-se uma tendência exponencial de engajamentos políticos da cidadania planetária por uma nova política. O descontentamento com a política pode ser identificado em qualquer conversa com cidadãos comuns de qualquer parte do mundo. A indignação com a condução da política no sistema de democracia representativa (ou de ditaduras remanescentes) é geral e evidencia a busca de novos sistemas. As populações ao redor do planeta estão cada vez mais educadas, informadas e têm meios de mobilização autônomos, através das redes sociais, para denunciar a estreiteza de uma organização política baseada no dinheiro.

Os rumos que esses movimentos têm tomado são muito diferenciados e refletem seu estágio inicial. Há os que foram parcialmente ou totalmente derrotados (por enquanto), como em Hong Kong, no Egito e em outros países do mundo árabe; os que aparentemente se desmobilizaram (por enquanto), como o Occupy e os Indignados; há os que ganharam eleições com propostas de uma política mais participativa, como em Nova Delhi, capital da India e os que ainda estão por demais misturados com a política comezinha e contextual, como no Brasil, para mostrarem toda sua força transformadora. Tudo isso que se vê, olhando no largo movimento da história, conduzirá, com muito trabalho, a uma política melhor, com mais democracia, mais controle social e mais limitações na influência do poder econômico sobre os governos dos povos. Mais promissor ainda: estamos construindo um movimento planetário, que ainda não se dá conta da sua internacionalização, mas isso é uma questão de tempo. Os povos da terra, unidos, jamais serão vencidos!



As mulheres não querem o poder?

8 de Março de 2015, 13:18, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Talvez não queiram ESSE poder que está disponível.

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É verdade que há muitos países no mundo nos quais a política é quase interditada às mulheres. Em outros há dificuldades históricas para uma dedicação das mulheres à política tradicional. O propósito desse post, porém, é refletir sobre porque, mesmo depois de décadas de políticas de cotas para que as mulheres sejam candidatas, tanto na Europa quanto no Brasil, o número de parlamentares, presidentas, prefeitas e governadoras ainda é tão pequeno.

A hipótese que coloco em discussão é a de que o poder político disponível, à imagem da sociedade patriarcal, que é concentrado, personalista e baseado na superexposição pública (ou no dinheiro), não atrai a maioria das mulheres. Nem mesmo as que atuam politicamente em outras esferas. Será que processos políticos mais participativos, menos egocentrados, com poder mais distribuído localmente e com responsabilidades coletivas, seriam mais atraentes à alma feminina?

Se olharmos o engajamento delas em associações de bairro, em movimentos de base vinculados ao cuidado ou em dinâmicas sociais mais contemporâneas, com liderança compartilhada, veremos que ali há uma maioria absoluta de mulheres. Ali onde elas podem fazer a diferença na construção do bem-viver ou na manutenção de boas condições de vida, ou onde elas podem partilhar desafios coletivos em uma trama de governança inovadora, ali elas estão.

Mas o que me fez pensar na hipótese desse post não foi a política, mas a ausência quase absoluta de gurus femininos na India.   Fiquei me perguntando porque não há pôsteres imensos de suas excelências iluminadas – com muito respeito por alguns – vestidos de saris femininos... E aí uma potencial guru fêmea, no alto de sua grande maturidade e refinada espiritualidade, respondeu: o verdadeiro poder transformador é interior, está em cada uma e em cada um. O culto à personalidade, só faz esconder essa verdade e não quero servir a esse propósito.

Talvez o que sirva para no mundo espiritual sirva também para a política parlamentar ou para os governos. As mudanças que permanecem são construídas no dia à dia, de baixo pra cima e com responsabilidades horizontais, compartilhadas. As mulheres querem sim fazer política e ajudar o mundo a se tornar mais solidário, mais democrático, mais sustentável, melhor de se viver. Mas a maioria delas – e as estatísticas mostram isso – preferem fazer isso em esferas menos espetaculares e de forma mais coletiva.

 

 



Cidadãos comuns governam capital da India!

3 de Março de 2015, 1:29, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Traduzi um breve texto de Siddhartha, jornalista indiano e fundador do movimento Diálogos em humanidade na India, falando da vitória de um novo partido nada convencional, formado por cidadãos sem envolvimento com a política tradicional e que abrem um nova era na governança das cidades.

Sobre o significado da vitória do  Partido do Homem Comum

Siddhartha

A vitória esmagadora do Partido Aadmi Aam (AAP) nas eleições em Nova Delhi foi manchete nos jornais da Índia e em outras partes do mundo. Pela primeira vez por aqui um partido político capturou o imaginário das pessoas pela sua integridade e pela grande determinação em fazer mudanças.

O AAP tem como líder Arvind Kejriwal, o novo governador de Delhi, homem  carismático e honesto, ex-funcionário federal do imposto de renda. O AAP foi capaz de ganhar de forma tão convincente por causa de sua determinação em acabar com a corrupção no funcionalismo público, na polícia e na classe política. O AAP também mostrou aos pobres que as taxas de água e eletricidade estão inflados e que é possível fazer uma redução drástica de preço. Mais importante ainda, o AAP propõe inaugurar uma governança participativa e transparente em Delhi, como um conselho de cidadãos controlando as contas públicas.

Os resultados das eleições de fevereiro mostraram que um grande número de pessoas pobres e de classe média baixa votaram no AAP. Em menor número, setores das classes média e alta também apoiaram o AAP. O Partido do Congresso, que governou a Índia durante largo período, foi completamente dizimado. O BJP, um partido de centro-direita, que governa o país no momento, também se saiu tristemente nas eleições. Enquanto AAP obteve 67 assentos no parlamento, o BJP venceu apenas 3 e o Partido do Congresso não conseguiu nenhum.  

Pela primeira vez na história da India o pertencimento a uma religião, casta, língua e até mesmo a uma classe parece não importar na hora do voto. Os problemas reais que as pessoas enfrentam tomou foi o centro das atenções. Isto traz grande esperança de que outras partes do país também possam seguir o mesmo caminho, especialmente nas grandes cidades. Será preciso esperar um pouco mais, entretanto, para que o eleitorado rural indiano, de imaginário semifeudal e ainda orientado por uma lógica de castas, seja incorporado ao processo renovador da política indiana.

 



Sonho que se sonha junto é realidade

9 de Fevereiro de 2015, 7:56, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

 

Bangalore, Índia

 Ouvir os versos de Raul Seixas “Sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, sonho que se sonha junto é realidade” cantados em inglês por indianos é lembrar que nosso Raul também aprendeu esses versos universais com Cervantes, no romance Dom Quixote.  O espírito dessa canção está onde se constrói coletivamente alternativas para um mundo mais justo, solidário e sustentável. O evento February Dialogues trouxe experiências muito interessantes para um mundo sem lixo,  sobre como produzir agroecologicamente, como tirar energia de plantas nativas, como realizar eventos que combinem aprendizados para a mente, o corpo e o coração...

O evento acontece em um lugar muito especial: Fireflies, um ashram sem guru, ou seja, uma comunidade espiritual – como existem milhares na India  – só que sem guias e reverências. Apenas a Mãe Terra aqui é sagrada, mas todas as religiões são respeitadas. A instituição que mantém essa comunidade, a Pipal Tree Fondation, convida todas as crenças a celebrarem seus deuses, aqui representados em belas estátuas de pedra, e a conviverem em paz, numa região marcada por guerras religiosas. A ideia  de uma espiritualidade vivida através de ações por justiça social, por respeito a Natureza e em meio a uma bela coleção de obras de arte convence gente de todos os tipos e crenças a trabalharem juntos por um mundo melhor.

O evento February Dialogues participa da rede Diálogos em humanidade que existe em diversos países e no Brasil é representada, entre outros, pelo Brechó EcoSolidário. Essa rede mostra uma grande quantidade de “práticas do futuro emergente”, que inspiram coletivos a realizarem hoje o que gostariam de ver desenvolvido no mundo. Essa atitude de agir ao invés de apenas criticar governos e sociedades e o fato de que esses eventos/processos se darem de forma coletiva e auto-gestionária criam uma força de transformação social. Muitas outras redes com essa mesma perspectiva de fazer revoluções tranquilas  estão em andamento e em processo de conexão, criando aos pouco uma rede de redes que dará exemplos para um mundo que parece sem saída e precisa de inspiração.

 

 

 



Indicadores de bem viver

27 de Janeiro de 2015, 0:32, por Débora Nunes - 0sem comentários ainda

Perguntas sobre o sentido da vida e de como tirar melhor proveito da existência acompanham a trajetória humana desde sempre. As respostas, naturalmente, variaram muito no tempo e no espaço e ao longo da história as religiões foram as maiores fornecedoras de indicações de resposta, convidando as pessoas a adotarem suas doutrinas, a viverem “corretamente” e assim alcançarem o céu, o nirvana, o olimpo.... Para além das religiões e dos anseios íntimos de homens e mulheres, apenas a filosofia e, muito mais tarde, no século XIX, a psicologia, que se debruça sobre o indivíduo como nunca antes, se interessaram a dar respostas ao tema.

As discussões de cunho filosófico e psicológico colocam a questão do sentido da busca por uma existência que valha a pena sem fornecer padrões de resposta, propondo apenas caminhos de reflexão e apoio na construção de respostas pessoais. As demais ciências mantiveram-se até bem pouco tempo distantes do tema do sentido da existência e do que seria viver bem.  Ao longo do século XX, concomitantemente com a construção de um Estado de Bem Estar Social, o mundo intelectual começou a construir indicadores para uma avaliação da situação objetiva de grupos humanos, relacionando implicitamente bem estar e renda, por exemplo.

O primeiro indicador de riqueza, surgido após a segunda guerra mundial, foi o Produto Interno Bruto - PIB, representando a soma de todos os bens e serviços produzidos numa determinada região ou país. Este indicador começou por revelar, de maneira inédita - pelos menos por algumas décadas e em relação à maioria dos países – que o produto interno bruto das nações estava efetivamente vinculado a situações objetivas de vida dos cidadãos. Ou seja, fora as exceções de praxe (como países com grande concentração de renda), a renda per capita, os níveis de escolaridade e educação e a longevidade dos cidadãos, por exemplo, tinham relação com a medida do PIB dos países.

Foram criados neste ínterim vários indicadores complementares à mensuração do PIB, como o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que buscaram identificar a situação de vida das pessoas com dados diretos de nível de renda, educação, saúde e padrão de vida, por exemplo. Ao mesmo tempo, a discussão sobre a necessidade de “corrigir” aquilo que a medida do PIB poderia iludir sobre a vida dos cidadãos, incorporando um indicador que identificasse a desigualdade (mascarada pelo PIB) foi fazendo seu caminho, consolidado hoje na apuração do Índice de Gini, que retrata as diferenças sociais entre grupos humanos que vivem juntos.

Segundo este mesmo caminho de aprofundamento do entendimento sobre a noção de bem estar, observa-se um fenômeno recente de interesse pela dimensão da felicidade, abordados por vários campos intelectuais, até mesmo por áreas ditas “áridas”, ou reativas a discussões subjetivas, como a economia e a administração. Se antes estas áreas relacionavam o bem estar dos trabalhadores e a produtividade, por exemplo, tratando de salários que viabilizassem confortavelmente a “reprodução da força de trabalho”, ou da correta organização do espaço de trabalho, hoje, cada vez mais, elas vêem relacionando também o que se poderia chamar de “bem estar emocional”, ao sucesso das empresas e instituições em geral.

Se até a economia e a administração começam a pensar em indicadores mais amplos de bem estar, o que não dizer das revistas de grande circulação que se propõem, com grande alarde e em dezenas de línguas diferentes, a mostrar o “caminho” para a felicidade, de modo geral de forma quase caricata e sem ir a fundo dessa grande questão humana.

Outro campo no qual esta discussão sobre a felicidade vem chegando paulatinamente é a medicina ocidental, que nasceu com a idéia do “corpo são em mente sã”, mas que desenvolveu de tal forma a farmacologia e a intervenção cirúrgica que esqueceu, nos séculos recentes, suas bases gregas.  Mesmo esta medicina hegemônica e muito comercial vem descobrindo, cada vez com maior sofisticação científica, aquilo que as medicinas tradicionais - como a chinesa e a ayurvédica - já sabem há milênios: a relação entre espírito e matéria, entre saúde física e espiritual, entre felicidade e saúde.

Entre as várias iniciativas de discussão sobre a felicidade, uma chama a atenção, por se dar em uma esfera absolutamente infensa a discussões subjetivas: a administração pública. Embora tomando forma em um minúsculo país monárquico do Himalaia, o Butão, ela atingiu o mundo pela inovação: as políticas públicas do país baseiam-se na medição da Felicidade Interna Bruta – FIB, índice criado em 1972. O FIB trata nove domínios de onde são extraídos indicadores para que a felicidade da nação seja avaliada: bem-estar psicológico; meio ambiente; saúde; educação; cultura; padrão de vida; uso do tempo; vitalidade comunitária e boa governança. A experiência do Butão vem sendo seguida por entidades insuspeitas, como a Comunidade Européia...

Parece assim que a discussão sobre o que de fato conta na vida de cada um e na de todos, sobre o sentido da vida e a felicidade, estão ganhando aos poucos status de tema de interesse público e científico. Não é paradoxal que só agora o mundo se preocupe  com o que pode ser considerado o fim último da vida de cada indivíduo, viver bem?. Talvez isto possa ser entendido pelo fato de que a felicidade sempre foi vista como um tema subjetivo e apenas o bem estar material seria um problema público. A relação entre matéria e espírito, tão evidente na saúde, por exemplo, só agora começa a ter status científico e assim torna-se matéria de atenções intelectuais e políticas.

Em face destes avanços, uma nova dimensão desta discussão tem vindo também recentemente a público a partir do colapso progressivo do sistema Terra, face ao modo de vida dos humanos e seu rebatimento no meio ambiente. Este colapso evidentemente relaciona-se a uma visão estreita da idéia de bem estar, na qual esse estaria vinculado a um consumo cada vez maior de bens materiais, mas também a uma ideia de serviços que também toma o planeta como um provedor infinito de energia. Nesta idéia, indicadores que mostram o acesso a serviços de saúde sofisticados seriam mais expressivos da saúde dos indivíduos do que saber se ele tem um ambiente familiar e comunitário gregário. Como contraponto, pensar no “bem viver”, que tem origem nas tradições milenares dos povos andinos - como os quéchuas, os aimarás e os guaranis - tornou-se uma expressão “avançada” de indicador de felicidade.

A ética do Bem Viver andina não coloca em primeiro plano o homem/a mulher e a satisfação de suas necessidades, mas a continuidade da Vida. O Bem Viver estaria necessariamente vinculado ao bem viver comunitário, à valorização da história e da cultura, assim como ao bom relacionamento com a Natureza e ao uso respeitoso dos recursos naturais. Deslocar o estudo do bem estar para dimensões coletivas, como fazem os indicadores do FIB e a idéia do Bem Viver, é estar em sintonia com o que Fritjof Capra chama de Teia da Vida, na qual as redes, as parcerias, os ciclos e o equilíbrio dinâmico são alguns dos fundamentos.

Retomando e misturando, para finalizar, um filósofo, Patrick Viveret, que escreveu um livro memorável intitulado “Reconsiderar a Riqueza” e um psiquiatra, Carl Jung, que define a alegria como o grande indicador de que estamos no caminho certo na vida que levamos, propõe-se democratizar largamente esse debate. São os cidadãos e cidadãs do mundo, em debates públicos mediados por técnicas artísticas e muito diálogo, que devem escrever os caminhos de identificação da felicidade pessoal e coletiva.  A construção de indicadores que revelem uma sociedade equânime, sustentável e feliz, em curto, médio e longo prazos (e em acordo com as condições de sustentabilidade na vida local e global) não deve ser atributo de funcionários ou intelectuais, mas ser uma pergunta de cada um e de cada uma, todo dia. Só a partir dessa plena consciência de muitas pessoas o coletivo poderá evoluir. E vice-versa.